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Abraços




Como dois infinitos voltados para dentro, nos abraçamos. O peito se enche. Do lado direito, um outro coração se aloja. Nos abraçamos e agora - depois da euforia - estamos cobertos por uma armadura impenetrável. Somos inabaláveis. Estamos amados até os dentes. Sorrisos de bocas flanqueadas. O seu ombro suporta todo o meu raciocínio e a sua cabeça pousa no meu osso vago e tocamos os abismos umbilicais da primeira separação e as nossas faltas se encontram.
Não temos rosto.
Nos abraçamos.
Uma távola, quatro pernas, quatro pés. Não temos sexo. Na potência sincera do desarme, Eros se perdeu. Psique descansa. A Morte se aproxima, respira – profunda – e se apega. Dois infinitos se confundem. Dois corpos se estreitam. Duas verdades, duas medidas. O ar contido - querendo rasgar o aço da temeridade - é silêncio.
E o corpo se abre
esquecido da sua função de resguardar. Os braços travam contra a impossibilidade da união material a mais sublime de todas as batalhas. As mãos enganchadas querem fundar raízes no terreno bruto das costas. O contorno de um passa em torno do outro e nada mais é coragem ou covardia. Estamos na beira do abismo. Eu cismo de querer acordar os pássaros impossíveis daquele bosque obscuro. Estamos na beira do abismo. A vertigem compartilhada é um arranha-céu incognoscível de alamedas transcendentes e becos inomináveis. Uma pequena porta.
Nos abraçamos.
A nossa cara de ponto escorre e somos agora um travessão anunciando qualquer coisa que não é fim - um nascimento sem maiúsculas. Fomos mar em pleno mar. No plantio novo dessa alegoria, simulamos um poema antigo onde duas eternidades se estreitam num aperto insano, azuis, dourados, plácidos...          
Mas,
aos poucos,
abandonando o estado sublime das coisas impraticáveis,
cava-se outra vez um fosso desabitado - o lado esquerdo se esvazia. O Tempo alcança o Céu. Despencamos. A queda é insondável e as flores todas desse começo tornam-se frases perdidas na balada triste dos que se foram antes do amanhecer. É a vida que retorna aos poucos. Estávamos mortos. Obliterados.
Abraçados.
Somos dois.
E assim, por medo da morte, damo-nos as mãos - e no esmagar sutil das palmas, experimentamos o sabor velho da evasão, a nostalgia angustiada de um enlace passado, o desejo de ser novamente infinito, a vontade indômita de ser
outra vez
            Deus

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Na medida em que me passam os anos




Na medida em que me passam os anos, percebo, com certo espanto, o encolhimento das pessoas de cima, inversamente proporcional ao número dos meus sapatos e ao tamanho dos meus irmãos. Primeiro, eram gigantescas, como torres enormes de braços compridos e pernas maiores que a minha altura. De tão grandes que eram, tinham por obrigação os cintos, apertando-lhes a cintura, para que a queda dos panos não causasse na terra um tremor de menor escala. A parte baixa das camisas tocavam-me os tornozelos quando, aventurando-me, sumia dentro das mantas de algodão, de ombros desaparecidos e com o pescoço afogado nas golas draculinas de uma polo qualquer. Eram coberturas titânicas das mulheres, como as cortinas colossais que cobrem os monumentos antes das inaugurações. Depois, via-lhes já o enchimento dos bolsos, o recheio misterioso e sempre proeminente dos bolsos preenchidos de papel, carteira, chaves e tantas. Descobri que nem sempre havia correia na cintura, que – para ocasiões menos adultas – havia a possibilidade dos elásticos, confortabilíssimos, ou do cordão – que eu tratava por cadarço e sempre me atrapalhava num apertado nó, simulador de correia, sem solução para além da tesoura. A seguir apareceram os estômagos. Que coisa engraçada é uma barriga. Lembro-me de alguns abraços e do contato almofadado dos pançolins. E os tipos são vários, grandes e rijas, largas, flácidas, caídas e dobráveis, ausentes, retas e chapadas e quadriculadas, de umbigos assustados, reservados e humildes. Alcançando o peito, logo acima da espinhela, com vista para o coração, aprendi a diferenciar os crescidos. As minhas avós chegaram primeiro no campo dos olhos. “O coração mais perto da boca” – diz a Vó Maria. E tem a razão, todos ainda estavam na medida dos seios, na metragem dos mamilos, e elas, adiantadas que são, na marca do cardíaco. Por essa altura, as arvores passaram a tratar-me como arbusto, não mais como broto. Acredito que, enquanto encolhiam e o mundo inteiro os seguia, porque é próprio das coisas diminuírem com o tempo, tivessem a ilusão de que eu crescia, mas asseguro que não, que não era isso. Por esses anos, entendi a funcionalidade dos penicos, a habilidade no escalar das portas, o vinho branco do meu avô e o engasgo dos cigarros. Explicou-me a vó – a Maria – sobre os dentes postiços e – a Ione – sobre as folhinhas de santos pregadas no corredor da sala. Já agora podia ver os lábios de uns, os olhos de outros e o topo de alguns. Diziam sempre que eu havia crescido rápido, mas nunca achei o encolhimento deles tão veloz. Além do mais, estavam sempre a mudar de ritmo, ora se desprendiam centímetros e centímetros por mês, ora perdiam, se muito, alguns milímetros. Assustava-me – assusta-me – a indiferença da maioria para algumas coisas da vida: aniversário próprio, coxinha com guaraná depois dos exames de sangue, bombom de coco e cachorro quente. Também não lhes agradava brincar de bonecos, de zorro, de espião – não tinham brinquedos, ainda que meu pai tivesse os tubos de ensaio, por demais interessantes, e minha mãe levasse sempre, ao lado da máquina, aquela almofadinha de alfinetes. Eles não tomavam do achocolatado, nem devoravam os recheados, mas tinha a estranha e dolorosa mania dos banhos, dos pentes e das escovas. Seguiam um ritual – e tenho para mim que esse é um dos motivos do encolhimento – que consistia em falar dos ausentes: falava-se bem, falava-se mal, falava-se pouco e do pouco e do muito que tinham, falava-se das manias, dos filhos, do trabalho e do que haviam feito e dos absurdos e das caridades. E no exercício de lembrar tudo aquilo, uma porção considerável de energia escapava, daí o processo de esvaziamento, eu acho, daí a murchabilidade contínua dos corpos.
      Veja que os meninos de agora, filhos dos primos de antes – que são meus sobrinhos por empréstimo – adotaram a mania nova de crescerem, tentando alcançar aos que, juntos de mim, assistiam ao encolhimento dos mais velhos. E veja que, falando do ritual encolhedor, faço eu também parte dele. E não sei durante qual noite, se de tarde ou pela manhã, contraí a adultice. Não atentei para o estado – perceba: os sinais, no entanto, são aparentes. Alguma coisa entre o café e os sorrisos emoldurados, na despedida dos homenzinhos de plástico, no aniversário que chega sem avisar por dentro, nas coxinhas de frango que contribuem para a macia condição das barrigas. Depois a invenção do colesterol, quando correr tornou-se uma necessidade e não uma condição natural dos passos. Talvez tenha sido por conta dos banhos recorrentes e do estranho gosto por pimenta. Talvez quando todos as criaturas se mudaram para outro escuro e o mistério do quarto tornou-se desabitado. Talvez quando os grilos e borboletas (daquelas grandes e barulhentas) ganharam aspectos menos horripilantes.
        Não sei ainda se cresci ou se começo a encolher. 
        Terminei o colégio, arrisquei a faculdade, passei ao mestrado, sou padrinho de alguns afilhados e penteio o cabelo todos os dias pela manhã. Se pá eu cresci, porque não me oferecem mais refrigerante sem antes perguntar: _Bebi? 
        Mas é claro que bebo.
        E durmo também e saio às vezes à missa e à sorveteria e acordo logo cedo e respiro como outros respiram. Devo ter crescido, porque os pequenos já não me chamam para o futebol de bolas leves e finas e quando me tomam pela mão é para pedir favores adiantados do crescimento, um plástico colorido que ficou no alto, água no filtro ou coisas na geladeira. Não me chamam para o pique – provavelmente pela desvantagem aparente das minhas pernas. Se não posso ser o mais rápido, de que vale ter o comprimento? Posso tantas outras coisas que antes não podia, é verdade, mas nada se compara ao ano contado em aniversários, aos agrados pós exame e aos fragmentos mil de um bombom de coco. Nada se compara a acordar no dia que se acorda – nunca mais, desde a infância, pode acordar no presente, é sempre no passado ou no futuro que levanto. Nada se compara ao achocolatado, à sessão matinal de desenhos animados, aos meus irmãos pequenos. Nada se compara às cigarras presas numa caixinha de fósforos e laçadas pelo pé com um barbante – nunca por mim, porque morria no nervoso – e às tanajuras despencando do céu e enchendo litros vazios enquanto se procura a rainha. Nada como as faxinas para dentro das gavetas e caixas velhas, do aglomerado riquíssimo de bugigangas aproveitáveis e trecos de fazer interesse.
        Cresci, eu acho. Se pá, foi. Porém, o que me dá mesmo vontade é chamar meu irmão e dar-lhe a máscara branca de dois furos para os olhos. Chamar ao Nando para despejarmos os bonecos todos no chão. Cantar com a minha irmã. O Niel para o videogame até de madrugada. A minha vontade mesmo era de ligar para o Nateios, agora na Grécia, e chama-lo para dormir lá em casa, depois, claro, de pedir à tia se dava permissão. Era chamar o Neco para terminar uma jogatina. Era o Mô-nego para comermos na lanchonete. Era o Cigano para o futebol no Jardim – no All Star Futebol Clube. Era corrermos todos do jardineiro. Era pregar carrinhadas no Fofão. Era tocar molho na F. e me arrepender horrivelmente depois. Era rachar a canela no skate. Era a Vila e a roça e o meu espanto ao perceber, na medida em que me passam os anos, o encolhimento das pessoas de cima.
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DEPOIS DE CONHECER O CÉU DE SANTO AMARO





O lindo ser dos vossos olhos belos.
E. B. Browning | Trad. F. Pessoa


Carlos, pensei em preparar uma canção que calasse - como dois olhos - o sorriso espontâneo dessa manhã de quinta-feira. A tarde talvez fosse azul, talvez, cruzando as pernas e bebendo, cortasse figurinhas e fumasse de piteira. Talvez a noite risse, talvez mentisse, não sei dizer. Pensei em falar, Carlos, – talvez – da Nova Poesia Brasileira Sociologicamente Considerada. O que você acha? Ou do Brasil como o Quinto Império Universal de Além Portugal. Talvez me desviar um pouco, terminar aquela resenha do Design para um Mundo Complexo, me arriscar – talvez - na Fotografia segundo Sebastião Salgado, publicar um ensaio sobre Especulações Numerológicas, trabalhar em um pequeno romance ou revisar artigos de gaveta...
sim
nada disso dará certo, não é? Sim, é verdade. Não hoje, não agora. Venho adiando há muito tempo - é culpa daquela mulher. Aquela das fotos, sabe? Perdoe-me o desabafo, mas ela possuiu minha caneta e, se passo ao computador, possui as teclas e possui tudo quanto mais eu tente como recurso. Se falo de jornais, lá está ela; se falo de mim, outra vez ela; se falo de esporte, mais outra vez, e se me calo, se fico em silêncio, ela inunda tudo o que não é palavra. Na segunda-feira, enquanto voltava para casa, depois de dar uma aula curta, o céu não tinha nuvens, estava limpo como são os olhos dela. E a rua começava a encher-se – era ainda cedo – como as coisas que ela faz e que se enchem de cuidados. Mais adiante, para depois da farmácia, estava um mecânico e suas roupas pareciam estar manchadas de limpo - quando em vez uma brecha aparecia na graxa e o verde se mostrava. Naquele momento me distraí
- graças a Deus –
e lembrei sem porquê de Whitman, Leaves of Grass, e dele fui à Bandeira Nacional e da bandeira fui à Portugal e de Portugal cheguei a Camões...

Menina dos olhos verdes
Por que me não vedes?

... e de aí notei minha volta. Ela, Carlos. Outra vez - pois bem que era. Comecei a tamborilar versos simples como “ver de perto e ver-te sempre / quando verde mais”, frouxos e simples. Na casa dos meus pais, por onde tenho estado, enchi gordamente uma xícara de café e o cheiro agradável e forte fez-me sentir sua presença perto. Não, não a sua, meu amigo, mas a dela.
Viu? De certa forma ela não tem culpa. É Outra aquela que me arrebata durante os longos intervalos de ausência da moça real. Ela - em mim - é a outra, a outra que sou Eu querendo a junto - é o meu desejo dela e não ela. Entende, Drummond? “Eu bem me entendo”. Sorte a sua. Ainda que eu escreva como quem escreve outra coisa, nessa coisa – que é outra – estará o nome dela, de alguma forma, no título haverá ela, mesmo que oculta, inocente e breve.  
            Ah! E não posso faltar com essa verdade: eu morreria por ela, mas viveria sem ela. Pode parecer estranho, mas por que almejar uma vida a dois, quando é melhor duas vidas a um? Não quero ser a terra de onde ela cresce, nem o jarro onde repousa. Não quero ser o seu dono, nem o jardineiro fiel que poda, sem restringir os galhos, o tamanho da subida. Eu desejo ser planta ao lado dela e dividir o solo, entrelaçar raízes, respirar o sol das coisas e me recolher quando houver noite. Quero voar ao seu lado, admirar seu voo, e não ser suas asas. Não quero ser ela, nem que ela seja o que eu sou.
É difícil, eu sei. Quem pode sobreviver à estreiteza do próprio tamanho? O que nós queremos, intimamente, é colonizar e tomar - por razão, sentimento ou força - um limite que não nos pertence, que não é nosso. Pode parecer escolha, Carlos, mas não é. Tudo ao redor tem a fôrma e a forma dela, porque a vontade são vontades e os caminhos são dois. Isso de seguir pela mesma estrada é uma bobagem das grandes, uma besteira sem tamanho - os braços aguentam a tensão e é possível caminhar de mãos dadas – cada qual no seu passo. Sei lá, poderíamos escrever um livro inteiro, uma enciclopédia, uma biblioteca de obras voltadas exclusivamente para o porquê de ser tudo que é da forma como é – acho que nem La biblioteca de Babel, com todas as suas possibilidades, comportaria tantos volumes.
            De uma maneira ou de outra, Carlos, fato é que - depois dela – olhar para o mundo e ver o que ele é - ou o que eu pensava que ele fosse - tem se tornado tão difícil quanto ouvir Bach depois de conhecer O Céu de Santo Amaro.
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