sexta-feira, 23 de abril de 2010

Aqueles quatro de “Aqueles dois”


Talvez eu precise dedicar uma coluna só para falar sobre o Palco Giratório – Rede SESC de Intercâmbio e Difusão das Artes Cênicas, mas aqui, hoje, me dedicarei a falar de Aqueles dois, versão da Companhia de Teatro Luna Lunera (BH) para o conto de Caio Fernando Abreu trazida a Salvador nos últimos dias 09 e 10.
Aqueles dois é uma peça contemporânea, é uma recusa positiva da congelada abstração da idéia da obra-em-si em favor da idéia da obra-como-processo, como atestaram os atores num bate-papo final. Esse tipo de cena, que esvazia todas as considerações do teatro tal como convencionalmente entendemos em termos de enredo e de personagens, de linguagem e movimento, exige do público formas alternativas de recepção. Os atores ali não criam papéis, são apenas condutores das idéias deles mesmos, que também são os diretores e de Caio, claro.

Aliás, Caio parece estar presente em casa detalhe, no horóscopo, nas músicas, no conhaque, nas cartas, no clima melancólico e decadente, na crítica ácida, na poética problemática da solidão aliada à carência afetiva nas grandes cidades, na denúncia à intolerância humana. E esse, talvez seja o maior mérito dos luneras, conseguiram ser fiéis ao conto de Caio Fernando Abreu, mas, também, expandiram-no. O que poderia ser apenas uma peça sobre homossexualismo e preconceito vai além, muito mais, acabamos vendo uma história sobre a própria condição humana, o medo, a solidão, o vazio, a insegurança, a vida numa cidade grande, os crimes e os criminosos, o individualismo moderno, como lembra Bauman.

O que chama a atenção em Aqueles dois, tanto no conto como na peça, é a estratégia em sugerir mais do que dizer, é o julgamento moral e a intolerância da sociedade, como indica o próprio subtítulo do conto, “História de aparente mediocridade e repressão”, o que também é confirmado no final quando o narrador declara que os dois homens foram demitidos por manter uma “relação anormal e ostensiva”, um “comportamento doentio”, uma “desavergonhada aberração” e uma “psicologia deformada”. O tom crítico dos luneras vai além da explicitação desse julgamento: ao questionar os valores e a conduta da sociedade, acabam condenando a postura desses outros que reprimem como propõem as últimas palavras do narrador: “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia gema de um enorme ovo frito no azul do céu, ninguém conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.”

Aqueles dois fala do amor que é espanto e dor, lucidez e loucura; tem a ver com a morte. Isso tudo está entre eles que, embora mofados trazem pelo que tem de rebeldia e inconformismo, uma nota de esperança e liberdade.

Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

2 comentários:

Eduardo Bakr disse...

é. aqueles dois é um conto mágico de Caio Fernando Abreu transposto lindamente para o palco (tive a oportunidade de ver no CCBB-RJ). realmente, a montagem leva a cena o universo de Caio e, a meu ver, só peca ao extrair do conto aquela gota de "Capitu" que o texto carrega - talvez pela força incontrolável que Caio faz pulsar em suas palavras, talvez pela brasa acesa dos cigarros esquentando a noite daqueles dois... espetáculo de grande força cênica e poética que vale ser visto e revisto. Parabéns por destacá-lo!!!

24 de abril de 2010 às 16:56
Propor disse...

Djalma, seu texto é sempre muito gostoso de ler. Sua abordagem crítica é sempre emocionante e nos permite a visualização, tornar concreto aquilo que poderia ficar apenas no plano da abstração. Um beijo cheio de saudade. Patricia Deniculi

25 de abril de 2010 às 14:22

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