DEPOIS DE CONHECER O CÉU DE SANTO AMARO
O
lindo ser dos vossos olhos belos.
E. B. Browning | Trad. F. Pessoa
Carlos, pensei em
preparar uma canção que calasse - como dois olhos - o sorriso espontâneo dessa
manhã de quinta-feira. A tarde talvez fosse azul, talvez, cruzando as pernas e
bebendo, cortasse figurinhas e fumasse de piteira. Talvez a noite risse, talvez
mentisse, não sei dizer. Pensei em falar, Carlos, – talvez – da Nova Poesia Brasileira Sociologicamente
Considerada. O que você acha? Ou do Brasil
como o Quinto Império Universal de Além Portugal. Talvez me desviar um
pouco, terminar aquela resenha do Design
para um Mundo Complexo, me arriscar – talvez - na Fotografia segundo Sebastião Salgado, publicar um ensaio sobre Especulações Numerológicas, trabalhar em
um pequeno romance ou revisar artigos de gaveta...
sim
nada disso dará certo,
não é? Sim, é verdade. Não hoje, não agora. Venho adiando há muito tempo - é
culpa daquela mulher. Aquela das fotos, sabe? Perdoe-me o desabafo, mas ela
possuiu minha caneta e, se passo ao computador, possui as teclas e possui tudo
quanto mais eu tente como recurso. Se falo de jornais, lá está ela; se falo de
mim, outra vez ela; se falo de esporte, mais outra vez, e se me calo, se fico
em silêncio, ela inunda tudo o que não é palavra. Na segunda-feira, enquanto
voltava para casa, depois de dar uma aula curta, o céu não tinha nuvens, estava
limpo como são os olhos dela. E a rua começava a encher-se – era ainda cedo –
como as coisas que ela faz e que se enchem de cuidados. Mais adiante, para
depois da farmácia, estava um mecânico e suas roupas pareciam estar manchadas
de limpo - quando em vez uma brecha aparecia na graxa e o verde se mostrava.
Naquele momento me distraí
- graças a Deus –
e lembrei sem porquê de
Whitman, Leaves of Grass, e dele fui
à Bandeira Nacional e da bandeira fui à Portugal e de Portugal cheguei a Camões...
Menina
dos olhos verdes
Por
que me não vedes?
... e de aí notei minha
volta. Ela, Carlos. Outra vez - pois bem que era. Comecei a tamborilar versos
simples como “ver de perto e ver-te sempre / quando verde mais”, frouxos e
simples. Na casa dos meus pais, por onde tenho estado, enchi gordamente uma
xícara de café e o cheiro agradável e forte fez-me sentir sua presença perto.
Não, não a sua, meu amigo, mas a dela.
Viu? De certa forma ela
não tem culpa. É Outra aquela que me arrebata durante os longos intervalos de
ausência da moça real. Ela - em mim - é a outra, a outra que sou Eu querendo a junto
- é o meu desejo dela e não ela. Entende, Drummond? “Eu bem me entendo”. Sorte
a sua. Ainda que eu escreva como quem escreve outra coisa, nessa coisa – que é outra
– estará o nome dela, de alguma forma, no título haverá ela, mesmo que oculta,
inocente e breve.
Ah!
E não posso faltar com essa verdade: eu morreria por ela, mas viveria sem ela.
Pode parecer estranho, mas por que almejar uma vida a dois, quando é melhor duas
vidas a um? Não quero ser a terra de onde ela cresce, nem o jarro onde repousa.
Não quero ser o seu dono, nem o jardineiro fiel que poda, sem restringir os
galhos, o tamanho da subida. Eu desejo ser planta ao lado dela e dividir o
solo, entrelaçar raízes, respirar o sol das coisas e me recolher quando houver
noite. Quero voar ao seu lado, admirar seu voo, e não ser suas asas. Não quero
ser ela, nem que ela seja o que eu sou.
É difícil, eu sei. Quem
pode sobreviver à estreiteza do próprio tamanho? O que nós queremos,
intimamente, é colonizar e tomar - por razão, sentimento ou força - um limite
que não nos pertence, que não é nosso. Pode parecer escolha, Carlos, mas não é.
Tudo ao redor tem a fôrma e a forma dela, porque a vontade são vontades e os
caminhos são dois. Isso de seguir pela mesma estrada é uma bobagem das grandes,
uma besteira sem tamanho - os braços aguentam a tensão e é possível caminhar de
mãos dadas – cada qual no seu passo. Sei lá, poderíamos escrever um livro
inteiro, uma enciclopédia, uma biblioteca de obras voltadas exclusivamente para
o porquê de ser tudo que é da forma como é – acho que nem La biblioteca de Babel, com todas as suas possibilidades,
comportaria tantos volumes.
De
uma maneira ou de outra, Carlos, fato é que - depois dela – olhar para o mundo
e ver o que ele é - ou o que eu pensava que ele fosse - tem se tornado tão
difícil quanto ouvir Bach depois de conhecer O Céu de Santo Amaro.
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