quinta-feira, 18 de junho de 2015

DEPOIS DE CONHECER O CÉU DE SANTO AMARO





O lindo ser dos vossos olhos belos.
E. B. Browning | Trad. F. Pessoa


Carlos, pensei em preparar uma canção que calasse - como dois olhos - o sorriso espontâneo dessa manhã de quinta-feira. A tarde talvez fosse azul, talvez, cruzando as pernas e bebendo, cortasse figurinhas e fumasse de piteira. Talvez a noite risse, talvez mentisse, não sei dizer. Pensei em falar, Carlos, – talvez – da Nova Poesia Brasileira Sociologicamente Considerada. O que você acha? Ou do Brasil como o Quinto Império Universal de Além Portugal. Talvez me desviar um pouco, terminar aquela resenha do Design para um Mundo Complexo, me arriscar – talvez - na Fotografia segundo Sebastião Salgado, publicar um ensaio sobre Especulações Numerológicas, trabalhar em um pequeno romance ou revisar artigos de gaveta...
sim
nada disso dará certo, não é? Sim, é verdade. Não hoje, não agora. Venho adiando há muito tempo - é culpa daquela mulher. Aquela das fotos, sabe? Perdoe-me o desabafo, mas ela possuiu minha caneta e, se passo ao computador, possui as teclas e possui tudo quanto mais eu tente como recurso. Se falo de jornais, lá está ela; se falo de mim, outra vez ela; se falo de esporte, mais outra vez, e se me calo, se fico em silêncio, ela inunda tudo o que não é palavra. Na segunda-feira, enquanto voltava para casa, depois de dar uma aula curta, o céu não tinha nuvens, estava limpo como são os olhos dela. E a rua começava a encher-se – era ainda cedo – como as coisas que ela faz e que se enchem de cuidados. Mais adiante, para depois da farmácia, estava um mecânico e suas roupas pareciam estar manchadas de limpo - quando em vez uma brecha aparecia na graxa e o verde se mostrava. Naquele momento me distraí
- graças a Deus –
e lembrei sem porquê de Whitman, Leaves of Grass, e dele fui à Bandeira Nacional e da bandeira fui à Portugal e de Portugal cheguei a Camões...

Menina dos olhos verdes
Por que me não vedes?

... e de aí notei minha volta. Ela, Carlos. Outra vez - pois bem que era. Comecei a tamborilar versos simples como “ver de perto e ver-te sempre / quando verde mais”, frouxos e simples. Na casa dos meus pais, por onde tenho estado, enchi gordamente uma xícara de café e o cheiro agradável e forte fez-me sentir sua presença perto. Não, não a sua, meu amigo, mas a dela.
Viu? De certa forma ela não tem culpa. É Outra aquela que me arrebata durante os longos intervalos de ausência da moça real. Ela - em mim - é a outra, a outra que sou Eu querendo a junto - é o meu desejo dela e não ela. Entende, Drummond? “Eu bem me entendo”. Sorte a sua. Ainda que eu escreva como quem escreve outra coisa, nessa coisa – que é outra – estará o nome dela, de alguma forma, no título haverá ela, mesmo que oculta, inocente e breve.  
            Ah! E não posso faltar com essa verdade: eu morreria por ela, mas viveria sem ela. Pode parecer estranho, mas por que almejar uma vida a dois, quando é melhor duas vidas a um? Não quero ser a terra de onde ela cresce, nem o jarro onde repousa. Não quero ser o seu dono, nem o jardineiro fiel que poda, sem restringir os galhos, o tamanho da subida. Eu desejo ser planta ao lado dela e dividir o solo, entrelaçar raízes, respirar o sol das coisas e me recolher quando houver noite. Quero voar ao seu lado, admirar seu voo, e não ser suas asas. Não quero ser ela, nem que ela seja o que eu sou.
É difícil, eu sei. Quem pode sobreviver à estreiteza do próprio tamanho? O que nós queremos, intimamente, é colonizar e tomar - por razão, sentimento ou força - um limite que não nos pertence, que não é nosso. Pode parecer escolha, Carlos, mas não é. Tudo ao redor tem a fôrma e a forma dela, porque a vontade são vontades e os caminhos são dois. Isso de seguir pela mesma estrada é uma bobagem das grandes, uma besteira sem tamanho - os braços aguentam a tensão e é possível caminhar de mãos dadas – cada qual no seu passo. Sei lá, poderíamos escrever um livro inteiro, uma enciclopédia, uma biblioteca de obras voltadas exclusivamente para o porquê de ser tudo que é da forma como é – acho que nem La biblioteca de Babel, com todas as suas possibilidades, comportaria tantos volumes.
            De uma maneira ou de outra, Carlos, fato é que - depois dela – olhar para o mundo e ver o que ele é - ou o que eu pensava que ele fosse - tem se tornado tão difícil quanto ouvir Bach depois de conhecer O Céu de Santo Amaro.

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.