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Dançando no escuro


Um dos raros momentos em que o protagonista de Moonlight (Chiron) parece à vontade consigo mesmo e com o mundo é na aula de dança, na escola. Diante de um espelho enorme – e, aparentemente, nem aí para as crianças que dividem a sala com ele –, o menino sacode o corpo como se o ar (e a vida) não oferecesse resistência.

Negro, pobre, gay, criado apenas pela mãe (que se droga e se prostitui) no subúrbio de Miami, o jovem – interpretado por Alex R. Hibbert na infância, Ashton Sanders na adolescência e Trevante Rhodes na fase adulta – tem uma extensa lista de motivos para se sentir marginalizado e se esconder numa casa escura e abandonada ao fugir dos colegas que o perseguem, no começo do filme.

É particularmente bonita (pois metafórica) a cena em que ele é resgatado de lá por aquele que virá a ser o pai que nunca teve: Juan surge arrancando o tapume de uma das janelas, permitindo assim que o sol finalmente incida sobre Chiron. É como se o personagem vivido por Mahershala Ali desse à luz o pequeno – “batizado” mais tarde no mar pelo mesmo Juan em outra cena lindíssima, igualmente inundada de significado.

Uma e outra sequências são marcadas ainda pelo silêncio do garoto, traço tão ensurdecedor de sua personalidade, que atravessa todo o longa. Sua dificuldade em verbalizar os sentimentos vai do instante em que é acolhido por Juan e resiste a falar (até o próprio nome), passa pelo episódio em que apanha de um amigo e atinge o ápice no último ato, quando hesita ao máximo em revelar a certo personagem o quanto este foi (e ainda é) importante para ele.

Tais silêncios ecoam a delicadeza do roteiro e da direção de Barry Jenkins, que jamais se rende aos acordes tentadores do melodrama. Não por acaso o cineasta usa uma simples frase para informar ao espectador que fim levou Juan, dispensando dessa maneira uma cena que, nas mãos de um diretor menos sutil, elevaria os decibéis de glicose a níveis estridentes. Da mesma forma, em outra passagem capital da trajetória de Chiron, o mar e a mão que roçam a areia são suficientes para que a plateia escute o alvoroço de sensações experimentado pelo protagonista.

Numa época em que parece ganhar atenção apenas quem fala mais alto (pouco importando o que é falado), traz certo alívio ver um filme como esse – que sussurra o grito de tantos excluídos – vencer um prêmio tão barulhento quanto o Oscar, ainda mais quando o superultramegafavorito da noite é um musical, talvez o gênero que mais berre sua natureza de faz de conta.

Nada contra La La Land, de que também gosto e cujas canções assobio há semanas, mas dar voz à trilha sonora de uma vida que, em outros carnavais, não ganharia os alto-falantes de Hollywood ajuda os ouvidos a reeducarem a própria audição – e a expandirem o repertório de melodias disponíveis na jukebox que toca no peito.







Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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Herói


Eu não tenho nada a esconder, diz Lindsay (Shailene Woodley) a certa altura de Snowden, o mais recente filme de Oliver Stone.

Usado por muita gente para defender a vigilância em massa praticada por potências como os Estados Unidos, o argumento esfarela quando Snowden (Edward Snow..., digo, Joseph Gordon-Levitt) conta para a namorada que sabe que ela bisbilhota os perfis de outros caras nas redes sociais. De repente, uma ruga de indignação risca o rostinho bonito da moça, desenhando nele a palavra privacidade. 

Podemos não ter nada a esconder – mas temos hábitos, manias, segredos que jamais revelaríamos se nos fosse dada a chance de guardá-los apenas conosco. 

Foi justamente o direito de escolher o que tornar público sobre a própria vida que acabou deletado quando a Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana – em nome da... segurança – passou a monitorar o mundo inteiro. O mundo inteiro mesmo: incluindo você, seu vizinho paneleiro, sua ex-presidenta e até aquela famosa empresa brasileira do ramo do petróleo. Ingenuidade sua achar que o alvo era só o barbudinho com nome árabe que vende quibe perto da sua casa.

Ninguém escapa desse Big Brother de que todos nós participamos, à nossa revelia, e em que não recebemos cachê, muito menos corremos o risco de ficar milionários.

Mas e o combate ao terrorismo? Mera desculpa para o controle econômico e social, sublinha o ex-funcionário da NSA e da CIA (a Agência Central de Inteligência) em sequência-chave do longa-metragem – longa que acompanha sua trajetória desde a saída das Forças Armadas por problemas de saúde (e posterior admissão naqueles órgãos) até o momento em que ele resolve compartilhar o que sabia com o jornalista Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e a cineasta Laura Poitras (Melissa Leo).

Não custa lembrar que essa vocação do Tio Sam para meter o bedelho – e escutas – na soberania alheia é antiga. Isso fica evidente, por exemplo, no documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo Tavares, que daria uma ótima sessão dupla com o filme de Stone e é altamente recomendável para os brasileiros, especialmente os patrioteiros, que carregam no peito e no gogó muito orgulho, muito amor.

De volta ao thriller stoneano, é importante observar como o diretor desmonta a imagem de judas que Snowden tem para muitos conterrâneos (e para quem subtitulou a fita, aqui no Brasil, com aquele cafona “herói ou traidor”). O rapaz é retratado como um sujeito que sempre quis servir seu país: ele sofre por ter de abandonar o Exército em razão das lesões causadas pelos exercícios militares; ele afirma que os Estados Unidos são a maior nação do mundo, num teste a que é submetido para entrar na CIA; ele se incomoda quando Lindsay critica Bush, o commander-in-chief na época em que a conhece.

Snowden delata a espionagem não porque seja contra a América ou seus valores, mas porque deseja preservar alguns dos pilares que a sustentam: de um lado, o óbvio direito à privacidade; do outro, o de qualquer cidadão questionar as atitudes do governo. Ao defender essas premissas, ele entende estar, mais uma vez, a serviço de seu país. Essa coerência – que permeia o arco dramático do personagem – só fortalece a simpatia e a admiração que o espectador desenvolve por ele.

Nem precisava o roteiro recorrer ao clichê da cena-em-que-a-plateia-levanta-e-aplaude-de-pé-o-herói para salientar a relevância de seu protagonista.

Só o fato de Snowden ter deixado para trás família, namorada, amigos, carreira promissora, bom salário, a liberdade de andar por onde quisesse (inclusive sua terra natal), somado ao tamanho do inimigo que ele enfrentava – o que se materializa na sequência em que Corbin O’Brian (Rhys Ifans) surge imenso e ameaçador na tela, à la Chanceler Sutler em V de vingança –, já seria motivo suficiente para não duvidarmos da força daquele moço, franzino apenas por fora.

Espiando a aventura vivida por ele e pensando na realidade brasileira – sufocada por um “governo” que exige os nomes de alunos que ocupam escolas em protesto contra medidas autoritárias, ou que perde tempo tentando bloquear os emojis de vômito em notícias relacionadas ao seu “presidente” no Facebook, numa demonstração clara de que não consegue conviver com a democracia –, me pergunto como cada um de nós gostaria de enxergar a si mesmo daqui a alguns anos...

... como alguém feito Snowden – que se rebelou contra um sistema opressor e já tem seu lugar entre os heróis de nosso tempo – ou alguém feito o engenheiro interpretado por Nicolas Cage (Hank Forrester), que se resignou diante de uma injustiça e acabou exilado dentro do próprio país, numa sala cheia de bugigangas sem serventia (ele entre elas), esquecido numa espécie de almoxarifado da História?

Responder a essa pergunta não deveria ser tão difícil quanto solucionar o cubo mágico que o jovem programador carrega como amuleto.







Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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A era de


Parafraseando a canção de Taiguara que abre e fecha o filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius traz no corpo as marcas de seu tempo.

Hoje a mulher diz não.

Clara (Sonia Braga em modo musa) se recusa a vender para a construtora Bonfim o último apartamento do edifício Aquarius – onde mora há décadas, onde seus filhos cresceram e onde discos e livros e lembranças contrastam com a assepsia das cidades erguidas cada vez menos por pessoas, cada vez mais por criaturas que se formam em business schools e trocam sonhos por metas, a exemplo do jovem Diego (Humberto Carrão, excelente como o tubarão em pele de golfinho).

Certeza de que doeu ali, entre as pernas dele e do avô, escutar a dona do imóvel repetir “Eu não vou vender, seu Geraldo. O senhor já sabe disso”. Duas frases que ela profere sem elevar a voz; com a suavidade quase blasé de quem está “puta mas não estressada”, como revela mais tarde, numa conversa dura com as crias, especialmente com Ana Paula (Maeve Jinkings, amarga sem ser azeda).

Se dependesse da filha, Clara já tinha aceitado a oferta “generosa” da Bonfim e se mudado para um desses condomínios de segurança máxima e alma mínima, os estrangula-céus de nossas metrópoles. Mas quem perdeu o marido e até uma parte do corpo (o seio direito) não aceita novas perdas tão facilmente; ela aprendeu a valorizar cada conquista. Não por acaso conserva os cabelos longos – símbolo óbvio, mas não menos poderoso, de sua vitória sobre o câncer.

Símbolos, aliás, não faltam no álbum de metáforas montado pelo diretor e roteirista pernambucano. Um dos mais emblemáticos – porque rima à perfeição com o apê de Clara, que também guarda mais que objetos pessoais e, por isso, transcende o tal “valor de mercado” – é a cômoda que guarda mais que as camisolas de tia Lúcia (Thaia Perez). Aqui é particularmente interessante o efeito que causa no público a descoberta do que representa aquele simples móvel para uma senhora de setenta anos.

Kleber gosta de provocar. E faz isso em diversos momentos, como na sequência angustiante em que mulheres e homens surgem na praia gargalhando, numa espécie de ginástica do riso, e de repente o treinador que os orienta – contrariando a expectativa gerada pelo preconceito da plateia – convida a participar do exercício os “estranhos” que se aproximam.

Passagens como essa ajudam a retratar o país que a lente crítica do diretor vê. E se espalham nas mais de duas horas de projeção. É a parede do bistrô que ostenta fotos em preto e branco de homens brancos-ricos-velhos, numa alusão aos donos do poder local – e, por que não, nacional, se lembrarmos o ministério machocrata do atual “governo”. É o rapaz de “boa aparência” que vende drogas na orla. É a louça na pia em dia sem Ladjane (Zoraide Coleto, brilhante nas menores falas), numa referência aos direitos recentemente conquistados pelas domésticas. É a manchete do jornal (“Eu gosto de mp3”) que resume a manipulação midiática.

Nenhuma delas se compara, no entanto, à que denuncia uma colônia de insetos infestando certo lugar e comprometendo sua estrutura. A cena põe para formigar a mente do espectador sessão afora. É inevitável relacionar o ninho à oligarquia de parasitas que, ao envenenar o frágil alicerce da democracia brasileira, mostrou ser possível expulsar uma personagem incômoda – de um apartamento ou de um palácio presidencial – sem usar a força bruta. Afinal, como observou Zuenir Ventura em artigo sobre o filme, “há meios mais eficientes que os tratores ou os tanques”.

Por apresentar um forte teor político, explicitar sua visão ideológica e se entregar a um desfecho catártico, há quem acuse Aquarius de dispensar a sutileza e se render a maniqueísmos. É evidente que Kleber recorre a um cinema mais tradicional, no qual heroína e vilão são rapidamente identificados. Mas ele não cria, a partir desses elementos, uma realidade menos verossímil. Longe disso. Na verdade, ultimamente tem sido até fácil encontrar claras dando aulas em nossas universidades e diegos dando entrevistas em programas de economia da Globonews.

O que o cineasta faz é apenas fotografar a velha flor que fura o asfalto – que resiste à fossa e à fome causadas pelo tumor da ganância. Esse que ainda vai acabar nos levando ao fim do mundo.







Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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Como eliminar seu chefe



Que os empregados não se animem e os patrões não se desesperem: não vou socializar nenhuma cartilha homicida a ser aplicada em diretores, gerentes e afins. Só quero falar um pouquinho do filme de mesmo nome estrelado por Jane Fonda, Lily Tomlin e Dolly Parton nos anos oitenta (Nine to five, no original). É que eu o revi recentemente e ele se mostrou ainda melhor do que a memória supunha.

Um resumo para quem não conhece a história: cansadas de sofrer diariamente as humilhações impostas pelo Sr. Hart (Dabney Coleman) – um chefe acostumado a assediar funcionárias e usar suas boas ideias como se fossem dele –, Judy (Fonda), Violet (Tomlin) e Doralee (Parton) se unem para derrubá-lo.

A premissa simples apenas disfarça as horas extras que o desenvolvimento do enredo deve ter exigido dos roteiristas Patricia Resnick e Colin Higgins (que também dirige o longa). Ali cada fala, cada gag, cada cena aparentemente passível de demissão por justa causa cumpre um papel fundamental na comédia de erros que toma a vida das protagonistas. Não é à toa que Doralee, após a enésima cantada do patrão, o adverte de que falsifica sua assinatura como ninguém. Não é por acaso que a cadeira do cafa quase o derruba quando o vemos pela primeira vez. Não é sem motivo que Violet mostra tamanha habilidade ao instalar um portão de garagem automático.

Entre tantas passagens hilárias (como a que envolve o roubo de um cadáver ou a que reúne Judy, seu ex, um suposto amante, S&M e... M&Ms), talvez a que mais se destaque seja a da happy hour, quando o trio dá umas tragadas antes de imaginar maneiras de se livrar de Hart. Particularmente inspirados são o delírio country de Doralee – em que o patife surge na condição de secretário assediado e Coleman pode exercitar sua versatilidade – e a fantasia disneyana de Violet – que conta com recursos de animação e uma princesa perversa para recuperar o lado sombrio dos contos de fada. 

Não bastasse isso, a sequência revela elementos que serão retomados ao longo da trama (os tiros, o chefe amarrado, o veneno de rato), o que rende um divertido jogo de espelhos entre sonho e realidade.

Igualmente divertido (e inteligente) é o uso das cores. Se nos minutos iniciais da projeção somos apresentados a um ambiente de trabalho mergulhado no branco, no gelo, no cinza, e supervisionado por uma criatura (Roz Keith) fardada com um tailleur verde-oliva (o que sugere sua severidade militar), nos finais – após as mil mudanças promovidas no setor, como creche para os filhos dos funcionários e horário flexível – o mesmo espaço aparece imerso no amarelo, no laranja, no vermelho, refletindo um clima menos frio e impessoal.

Ainda as cores mais quentes: em sua primeira aparição, Violet desponta apenas com detalhes vermelhos (batom, brincos e broche); já no último ato, exibe um figurino inteiramente nesse tom (saia, camisa e sobretudo), como se ela própria metonimizasse a atmosfera do lugar. Interessante notar que Judy e Doralee surgem ao seu lado vestidas, respectivamente, de azul e branco – insinuando uma referência aos ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade. Evidência disso é o fato de Roz, que acabara de voltar da França, exclamar um espantado “Holy merde!” ao ver as três na sala de Hart celebrando a derrocada do biltre, enquanto dividem um espumante.

Eu ainda estenderia o brinde ao talento das atrizes. À insegurança que Fonda confere a Judy: o sentimento vai se deteriorando à medida que a personagem se adapta ao seu novo dia a dia, e o auge de seu amadurecimento se dá na cena em que ela finalmente enquadra o ex (“Não me diga o que eu posso ou o que eu não posso fazer”). À aparente ingenuidade que Parton concede a Doralee: a princípio, a secretária finge não perceber as investidas do patrão porque precisa do emprego. À sagacidade com que Tomlin pinta Violet: esse traço fica nítido na sequência em que ela se equilibra entre a indignação e o deleite ao explicar para o dono da companhia as transformações que ele acredita terem sido implantadas por Hart.

Nítido também é o preconceito do todo-poderoso da firma, que decide vetar uma das principais novidades introduzidas na seção: a política de igualdade salarial entre homens e mulheres. E dá desânimo constatar que, mesmo trinta e tantos anos após o lançamento do filme, essa injustiça ainda não foi inteiramente reparada e encontra defesa em certos magnatas do machismo – que chegam a afirmar que mulher deve ganhar menos porque tem filho, tira licença-maternidade e gera prejuízo para as empresas.

Pensando bem (no caso desses escroques), quem sabe a distribuição de uma cartilha homicida a suas subordinadas não fosse uma ideia a ser considerada.







Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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Quem você vai chamar?


Agora não é mais uma mulher que berra ao topar com um fantasma. É um homem que berra – e se borra – ao fazer contato com uma criatura do outro mundo.

Traduzido no país do ministério só-de-machos como Caça-fantasmas (embora o original contasse com o artigo masculino), o novo Ghostbusters não inverte os sinais apenas em sua sequência inicial; ao apostar num quarteto feminino para envergar as célebres mochilas de prótons, vai ao além, digo, vai além – e se estabelece como uma obra sensível a um tema relevante de sua época: a igualdade de gênero.

Reconheço ter ficado ligeiramente decepcionado com o reboot, quando soube que Bill Murray, Dan Aykroyd e Ernie Hudson não reprisariam seus papéis como Peter Venkman, Raymond Stantz e Winston Zeddmore, respectivamente. No entanto, após vê-lo, entendi a decisão: a presença deles interpretando os antigos personagens acabaria forçando os roteiristas a tratá-los como mentores ou inspiração das garotas.

E tudo que AS caça-fantasmas não quer é cair no clichê das mocinhas que, na hora do pesadelo, precisam de uns marmanjos para ajudá-las.

Uma das qualidades do longa dirigido por Paul Feig é justamente incorporar as reações histéricas daqueles seres que, ao descobrirem que a versão nova seria protagonizada por quatro mulheres, passaram a fazer a linda blair e revirar os próprios pescoços. Vide a cena em que Erin (Kristen Wiig) lê comentários sobre um vídeo no Youtube e um deles diz que “vadia nenhuma vai caçar fantasmas”.

Mas o filme não se restringe ao exorcismo dessas almas penadas – que ainda não fizeram a passagem para um plano superior na escala de evolução.

Entre suas virtudes, está o timing cômico do elenco. Kristen Wiig, Melissa McCarthy e Chris Hemsworth são tão precisos, que até piadinhas bobas como a que menciona o bichinho de estimação de Kevin (Hemsworth) arrancam risadas. Igualmente expressiva, Leslie Jones se destaca mesmo nas menores falas: “Ok, sala cheia de pesadelos...”, sussurra Patty com seus botões ao dar de cara com um monte de manequins.

Uma das atrizes, porém, assombra as expectativas. É Kate McKinnon. As passagens em que Holtzmann dança “Rhythm of the night” ou quebra uma guitarra ou se diverte experimentando (e assustando de) chapéu e peruca são só algumas em meio a tantas nas quais ela surge possuída pelo demônio da insanidade – o que me lembrou a performance arriscada mas bem-sucedida de Johnny Depp como Jack Sparrow, o pirata em cujas veias corria rum.

Eu adoraria me espantar com (muitas) aparições de McKinnon na próxima temporada de prêmios.

Tão divertidas quanto as manifestações de sua personagem são as referências aos Ghostbusters originais. Estão lá a eterna canção de Ray Parker Jr. – que baixa em vários momentos –, o famoso logo – que a montagem reverentemente esconde até os últimos segundos da cena que envolve um jovem grafiteiro – e outras citações menos óbvias, como Erin afirmando que “livros não podem voar e bebês também não”.

Já as meninas podem, se quiserem; podem voar para longe daquela encruzilhada onde só lhes restava ser princesas e esperar um príncipe para alcançar a felicidade. Num filme como As caça-fantasmas, mulheres não são mais receptáculo de velhos estereótipos, nem chamam ninguém: são ELAS as chamadas. Contando totalmente umas com as outras, pegam as chaves de seu Ecto 1 e vão à luta.

E ai do espírito (de porco) que ousar impedi-las.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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Profissão repórter


Recentemente, o jornal O Globo defendeu em editorial a “modernização” da legislação trabalhista como saída para “preservar os empregos atuais” e “acelerar a criação de novos”. Não satisfeito em acusá-la de “arcaica”, afirmou ainda que a CLT (a Consolidação das Leis do Trabalho) tinha sido inspirada “no fascismo de Benito Mussolini”, numa clara tentativa de demonizá-la ao relacionar sua origem a um regime totalitário.

À época, comentei com amigos que a história se repetia; bastava um momento de crise econômica para que os grupos midiáticos – grandes empresas que vivem do dinheiro de outras grandes empresas (os anunciantes) – apontassem como solução de todos os problemas o ataque aos direitos adquiridos dos trabalhadores. Brinquei ainda que logo, logo iam recomendar a volta da escravidão como antídoto contra o desemprego: casa, comida e trabalho garantidos até o fim da vida.

Seguindo uma tradição de décadas – vide a antiga capa da mesma publicação em que se anunciava o quão desastrosa seria para o país a criação de um décimo terceiro salário –, o jornalismo brasileiro de massa tem, com poucas exceções, assumido cada vez mais a posição de mero hipermercado de factoides e reles assessoria de imprensa da elite econômica e do capital financeiro.

Outro exemplo? Matéria publicada também em O Globo, há alguns meses, sobre o número de acidentes nas rodovias federais. Entre suas principais causas, eram apontados “o despreparo dos motoristas e a falta de manutenção dos veículos”, mas não era mencionada a batida combinação direção + bebida alcoólica. Às vésperas do Carnaval – período em que, provavelmente, as cervejarias gastam fortunas ainda maiores com publicidade –, talvez não fosse conveniente fazer tal associação.

Diante de um cenário desses, em que o negócio vale mais que a notícia, fico imaginando quantas histórias de abuso sexual envolvendo padres deixariam de vir à tona se o editor Marty Baron, recém-chegado ao The Boston Globe, tivesse recuado ao ouvir de um superior que mais da metade dos leitores do jornal era católica. Pois ele não só ignorou a pressão do chefe e do mercado, como ainda escalou seu melhor time de jornalistas – o Spotlight que dá título ao filme de Tom McCarthy, indicado a seis Oscars – para investigar os crimes de pedofilia cometidos por párocos na capital de Massachusetts.

Baseado em fatos que ocorreram nos idos de 2001 – quando a internet começava a disputar “consumidores” com a mídia impressa, o que torna a decisão de Baron (Liev Schreiber) ainda mais admirável –, o longa mostra a equipe formada por Walter Robinson (Michael Keaton), Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Matt Carroll (Brian d’Arcy James) e Mike Rezendes (Mark Ruffalo) descendo aos porões de casos aparentemente isolados e, de repente, descobrindo a máfia que sobrevivia graças à cumplicidade entre o alto escalão da Igreja e a sociedade local.

Uma fala do advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci), veterano em assistir as vítimas dos estupros, ilustra bem a situação: “If it takes a village to raise a child, it takes a village to abuse them. That’s the truth of it” (“Se é necessária uma aldeia para criar uma criança, é necessária uma aldeia para abusar dela. Essa é a verdade”).

Verdade que os integrantes do Spotlight perseguem com tanta dedicação que mais parecem exercer um sacerdócio – o que não deixa de ser irônico, levando-se em conta quem eles investigam. Coerentemente, o roteiro do próprio McCarthy e de Josh Singer pouco se interessa por suas vidas pessoais. De Robinson, sabemos que joga golfe; de Sacha, que tem uma avó religiosa; de Matt, que se preocupa com os filhos; de Mike, que corre nas horas de folga até... o trabalho.

Eixo de uma narrativa sem floreios e (quase) sem humor, a busca do quarteto – que exige meses de pesquisa, apuração, entrevistas – alcança ainda mais relevo em razão da ausência de perseguições alucinantes, melodramas artificiais ou quaisquer outros artifícios que pudessem desviar a atenção da plateia. Recursos mais sutis ajudam a sublinhar a dimensão da empreitada, como a presença de templos católicos no fundo de várias sequências ao ar livre, o que sugere uma atmosfera de ameaça constante.

Ao final da projeção (em que é relatado, entre outros desfechos, o inacreditável destino de certo cardeal, suspeito de acobertar os pecados de seus padres), o espectador sai do cinema com a certeza de ter acompanhado uma lição de bom jornalismo – coisa rara em tempos de tabloides cada vez mais angustiados com o número de cliques em seu crescente conteúdo online. Não por acaso, o que deveria ser usado como instrumento importante da democracia tem dado lugar a manchetes sensacionalistas (muitas vezes fruto de acusações sem provas) e artigos de meia página cuja relevância só não é maior do que a das inspiradas notinhas dos cadernos de entretenimento.

Sempre dispostas a advertir o leitor de que “Caetano atravessa rua no Leblon” ou de que “Chico compra baguetes para o lanche da tarde”.








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Menos muros, mais pontes


Estados Unidos, 1957. As bruxas da Guerra Fria todas soltas. Enquanto os americanos temem um ataque nuclear no quintal de casa e a possibilidade de suas crianças virarem comida de comunista, o advogado especializado em seguros James B. Donovan (Tom Hanks) é convocado por Washington para defender – pró-forma – o espião russo recém-capturado Rudolf Abel (Mark Rylance).

Essa é a história real que Steven Spielberg resgata em Ponte dos espiões – um filme em que o cineasta expõe não só a hipocrisia de uma nação que se diz democrática (e é capaz de promover um julgamento apenas para manter as aparências), mas também a estupidez de um governo que não percebe que executar seu prisioneiro significa desperdiçar uma valiosa moeda de troca.

Pena que a coragem temática do diretor resvale na sua eventual falta de sutileza: o momento em que Donovan discursa na Suprema Corte não carecia de tanta música e montagem – a interpolação entre a fala do advogado e a decolagem do piloto Francis Gary Powers (Austin Stowell) rumo à sua missão na União Soviética é usada tão somente para reiterar aos berros o heroísmo do primeiro.

Pa-ra-quê? Pa-ra-quem? Que espectador ainda não tinha reparado o quão capitão-américa era aquele homem comum que enfrentava o Sistema?

Sutileza, porém, não falta à atuação de Rylance. O ator interpreta Abel ciente de que a discrição deve ser o principal talento de qualquer espião. É especialmente simbólica a sequência, ainda no início do longa, em que ele desvia a atenção dos agentes do FBI – para uma dentadura inclusive – enquanto literalmente apaga um arquivo importante. Certeza de que outro James (não o Donovan) o aplaudiria de pé.

Merece aplausos também o humor com que os irmãos Coen adoçam o roteiro: o Nescafé com dois torrões de açúcar e creme, oferecido ao personagem de Hanks assim que o advogado põe as digitais na CIA, é uma forma divertida e elegante de mostrar que a agência sabe tudo sobre ele. Outra piada bastante eficaz é a que brinca com os nomes enooooormes das nações socialistas.

Mais do que eficazes – inspiradíssimas – são algumas transições entre cenas, como a passagem que começa no tribunal (com o juiz pedindo que o público fique de pé) e termina na escola (com as crianças levantando para um juramento à pátria), ou a que se inicia no hangar onde os pilotos conhecem certo avião e acaba na mesa onde estão os objetos apreendidos no apartamento de Abel.

Esses links (os raccords, como me ensinou Pablo Villaça) reverberam ainda mais numa história em que pontes superam muros, seja o de Berlim – que Donovan é obrigado a atravessar para negociar a troca entre Abel e Powers, detido pelos russos –, seja o do ódio – erguido pelos americanos ao constatarem que o advogado faria o que estivesse ao alcance da lei para defender seu cliente.

Um dos raros seres pensantes do lado ianque (justamente por se manter imune à paranoia inoculada em seus compatriotas), o protagonista se converte na ponte a que o título se refere. Tal metáfora ganha forma na última tela que Abel pinta e com a qual presenteia Donovan – uma tela que rima à perfeição com a da ponte do Brooklyn, retocada pelo espião ainda nos primeiros minutos do filme.

Em tempos de fronteiras ainda mais fechadas – e não falo apenas das cercas construídas por aqueles países avessos a refugiados ou imigrantes, mas em especial dos tapumes que tantos têm colocado nas próprias mentes –, nada mais oportuno do que recuperar a aventura de um sujeito que usou a inteligência e o diálogo como as únicas armas possíveis contra a ignorância e o medo.








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Espanando a relação


Um filme que abre as janelas de uma casa grande (daquelas com várias suítes, piscina, dependências) e tira das sombras o convívio aparentemente pacífico entre uma família de classe média alta e a empregada que lá trabalha. Uma história de encontros e desencontros entre mães e filhos. Um retrato – com o filtro do otimismo – de um país em transformação.

Dirigido e roteirizado por Anna Muylaert, Que horas ela volta? narra o cotidiano arrumadinho de Val (Regina Casé), doméstica como tantas outras (ainda) espalhadas por mausoléus Brasil afora. Só que, de repente, essa vidinha com cada coisa em seu lugar é desarrumada por Jéssica (Camila Márdila), a filha que deixa o Nordeste para prestar vestibular em São Paulo e termina se hospedando no local de serviço da mãe. Bem informada e com a autoestima de quem não se considera inferior a ninguém, a jovem começa a questionar o comportamento submisso de Val diante dos patrões, o que acaba expondo o apartheid ali existente.

Por contar uma história infelizmente brasileiríssima – sem varrer para debaixo do tapete o que ainda resta do legado escravagista em nosso dia a dia –, o longa escolhido para ser o representante brasileiro no Oscar é capaz de servir de espelho para públicos tão distintos (e distantes?) quanto o do Morumbi e o da Zona Leste, só para ficar na geografia social paulistana. Improvável a plateia não enxergar a si mesma nos andares daquela pirâmide de muros quase inescaláveis há alguns anos.

Quantas senhoras de bem não se identificarão com “dona” Bárbara (Karine Teles acertadamente contida, sem as afetações das madrastas dos contos de fada), a patroa que, de tão “generosa”, trata sua criada de tantos e tantos anos como um membro “praticamente da família”? Quantas marias não se reconhecerão na Val, a empregada que, de tão competente, já “nasceu sabendo sua posição”?

Aqui um paninho rápido na atuação de Regina Casé: notável sua capacidade de migrar das cenas bem-humoradas – como a que a traz tentando decifrar o jogo de xícaras e garrafa térmica com o qual presenteia a dona da casa – para as mais dramáticas – como a que acompanha a discussão dela com a filha em sua cela, ops, quartinho, pouco antes de a menina deixar a mansão em meio a uma chuvarada.

Igualmente notável é a sutileza do roteiro – que não só se destaca por passagens escancarada e lindamente simbólicas, como quando Val enfim entra na piscina, mas também por tomadas tão silenciosas quanto expressivas, como aquela em que a personagem, depois de estender as roupas no varal, resolve sentar-se, fechar os olhos e descansar brevemente sob o sol.

Outra sequência que não deve passar entre nuvens – e que só ratifica o cuidado do roteiro com os detalhes – é a que mostra Val e Jéssica tomando café juntas, nos minutos finais da projeção: o espectador atento vai reparar que xícaras e pires não descombinam mais. Discreta metáfora para aquilo que por tanto tempo esteve fora do lugar (mãe e filha) e agora está onde sempre deveria ter estado. Uma ao lado da outra.

É bem possível que alguns – os que não querem enxergar a faxina pela qual o país começou a passar na última década, e/ou não se conformam que a roupa suja da senzala esteja sendo finalmente lavada – acusem o filme de apostar ingenuamente na esperança, ainda mais num momento em que as manchetes só ecoam caos e crise. Pois eu apostaria também. Especialmente depois de ver, nos classificados, que os novos imóveis não vêm mais com aquele velho quartinho virado apenas para a cozinha.

Agora ele é reversível.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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Sem filtro


Sem efeitos especiais, sem heróis e vilões, sem reviravoltas mirabolantes, apenas a vida como ela é: um almoço em família, uma briga entre irmãos, uma tarde que não passa, uma noite que poderia ter sido, um presente inesperado, uma viagem inesquecível, um dia de muito trabalho, um papo sério, uma partida de boliche, uma aula chata, um gramado macio, uma estrada pela frente.

Assim é Boyhood, a história que Richard Linklater levou doze anos filmando e que segue a infância e juventude do menino Mason (Ellar Coltrane).

Raras vezes assisti a um filme cujo ritmo captasse tão bem o fluxo dos dias, das semanas, dos meses, dos anos. Que fotografasse com tanta precisão o tempo como a sucessão de agoras que ele é. Sem nunca soar episódico, atinge uma fluidez só possível graças ao roteiro que escorre feito areia na ampulheta e à montagem discreta, que em momento algum chama a atenção para si.

O que também ajuda a jamais confundirmos as diferentes fases vividas pelos personagens é o fato de acompanharmos seu envelhecimento real e as notícias que afetam seu cotidiano, como a guerra do Iraque, as eleições para presidente nos Estados Unidos, o lançamento de mais um Harry Potter, o surgimento e o uso do Facebook.

Prova talvez maior da maturidade do roteiro e da direção é que não há flashbacks, não há narrações em off, não há personagens pensando em voz alta. O que tem de ser dito se mostra na tela na medida certa, sem supérfluos que subestimem nossa inteligência – não há necessidade de que se marrete uma ideia na cabeça da plateia ou de que se esfregue um sentimento no coração do espectador.

Ou alguém precisava desenhar que o apego do personagem de Ethan Hawke por determinado carro era símbolo de um sujeito que teimava em não crescer?

Igualmente digno de aplauso – pelo menos para quem sabe o quão difícil é traduzir a vida sem confiná-la em moldes – é o cuidado de Linklater em não resvalar no melodrama. E, convenhamos, não faltava material para isso, já que Olivia (Patricia Arquette) se envolve frequentemente com homens que têm problemas com bebida. Exemplo dessa contenção do roteiro é a cena de violência doméstica que não testemunhamos: vemos apenas a mãe de Mason já caída na garagem, enquanto o marido avisa ao garoto que ela havia sofrido um acidente.

Um último mérito (ainda que não menos importante): os diálogos. Destaque para a conversa sobre a existência ou não de magia no mundo, na qual Mason pergunta ao pai (Hawke) se elfos e afins são invenções. “E se eu lhe contasse a história de um ser gigante que vive nas profundezas do oceano, que canta e é tão grande que seu coração é do tamanho de um carro? Acharia isso mágico, não?”, ele responde entre rugas de dúvida e doçura.

Quem sabe aí esteja uma chave para interpretar a vida e, por que não, o próprio filme: para os desatentos (só para eles), nada realmente mágico acontece.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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Se chorei ou se sorri


Definição melhor não há para Divertida mente: filme cabeça. Não bastasse ter como cenário principal o cérebro de uma menina de onze anos (Riley) e como protagonistas as emoções que lá habitam – Alegria, Medo, Nojinho, Raiva e Tristeza –, o novo longa da Pixar ainda apresenta um conjunto tão vasto de boas ideias, que ofuscaria até uma viagem à cachola de Freud guiada por Charlie Kaufman.

Que neurônio não sorri diante daquelas criaturinhas aspirando e descartando as lembranças mais antigas? Que não gargalha toda vez que certo jingle é repetido? Que não pega carona no trem do pensamento? Que não se encanta com as ilhas que sustentam a personalidade de Riley e que, com a passagem da infância para a adolescência, desmoronam e precisam ser reconstruídas?

Quantas sinapses não são feitas quando três personagens invadem a sala do pensamento abstrato e sofrem uma espécie de picassoalização das suas formas (numa sequência que brinca com a própria natureza da animação)? Quantas zonas da massa cinzenta não são reativadas quando certa criatura assustadora – que repousava nos confins do inconsciente – precisa ser acordada? Quantos neurotransmissores não são produzidos quando somos levados ao lugar onde os sonhos são fabricados – algo como uma Hollywood intracraniana?

Mesmo que se resumisse a esses conceitos – todos tão bem resolvidos visualmente, que em geral prescindem de grandes explicações para que sejam entendidos (vide as memórias, representadas pelas esferas coloridas) –, Divertida mente já seria um filmaço. Mas não. Ele vai muitíssimo além de um desfile de alegorias digno de nota dez em originalidade.

Numa época em que não compartilhar selfies de felicidade absoluta a cada segundo é indício de câncer emocional em processo de metástase, um filme que trata a Tristeza com tezão, conferindo-lhe status de personagem indispensável à vida de qualquer ser humano, merece toda a atenção e reverência. É um insight de ousadia e coragem em meio a tanto déjà-vu nas telonas.

Em ritmo de aventura (o que entretém os ainda miúdos), o roteiro mostra ao espectador e à Alegria – habituada a afastar a Tristeza do painel de comando – que não amadurecemos apenas com sorrisos: lágrimas são mais do que necessárias para que possamos pavimentar novas estradas dentro de nós mesmos e erguer pontes mais seguras entre nossas emoções e o mundo.

Falando em pontes, sugiro ao leitor que atravesse uma até o cinema mais próximo. Já. Se quiser experimentar a sensação de uma doce amnésia do senso comum.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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