Flores Nuas, contribuição de Wudson Marcelo
por Wuldson Marcelo
A chuva fina e irritante persistia, a despeito do desejo incontido de Giorgio de correr à lanchonete no Jardim... para encontrar Felipe. Cuiabá vista do alto, feita de luzes e vultos não identificáveis. Tudo tão distante e ao mesmo tempo familiar. Ouvia uma canção de Caetano Veloso, na voz de Ana Cañas, enquanto sonhava com férias no Caribe. Ele fechou lentamente os olhos, e viu uma foto instantânea de Felipe a dominar o negrume do fechar os olhos. Giorgio necessitava de Felipe. Sabia que sua liberdade consistia em querer ou não dizer, “Eu estou a fim de ir com você para onde tu quiseres”. Mas receava e pressentia uma noite que exigia a convicção de um SIM e só. Livre, sabia que não era. A necessidade no caso de Giorgio não incorporava a liberdade. Não a retinha nas mãos, justamente porque via tudo de baixo. E as coisas eram feitas de sombras e corpos identificáveis pelas particularidades de suas deformações, tal qual num filme expressionista alemão dos anos 20. Porém, rostos e corpos anônimos são intrínsecos às turbas. Temia a censura pública. Um público tão privado que era quase todo o mundo, o de sua mãe Lurdes. Uma mulher abandonada pelo marido há mais de quinze anos, que se tornou irascível. Conviver com ela parecia ao jovem uma maneira de penitência e expiação. Giorgio acreditava-se em maus lençóis. Como conversar sobre o tema “Felipe” com uma mulher que olhava para seu sobrinho, Domingos, um gay assumido, como se ele fosse portador de algum vírus que pudesse ocasionar uma epidemia? Guerra bacteriológica, formação de guerrilha, somente os mais normais possíveis sobreviverão, divagava Giorgio, fugindo ao conflito íntimo que a sua coragem o convocava. Ela dizia com os olhos todos os dias, “Meu filho será um sucesso e me dará pelo menos um casal de netos”. Somente assim, o fantasma do marido seria exorcizado depois de ser tão crucificado. Felipe valia a fuga tempestuosa pela pequena tempestade que desabava nas ruas de Cuiabá? Era uma pergunta retórica, pois ele sabia que sim. No entanto, em muitos desses interrogatórios íntimos, desejava responder Não. Tudo seria assim mais fácil.
A chuva tamborilava no telhado. Um barulho que parecia relaxante. Dormir durante um aguaceiro fazia bem à alma de Giorgio. Porém, não se sentia confortável. O que desejava era se aconchegar ao peito de Felipe. Amava sobremaneira, também o dorso daquele rapaz de tez meio-pálida, mas de sorriso confiável e de bom gosto para roupas e filmes. Olhou as horas. Não podia acreditar que já passavam das sete e quarenta da noite. Tateou o celular, decidiu buscar o número de Felipe. “Vou ligar para dizer que está chovendo e que talvez, eu me atrase ou quem sabe nem apareça”. Lurdes bateu na porta. Avisou que o jantar já estava na mesa. Arroz, lasanha, salada de alface com tomates e de sobremesa sorvete de banana. Giorgio jantou sem esconder a exaltação. A mãe observava a agitação do filho. Aquilo a incomodava. Entretanto, preferiu negligenciar a inquietação de seu primogênito e única prole. “Deve ser algum problema com a Vitória, filha do Borges. Aquela não o larga”. Em seguida, a esse pensamento deixou escapar um sorriso de satisfação. Giorgio devorou a refeição da noite, pediu licença à mãe e disparou para o quarto. Namorou o celular e vacilou por um instante. O silêncio da mãe o irritou. Naquela noite o repertório de exigências e reclamações estava de folga. Felipe, diferentemente de sua “criadora”, era prolixo e ao mesmo tempo sensível. Um artista, um pintor impressionista. Giorgio largou o celular e começou a matutar a ideia de comparecer ao encontro. Afinal, marcara o compromisso. E, além disso, qual era o drama depois de ter visto “O segredo de Brokeback Mountain” de Ang Lee, “Má educação” de Almodóvar, “Felizes Juntos” de Wong Kar-Wai e “Tabu” de Nagisa Oshima. Todos os filmes que viu sentado confortavelmente na poltrona cinzenta de Felipe. E os livros então: de Jean Genet a Caio Fernando Abreu. E pensou, com reservada alegria, que se tornara inconscientemente clichê e feliz. E como deseja expandir essa felicidade envergonhada para todos os cantos.
Oito e quinze da noite. Felipe chegaria às vinte e uma horas em ponto na lanchonete. “Aquele rapaz respirava a vida com pulmões de inalador”, pensou. Isso se tal sentença não soasse surreal ou coisa de doido. Giorgio amava Felipe, mas o sentimento deveria ser expresso entre limitações de paredes. Essa era uma liberdade que encontrava propositadamente obstáculos. Ele sentia que precisava das carícias, da compreensão e das palavras de carinhos-incentivos do rapaz. Livre nos atos e declarações que permaneceriam escondidos. Livres em um esconderijo. Necessitava do amor de Felipe. Mas, o amor é uma escolha que precisa ser vivida quando a pele exige. Este era o caso deles. Os cenários limitadores impediam a irrupção de sentimentos legítimos e incontroláveis. Escolha. Era essa a palavra utilizada para anular o subterfúgio do medo. A frase, “Felipe, eu ainda não estou pronto!”, este era o subterfúgio que mantinha a paixão clandestina. Lembrou-se de uma noite na qual ambos estavam nus a observar a lua cheia. Giorgio propôs que escolhessem uma flor que gostariam de ser. Giorgio optou por ser uma tulipa e Felipe um lírio.
- Somos flores nuas a receber as bençãos do luar e das estrelas. - Teatralizou Felipe.
Depois dessa recordação, Giorgio foi à cozinha pedir o guarda-chuva à mãe. Ela o emprestou, mas decidiu interrogá-lo. “Aonde você vai, filho?”.
- Vou encontrar com o Felipe, meu caso amoroso e, quem sabe, o grande amor da minha vida.
E saiu sem esperar a reação da mãe. Intuiu que as sombras e corpos identificáveis das ruas de Cuiabá estavam mais vivos do que nunca. Pronto, aí está. Dona Lurdes lamentaria a perda dos netos. Porém, o futuro é ele próprio um vulto e uma luz que encobre o seu corpo amorfo. Giorgio caminhava para uma proposta de revelação. “É, a lanchonete deve estar vazia por causa da chuva”.
Contribuição do leitor Wuldson Marcelo, cuiabano, nascido em 1979. Graduado em Filosofia pela UFMT e pós-graduando, em Estudos de Cultura Contemporânea – Mestrado ECCO\UFMT. Editor do “Caos Sophia”, jornal dos alunos de Filosofia, de 2003 a 2005. Possui artigos e contos publicados em jornais e sites de Mato Grosso e demais estados brasileiros, entre eles contos no site www.releituras.com.br e no jornal “Bom Dia” de circulação em cidades do interior de São Paulo e no Grande ABC. Autor do livro de contos Obscuro-shi (no prelo, Editora A Fábrika-MT).
A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
A chuva tamborilava no telhado. Um barulho que parecia relaxante. Dormir durante um aguaceiro fazia bem à alma de Giorgio. Porém, não se sentia confortável. O que desejava era se aconchegar ao peito de Felipe. Amava sobremaneira, também o dorso daquele rapaz de tez meio-pálida, mas de sorriso confiável e de bom gosto para roupas e filmes. Olhou as horas. Não podia acreditar que já passavam das sete e quarenta da noite. Tateou o celular, decidiu buscar o número de Felipe. “Vou ligar para dizer que está chovendo e que talvez, eu me atrase ou quem sabe nem apareça”. Lurdes bateu na porta. Avisou que o jantar já estava na mesa. Arroz, lasanha, salada de alface com tomates e de sobremesa sorvete de banana. Giorgio jantou sem esconder a exaltação. A mãe observava a agitação do filho. Aquilo a incomodava. Entretanto, preferiu negligenciar a inquietação de seu primogênito e única prole. “Deve ser algum problema com a Vitória, filha do Borges. Aquela não o larga”. Em seguida, a esse pensamento deixou escapar um sorriso de satisfação. Giorgio devorou a refeição da noite, pediu licença à mãe e disparou para o quarto. Namorou o celular e vacilou por um instante. O silêncio da mãe o irritou. Naquela noite o repertório de exigências e reclamações estava de folga. Felipe, diferentemente de sua “criadora”, era prolixo e ao mesmo tempo sensível. Um artista, um pintor impressionista. Giorgio largou o celular e começou a matutar a ideia de comparecer ao encontro. Afinal, marcara o compromisso. E, além disso, qual era o drama depois de ter visto “O segredo de Brokeback Mountain” de Ang Lee, “Má educação” de Almodóvar, “Felizes Juntos” de Wong Kar-Wai e “Tabu” de Nagisa Oshima. Todos os filmes que viu sentado confortavelmente na poltrona cinzenta de Felipe. E os livros então: de Jean Genet a Caio Fernando Abreu. E pensou, com reservada alegria, que se tornara inconscientemente clichê e feliz. E como deseja expandir essa felicidade envergonhada para todos os cantos.
Oito e quinze da noite. Felipe chegaria às vinte e uma horas em ponto na lanchonete. “Aquele rapaz respirava a vida com pulmões de inalador”, pensou. Isso se tal sentença não soasse surreal ou coisa de doido. Giorgio amava Felipe, mas o sentimento deveria ser expresso entre limitações de paredes. Essa era uma liberdade que encontrava propositadamente obstáculos. Ele sentia que precisava das carícias, da compreensão e das palavras de carinhos-incentivos do rapaz. Livre nos atos e declarações que permaneceriam escondidos. Livres em um esconderijo. Necessitava do amor de Felipe. Mas, o amor é uma escolha que precisa ser vivida quando a pele exige. Este era o caso deles. Os cenários limitadores impediam a irrupção de sentimentos legítimos e incontroláveis. Escolha. Era essa a palavra utilizada para anular o subterfúgio do medo. A frase, “Felipe, eu ainda não estou pronto!”, este era o subterfúgio que mantinha a paixão clandestina. Lembrou-se de uma noite na qual ambos estavam nus a observar a lua cheia. Giorgio propôs que escolhessem uma flor que gostariam de ser. Giorgio optou por ser uma tulipa e Felipe um lírio.
- Somos flores nuas a receber as bençãos do luar e das estrelas. - Teatralizou Felipe.
Depois dessa recordação, Giorgio foi à cozinha pedir o guarda-chuva à mãe. Ela o emprestou, mas decidiu interrogá-lo. “Aonde você vai, filho?”.
- Vou encontrar com o Felipe, meu caso amoroso e, quem sabe, o grande amor da minha vida.
E saiu sem esperar a reação da mãe. Intuiu que as sombras e corpos identificáveis das ruas de Cuiabá estavam mais vivos do que nunca. Pronto, aí está. Dona Lurdes lamentaria a perda dos netos. Porém, o futuro é ele próprio um vulto e uma luz que encobre o seu corpo amorfo. Giorgio caminhava para uma proposta de revelação. “É, a lanchonete deve estar vazia por causa da chuva”.
Contribuição do leitor Wuldson Marcelo, cuiabano, nascido em 1979. Graduado em Filosofia pela UFMT e pós-graduando, em Estudos de Cultura Contemporânea – Mestrado ECCO\UFMT. Editor do “Caos Sophia”, jornal dos alunos de Filosofia, de 2003 a 2005. Possui artigos e contos publicados em jornais e sites de Mato Grosso e demais estados brasileiros, entre eles contos no site www.releituras.com.br e no jornal “Bom Dia” de circulação em cidades do interior de São Paulo e no Grande ABC. Autor do livro de contos Obscuro-shi (no prelo, Editora A Fábrika-MT).
A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
1 comentários:
Ótimo. Um grande estilo dum escritor de nossa terra. Parabéns pela originalidade. - UM abraço deste Poeta - Márcio Mendes - www.marciomendesmt.com.br.
24 de novembro de 2011 às 16:13Postar um comentário
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