JOÃO CAETANO


JOÃO CAETANO – 200 ANOS

A HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DO ATOR

Desde a formação da primeira companhia teatral brasileira com propósitos nacionalistas, de João Caetano, em 1833, ou até mesmo dede a sua estréia, com o drama O carpinteiro de Livônia, a questão do intérprete já vem sendo, de uma forma ou de outra pensada, sistematizada.

Já pelos idos de 1851[1] podemos entender um claro discurso em que já se questiona as condições do ator. Preste atenção nesse longo texto que transcreveremos. Encontramo-lo no IBAC, Instituto Brasileiro de Artes Cênicas, numa cópia com referências inexatas, mas, muito acrescenta para o entendimento do panorama teatral daquele século e já aponta para um dos grandes problemas que a carreira encontra hoje – a idéia de que ela prescinde de formação técnica.

O que eu lhe vou dizer é triste, é lastimoso para quem o diz: tanto mais que ele o faz com a plena convicção de que fala ao indiferentismo.

É uma miséria o estado do nosso teatro: é uma miséria ver que só temos o João Caetano e a Ludovina. A representação de uma boa concepção dramática se torna difícil. Quando sé há dois atores de força sujeitamo-nos ainda a ter só dramas coxos, sem força e sem vida, ou a ver estropiar as obras do gênio.

Os melhores dramas de Schiller, de Goethe, de Dumas não se realizam como devem. O Sardanapalo de Byron, traduzido por uma pena talentosa, foi julgado impossível de levar-se à cena. No caso do Sardanapalo estão os dramas de Shakespeare que, modificados por uma inteligência fecunda deveriam produzir muito efeito. Se o povo sabe o que é o Hamlet, Otelo, deve-se ao reflexo gelado de Ducis. Contudo, seria fácil apresentar-se no Teatro de S. Pedro alguma coisa de melhor do que isso. Com o simples trabalho da tradução se poderiam popularizar os trabalhos de Émile Deschamps, Auguste Barbier, Léon de Wailly e Alfredo de Vigny que traduziram Romeu e Julieta, Macbeth, Júlio César, Hamlet e Otelo.

Quando o teatro se faz uma espécie de taverna de vendilhão, vá que se especule com a ignorância do povo. Mas quando a Companhia do teatro está debaixo de inspeção imediata do Governo, deverá continuar esse sistema verdadeiramente imundo?

Não: o teatro não deve ser escola de depravação e de mau gosto. O teatro tem um fim moralizador literário: é um verdadeiro apostolado do belo. Daí devem sair as inspirações para as massas. Não basta que o drama sanguinolento seja capaz de fazer agitarem-se as fibras em peitos de homens-cadáveres. Não basta isto: é necessário que o sonho do poeta deixe impressões ao coração, e agite na alma sentimentos de homens.

Para isso é preciso gosto na escola dos espetáculos, na escolha dos atores, nos ensaios, nas decorações. É desse todo de figuras grupadas com arte, do efeito das cenas, que depende o interesse. Talma o sabia. João Caetano, por uma verdadeira adivinhação de gênio, lembra-se disto.

Além, essas composições sem alma, que servem apenas para amesquinhar a platéia, esses quadros de terror e de abuso de mortualha que servem apenas para atufar de tédio o coração do homem que sente, mas que pensa, e reflete no que sente e no que pensa.

Mas o que é uma desgraça, o que é a miséria das misérias é o abandono em que está entre nós e a comédia.

Entre nós parece que acabaram os belos tempos da comédia. Verdadeiros blasés, parece que só amamos as impressões fortes: que preferimos estremecer, chorar, do que rir daquelas boas risadas de outrora.

Em lugar da musa de Menandro e Terêncio, temos hoje uma musa asquerosa que aparece nas tábuas do palco à meia-noite, como uma bruxa que revolve-se imunda com a boca cheia de chufas obscenas, em chão de lodo: hedionda criatura, bastarda da boa filha de Molière, adiante da qual o pudor, digo mal, até o impudor tem de corar.

Estrangeiro que assiste àquelas saturnais vergonhosas da cena crê assistir a um sabath de feiticeiras: e como o fausto de Goethe no Brocken, sente-se tomado de asco invencível por aquelas fealdades nuas. O soco romano-grego tornou-se tamanco imundo da vagabunda desbocada!

É triste pensá-lo – mas se é verdade que o teatro é o espelho da sociedade, que negra existência deve ser a da gente que aplaude frenética aquela torrente de lodo que salpica as faces dos espectadores!

A farsa embotou o gosto e matou a comédia. O palhaço enforcou o homem de espírito. Arlequim fez achar insípido o Tartufo.

E contudo, nós que nos fizemos homem no tempo em que João Caetano se não envergonhava de representar Casanova, nós que o vimos, não há muito, vestir o disfarce de Robin, embuçar-se no manto roto de Don César de Bazan, que soltamos boas gargalhadas ante o Auto de Gil Vicente e Robert Macaire, não podemos deixar de lamentar que ele desdenhe a máscara da comédia.

E contudo Molière – um gênio – era cômico. Shakespeare preferia a galhofa das Alegres Mulheres de Windsor, What you will, A Tempestade etc., aos monólogos de Henrique III, ao desespero do Rei Lear, à dúvida de Hamlet. Kean despia o albornoz e o turbante do Mouro de Veneza para tomar o abdômen protuberante, e o andar vertiginoso, as faces ardentes de embriaguez do bom vivant cavaleiro da noite, amante da lua, sir Jack Falstaff!

Haja algum impulso da parte donde deve vir, e esperamos que haja entre nós teatro, drama e comédia.

A nossa mocidade laboriosa se animará, empreenderá trabalhos dramáticos. Começarão por traduções, estudarão o teatro espanhol de Calderón e Lope de Veja, o teatro cômico inglês de Shakespeare até Sheridan, o teatro francês de Molière, Regnard, Beaumarchais – e mais modernamente enriquecido pelo repertório de Scribe e pelos provérbios de Leclercq e de Alfredo de Musset. Os que tiverem mais gênio, os que tiverem estudado o teatro grego, o teatro francês, o teatro inglês e o teatro alemão, depois desse estudo atento e consciencioso, poderão talvez nos dar noites mais literárias, mais cheias de emoções do que aquelas em que assistimos: aos melodramas caricáticos [sic], às paixões falsas, a todas aquelas concepções que movem-se e falam como um homem, mas que quando se lhes bate no coração dão um som cavernoso e metálico como o peito oco de uma estátua de bronze!.

Diante desse quadro, o que se constata é que o nosso Romantismo teatral não ia lá muito bem das pernas, para usar uma expressão mais apropriada aos dias de hoje. E que João Caetano, pelo que (já) pensava é considerado a figura central do romantismo no Brasil,

a chave que abre todo o período de formação do nosso teatro, visto pelo lado de dentro, a partir do palco, através de sua parte mais viva a atuante. Os nossos escritores passaram em geral marginalmente pela cena. Antes de comediógrafos ou dramaturgos, foram poetas, romancistas, historiadores, políticos, quando não simples funcionários públicos. Não viveram de suas peças, nem lhe devem, com raríssimas exceções, a sua notoriedade literária. Somente ele, na sua dupla função de ator e de empresário, sustentou durante três decênios a continuidade de nossa vida teatral, em condições sempre adversas e em nível surpreendentemente alto. (PRADO, 1984, P. 21).

JOÃO CAETANO À FRÉDÉRICK LEMAÎTRE _________________________

A peça em versos, de Raul Pedroza, João Caetano, faz referência ao ano de 1862, e indica uma ação cênica que representa a “antecâmara” de João Caetano no Teatro São Pedro de Alcântara:

A scena representa a ante-camara de João Caetano, no theatro S. Pedro. Á esquerda a porta que dá para o camarim está oculta sob um rico reposteiro. Uma mesa antiga de jacarandá com livros, papéis, álbuns luxuosos, um tinteiro de prata, uma estatueta de bronze representado “O Genio”. Pelos muros, recordações da vida de glorias de João Caetano; coroas de folhas de ouro cravejadas de esmeraldas, gravuras reprodusindo o artista nas suas immortaes creações. Largas poltronas cobertas de estofo adamascado. Portas á direita e ao fundo, vendo-se atravez desta ultima, longe, por entre cortes de scenarios, perdida na penumbra, a immensa platéa deserta. (PEDROZA, 1926, p. 9)

A expressão destacada é por nossa conta, assim como, também, a preferência pela grafia do texto original. Repare bem como a rubrica inicial da peça indica caminhos de leituras. Todos os objetos luxuosos, ostensivos, a estátua de Gênio são marcas de um tempo áureo, signos contrastantes com a expressão final, uma imensa platéia deserta.

Sabe onde estaria, pois, o público? A burguesia emergente?

No Teatro Ginásio Dramático, um dos fatos mais importantes do teatro brasileiro acontecido em meados do século XIX, em março de 1855, no Rio de Janeiro. Esta Companhia, criada pelo empresário Joaquim Heleodoro Gomes dos Santos começaria, a partir de então, a competir com a única Companhia dramática, a de João Caetano, que apresentava seus espetáculos no referido Teatro São Pedro de Alcântara.

A soberania de João Caetano, que era subsidiado pelo governo, estava ameaçada e é sobre esse mote que Pedroza vai desenvolver sua peça.

A vida do país, particularmente a do Rio de Janeiro, vinha passando por uma série de transformações provocadas pelos efeitos da então recente interrupção do tráfico negreiro, “oficialmente” proibido a 13 de março de 1830. Beneficiadas com o dinheiro que antes era investido na compra dos escravos, algumas cidades se expandiram, graças aos negócios que se multiplicaram, ao comércio que gerou mais empregos, aos bancos, pequenas indústrias, às atividades, enfim, que foram desenvolvidas e gerenciadas pela burguesia. Os reflexos dessas transformações, claro, alcançaram o teatro.

No Rio de Janeiro, jovens intelectuais que atuavam na imprensa começaram a questionar as interpretações de João Caetano, muito próxima a do francês Frédérick Lemaître, bem como seu repertório, considerado anacrônico e envelhecido. Para termos uma idéia do estilo de interpretação criticado pelos novatos do Ginásio Dramático, veja a descrição da interpretação de Lemaître feita por François Coppée, que o viu em cena não no auge, mas em 1864, no papel principal da peça Le Comte de Saulles, de Édouard Plouvier:

Quando o drama crescia e chegava a uma situação violenta, Frédérick se transfigurava. Ele punha energia e gênio em sua interpretação e se entregava por inteiro ao patético. Ele vivia e sentia o papel com toda sua inteligência, com todos os seus nervos, com todo o seu coração. Esse homem, esgotado e envelhecido por uma vida de excessos e de desordem, reencontrava a força e a agilidade da juventude. Ele corria e enchia a cena com seus gestos amplos e elásticos, com seus passos de gigante. Eram lágrimas verdadeiras, era a chama da paixão, que brilhava em seus olhos. Seu rosto avermelhava-se de pura cólera, ficava pálido de medo verdadeiro, emocionava-se com piedade sincera. Sua voz, tão fraca agora a pouco, emitia gritos, suspiros e soluços em abundância. Era a verdade mesma, porque era a vida, mas a verdade como é preciso que seja mostrada à multidão, ou seja, a verdade enriquecida pela arte, a verdade poética, tocante, grandiosa! (BALDICK, 1961, p.263).

Consegues imaginar essa representação? Como soa exagerada?

A razão pela qual João Caetano cometia esses exageros não é outra senão pela natureza das personagens que encarnou, principalmente os heróis de melodramas que vivem comoções violentas, paixões desenfreadas, delírios, cóleras, agitações, tudo aquilo, enfim, que exige do ator uma interpretação distante do natural. O próprio Pedroza, que faz um texto em defesa do “artista-príncipe”, alude à força de tal interpretação quando compara a voz do ator aos trovões feitos pelo contra-regra:

O CONTRA-REGRA – Desejas, na scena de loucura, trovões e raios?

JOÃO CAETANO – Não, trovões, perto, é o bastante. Domá-los-ei com a voz.

O LITERATO – Oh, Júpiter tonante. Com uma palavra só suprimes os coriscos... Salve! (PEDROZA, op. cit. p. 10)

Essas palavras ilustram perfeitamente o que foi o romantismo no palco de João Caetano, por isso, fica muito difícil manter o equilíbrio e o domínio técnico da sensibilidade nesses momentos excepcionais, nos quais se deve manifestar o furor da personagem, afinal,

o ator em tais lances não deve observar media alguma, nem guardar lugar algum sobre a cena; os movimentos do seu corpo devem mostrar uma força superior a todos que o rodeiam, acendem-se-lhe os olhos para pintar as labaredas que lhes escaldam a alma: a voz necessita ser algumas vezes vigorosa a algumas outras sufocadas, mas sempre sustentada por uma extrema força do peito; deverá mover-se continuamente, porém nunca estendendo os braços e balançando-se sobre os pés, por cuja forma se imitaria mais a loucura do que o furor (SANTOS, 1962, p. 64).

O contra-ponto a esse “exagero” cênico vem do Ginásio Dramático, precisamente da experiência e do trabalho de Emílio Doux, ensaiador francês que deixou de lado os melodramas, as tragédias neoclássicas e os dramas românticos para se concentrar na representação de peças mais leves, em especial, vaudevilles.

Assim, o Ginásio dramático torna-se um espaço social mais sofisticado, freqüentado por pessoas de bom gosto, educadas, formando uma platéia mais refinada que a do Teatro São Pedro de Alcântara que, aos poucos, ficaria com a “immensa platéa deserta”. Depois de seis meses encenando pequenas comédias para divertir o público, o Ginásio deu provas de que pretendia fazer jus ao nome inspirado no Théâtre Gymnase Dramatique de Paris quando passa, a partir de 1855, a encenar um novo tipo de peça, que na França vinha obtendo um enorme sucesso: a comédia realista, de autores como Dumas Filho, por exemplo. A rivalidade com o palco de João Caetano ficou ainda mais evidente nos anos que se seguiram. Já não se tratava apenas de uma questão empresarial, mas, principalmente, estética: de um lado o velho e alquebrado romantismo; de outro o realismo, com uma nova maneira de conceber o teatro, tanto no plano da dramaturgia quanto do espetáculo.

A GLÓRIA É O PRÓLOGO DA FOME __________________________________________

Doux, o ensaiador do Ginásio Dramático, chegou a trabalhar com João Caetano.

Reza a História que depois de um ano e três meses de trabalho no Ginásio.

Na peça de Pedroza, Doux é ponderado e sensato frente às críticas que a imprensa, através dos folhetins, faz ao estilo João Caetano de representar. A situação na primeira cena é exatamente essa:

VASQUEZ (batendo com força no jornal) – Abominável.

ARÊAS – Um escândalo.

MARTINS - É grotesco... Falar assim de um genio, um genio...

VASQUEZ (Achando a palavra) - Principesco!

MARTINS – Diz bem: Artista-Principe o chamou Castilho.

ARÊAS – Apenas? Elle é mais!

VASQUEZ – É um rei!

MARTINS – Com maior brilho. P’ra conter sua gloria é pequena a palavra; Nenhum termo dirá o enthusiasmo que lavra / Em todos nós pelo collosso que sechama / João Caetano, este sol cuja potente chamma / Enche de áureo esplendor o palco brasileiro.

(Passam ao fundo um Actor e Doux; Vasquez dirige-se a ellles)

VASQUEZ – Já leram?

O ACTOR – Sim...

VASQUEZ – E então?

(Sae a conversar com o Actor)

DOUX (entrando e apontando os que sahiram, diz com seu forte sotaque francez) – Mais brazas no brazeiro...

ARÊAS – Mas elles têm razão, meu caro Doux; e vós, / O velho ensaiador, mestre de todos nós, / O único homem de quem elle escuta os conselhos, / (Elle que a multidão quase adora de joelhos) / Havereis de convir que é forte!

DOUX – Nos maiores astros descobre sempre a critica as peiores / Manchas, meu caro e bom amigo... E quanto a critica / É simples e sincera, e não contem política, / Insidiosa e má, que a disvirtue e faça / Espelho que o despeito ou vil inveja embaça; / Se mostra o erro e o corrige, e o faz num tom Cortez, / Devemos medital-a e agradecer... (PEDROZA, op. cit. p. 10).

Doux é inteligente, percebe a coerência da crítica que já estava cansada do estilo de interpretação um tanto grandiloqüente do famoso ator. José de Alencar, que não foi propriamente um crítico teatral, mas demonstrou ser um observador atento da cena carioca chegou a afirmar que:

Sua alma já deve estar saciada destes triunfos e dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um fato que todos reconhecem. Como ator, já fez muito para sua glória individual; é preciso agora que como artista e como brasileiro trabalhe para o futuro de sua arte e para o engrandecimento de seu país (ALENCAR, 1960, P. 765).

Embora as críticas, tão bem demonstradas por Pedroza, sejam verdadeiras, como comprova a leitura de alguns folhetinistas da época, como o próprio Alencar, Quintino Bocaiúva, Sousa Ferreira, Araújo Porto Alegre, entre outros, não podemos esquecer que João Caetano foi o primeiro ator que tentou refletir sobre a arte do intérprete, a partir do seu Lições dramáticas, obra concebida para “auxiliar aqueles que se destinarem à carreira dramática”. Mas, sobretudo, o manual servia para mostrar aos desafetos de João Caetano que ele nunca teria sido indiferente ao progresso do teatro nacional.

Entenda bem que esse progresso a que me refiro está centrado, ainda, na dramaturgia, nessa transição de estilos a que me referi em linhas acima, até porque, inclusive na Europa, esse “progresso” não havia chegado. Isso se pensarmos que aos olhos da Historiografia do teatro, a modernidade só aconteceria, por convenção, em 1887, quando Antoine fundou o Théatre-Libre; ou, talvez, com a criação da Companhia dos Meininger, em 1866, ou, quiçá, em 1880, quando a iluminação elétrica é adotada pela maioria das salas européias. Ou seja, só os últimos trinta anos do século XIX constituirão, de fato, uma nova época para a arte teatral. Época nova em função da transformação das técnicas, da formação dos problemas e da invenção de soluções.

O livro de João Caetano é um exemplo desse pseudoprogresso, o que não desmerece, em absoluto, sua iniciativa uma vez que, através de suas Lições, podemos conhecer melhor a sua formação teórica e começar a reconhecer que toda prática artística se desenvolve a partir de motivações teóricas implícitas ou explícitas. Ao mesmo tempo toda teoria se alimenta da prática por ela fundada (ROUBINE, 2003, p. 9).

Dividido em treze lições, o livro tem poucas idéias originais. Décio de Almeida Prado, no seu João Caetano e a arte do ator, reconhece muitas das idéias de João Caetano extraídas de duas obras francesas: L’Art du Théâtre, de François Riccoboni, de 1750 e Théorie de l’Art du Comédien ou Manuel Théâtral, de Aristippe, de 1826. Nele o ator aborda várias questões práticas da arte do intérprete como o emprego da voz, o uso da respiração, a expressão dos sentimentos, a criação dos gestos, o aproveitamento da inteligência, o jogo fisionômico, entre tantas.

Mas existe uma contradição entre o que está escrito e a própria prática de nosso ator. Logo na “Primeira Lição”, João Caetano diz que a interpretação devia ser equilibrada, natural, vigiada sempre pela razão e pele inteligência. No entanto, tanto os registros históricos, quanto o de Raul Pedroza, atestam que na prática, afastou-se muitas vezes do que pregava, deixando que os sentimentos de sobrepusessem à razão. Assim explica que “a arte dramática é imitação da natureza e não a realidade dela”, querendo dizer com isso que o ator não deve sentir as emoções da personagem, mas apenas exprimi-las. No palco ele deve imitar e não igualar a natureza, o que significa que deve manter-se senhor de si, dirigindo e governando suas faculdades.

Com isso, João Caetano nos leva a uma tentativa de definir o grau de validade da crença que um ator impõe ao público representando o papel: certamente as grandes dicotomias morais do verdadeiro e do falso, da verdade e da mentira, mesmo que o seu desempenho, retido na memória de seus contemporâneos, não tenha sido exatamente exemplo de equilíbrio e naturalidade. Aliás, o próprio ator, na “Quarta Lição”, dá uma idéia de como construiu uma de suas personagens, no caso, Otelo, de Ducis:

Lembro-me ainda que quando me encarreguei do papel de Otelo, na tragédia o Mouro de Veneza, depois de ter dado a esta personagem o caráter rude de um filho do deserto, habituado à tempestades e aos combates, entendi que esse grande vulto trágico quando falasse devia trazer à idéia do espectador o rugido do leão africano, e que não devia falar no tom médio da minha voz; recorri por isso ao tom grave dela e conheci que a poderia sustentar em todo o meu papel (JOÃO CAETANO DOS SANTOS, op. cit., p. 26).

Outro exemplo que gostaria que ouvisses para entender um pouco mais do que falo, Álexis, está na descrição que João Caetano faz de seu desempenho no papel de um jovem romântico ciumento abandonado pela amada. Veja que preciosidade, desta vez na “Primeira Lição”:

Nesta cena atirei brutalmente a jovem atriz contra o tablado, coloquei-lhe um joelho sobe o peito, e, passando-lhe os cabelos em volta do pescoço, a sufocava com todas as minhas forças proferindo em alta voz: - Morre, diabo! A pobre senhora, aflita, tratava de defender-se, e o público, conhecendo que eu desvairava, levantou-se gritando espavorido. Os meus companheiros, que nos bastidores esperavam a sua entrada, precipitaram-se em cena em socorro da dama, arrancando-me à força da triste situação em que me achava.

Uma patuscada. É muito difícil tentar manter o equilíbrio, o domínio da sensibilidade em textos carregados do matiz ultra-romântico do exagero. Na dramaturgia de seu tempo ainda não cabia o requinte de interpretação pensado por João Caetano, que se tornou famoso e admirado porque foi um ator sensível, emocional, explosivo, dado a rompantes imprevistos. Pedroza, em seu texto, tentando compensar a falência profissional do genial ator que estava preste a perder a “subvenção do Parlamento”, coloca-o em situações que comprovarão esse lado humano e sensível, como, por exemplo, doar todo um dia de bilheteria para uma mulher pobre e viúva que adentra o camarim com seu filho no colo. Diante da desaprovação dos seus amigos, sobretudo, Áreas, diz:

JOÃO CAETANO – O que faço! P’ra dar ao mais pobre uma esmola / Consulto o coração – e ninguém mais / (com ironia e tristeza) Consola fazer o bem, do mal que o mundo faz... / (Voltando-se para a mulher) Tereis o que vieste pedir, e breve, - ainda este mez. / E a representação será... com a “Gargalhada”, / E eu farei o papel de André (PEDROZA, op. cit., p. 20).

Mas, independente de não vermos, aqui, na história de João Caetano, consolidados pensamento e prática do ator, o que acho importante poder começar a pensar sobre o ator brasileiro, sua identidade e funções.

Durante todo o Romantismo e também durante a fase colonial, o que houve, na verdade, foi um esforço muito grande para a criação de uma literatura brasílica. Caminha escreveu sobre o Brasil; Gregório falou, de modo barroco português, de problemas brasileiros e com elementos brasileiros; os árcades das Minas Gerais trouxeram a Arcádia Romana para o Brasil e por ela expuseram questões políticas e construíram sentimentos de levante contra a Metrópole; Vieira e Anchieta traçaram com mãos portuguesas os destinos das culturas indígenas brasileiras, cada qual a seu tempo. Ou seja, modos, boca mãos e rostos (e se tivesse voz também seria) são brasileiros, mas, o texto e a força são portugueses.

É tão clara a formação de uma amálgama nesse período da literatura brasileira, que questões supostamente basilares chegam a não fazer sentido. Era uma literatura genuinamente brasileira? Portuguesa? Quais os limites que encerram as duas identidades literárias? Barroquismo? Barroquismo tropical? Literatura portuguesa no Brasil ou brasileira de Portugal? Que lugar têm os “elementos brasílicos”? O que é colonial? O que é brasileiro? E português? E europeu?

A literatura colonial brasileira é, obviamente, o que é um ornitorrinco: um ser “em si”, com identidade própria, completo, formado, vivo e funcional, mas que tem características diversas, e, a priori, incompatíveis entre si. O ornitorrinco é um mamífero que pões ovos, tem bico de pato, pêlos, cauda de castor e pés de pato. E ainda tem extremidades nas patas que contém veneno. Ora, brigar para tornar o ornitorrinco mais mamífero exaltando suas características mamíferas, ou torná-lo menos mamífero pela sua oviparidade e outros aspectos não-mamíferos é uma insensatez. O ornitorrinco é um ornitorrinco. Querer rotulá-lo disso ou daquilo é um ranço da taxonomia iluminista e enciclopedista do século XVIII e um não-querer enxergar o óbvio. É a desconstrução, a fragmentação da própria literatura colonial.

Por extensão, a literatura colonial é a literatura colonial brasileira: constituída de elementos próprios brasileiros e construída pelas regras literárias européias portuguesas. Qual será a grande dificuldade de enxergar nesta existência mesclada uma terceira possibilidade? Não é essa terceira possibilidade, afinal, também uma existência em si? Tire o bico do ornitorrinco e o que temos? Um ornitorrinco morto, ou nem mesmo teremos um ornitorrinco. Tire os elementos brasílicos ou a forma barroca dos versos de Gregório e o que teremos? Tudo, menos a literatura colonial brasileira. Desta forma, não é fácil estabelecer uma identidade para o ator, uma vez que nem a literatura tinha encontrado ainda essa autonomia.

Cláudia Braga, ao contrário, em seu Em busca da brasilidade, procura mostrar que a situação do teatro brasileiro durante a Primeira República tenha dado alguns passos para o recrudescimento da preocupação com um teatro brasileiro autônomo, acentuando a busca da nacionalidade, mas não acreditamos que é o assunto que determina a integração de um texto em determinada literatura nacional. Ainda que transcorra na Itália, Romeu e Julieta, de Shakespeare, não é parte da literatura italiana, nem o relato de um viajante alemão na Rússia é parte da literatura russa.

Dos atores citados por Braga, João Caetano (1808-1863), Ismênia dos Santos (1840-1917), Apolônia Pinto (1854-1926), Leopoldo Fróes (1883-1932), Itália Fausta (?-1951), Jaime Costa (1897-1967) e Procópio Ferreira (1889-1979), apenas Itália Fausta e Jaime Costa experimentaram o que podemos chamar de modernidade cênica.

Itália, atriz conhecida como a grande trágica do teatro antigo e com participações em movimentos modernos, como o Teatro de Estudante e o Teatro Popular de Arte, futuro Teatro Maria Della Costa, o TMDC, uma das mais modernas companhias ao lado do TBC, impedia os atores mais novos de a prestigiarem em cena,

nos últimos anos de sua vida chegava a ser impressionante o seu depoimento sobre o seu passado e o apelo que fazia aos seus amigos para que não fossem ver, quando era chamada a interpretar, ainda que uma vez, a Ré Misteriosa (DORIA, 1975, p. 98.);

e Jaime Costa, que chegou a trabalhar com atores e diretores da novíssima geração em Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Os demais se mantiveram irremediavelmente presos à idéia de que “o público não comparecia aos teatros para assistir a determinada peça, mas apenas para vê-lo(s) em cena” (BRAGA, 2003, p.91). Procópio Ferreira, por exemplo, rejeitou a modernidade até as últimas conseqüências. Décio de Almeida Prado atesta que

a longo prazo [...] a sua opção contra o presente criou-lhe crescente dificuldades. Já deixara há algum tempo para outras companhias, para Dulcina-Odilon, para Mme Morineau, o lugar que ocupara como centro do teatro profissional. Agora, de 1950 em diante, com a chegada em massa de atores formados pelo amadorismo ou nas escolas de arte dramática, ele foi sendo empurrado inexoravelmente para a periferia, seja no sentido figurado, de não estar mais correndo entre os primeiros, seja no sentido geográfico (geográfico cultural, bem entendido). Foi a época das longas excursões, das temporadas de uma só noite em cidades provincianas, de visitas a regiões onde nunca sonhara pôr os pés. Somente aí voltava a ser plenamente Procópio, a grande celebridade nacional (PRADO, 1984, p.p. 16-17).

Opondo-nos, pois, ao que pensa Braga, a dramaturgia brasileira ainda não colaborava definitivamente para a busca da identidade do ator, ao contrário, perpetuava ainda mais sua arqueologia colonizada, na qual se levava às últimas conseqüências o culto da personalidade.



[1] O texto é de Álvares de Azevedo, intitula-se “Carta sobre a atualidade do teatro entre nós” e data, provavelmente, de 1851.


Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

Ler Mais

Novo amor



Canção: NOVO AMOR (2007)
Edu Krieger
Fotos: até o próximo... (março/2011)
Duda Woyda

A luz apaga porque já raiou o dia
E a fantasia vai voltar pro barracão
Outra ilusão desaparece quarta-feira
Queira ou não queira terminou o carnaval.


Mas não faz mal, não é o fim da batucada
E a madrugada vem trazer meu novo amor
Bate o tambor, chora a cuíca e o pandeiro
Come o couro no terreiro porque o choro começou.


A gente ri
A gente chora
E joga fora o que passou
A gente ri
A gente chora
E comemora o novo amor.






DUDA WOYDA, ator, com experiências no Paraná e Rio de Janeiro, cidade com a qual mantem contatos profissionais. Integra a CIA Ateliê Voador e a CIA Teatro da Queda. Pesquisa questões relacionadas ao teatro físico e a sua relação entre dramaturgia corporal e teatralidade, priorizando a multidisciplinaridade. dudawoyda@yahoo.com.br
Ler Mais

Tsunami japonês: mas não se esqueçam da rosa, da rosa...


O mundo chora com a tragédia do Japão. Em todos os canais televisivos, jornais, portais da internet se repete a imagem do imenso tsunami que assolou o litoral nordeste do Japão no dia 11 de março.  Observações sobre esse país não faltam: o país mais tecnológico do mundo,um dos mais ricos, o mais preparado para terremotos. Ainda agora, as notícias da tragédia continuam: número de mortos que só avança tanto quanto de desaparecidos, estima-se até o momento mais de 3000 mortos, 10 mil desaparecidos e 500 mil desabrigados. Para intensificar a dor,a ameaça nuclear com a explosão de uma usina nuclear em Fukushima em um espaço curto de uma semana.

Além do horror em grande escala, o que nos chama a atenção são as microhistórias que envolvem o acontecimento: os rostos apavorados, as declarações de pessoas que viram seus parentes serem carregados, a grande influência no cotidiano – ninguém se sente seguro em suas casas, ao toque de sirenes devem ficar nos carros, a fome, a escassez de comida e água. Deve-se lavar roupas por medo da radiação, não se pode sair de casa quando chove, essa chuva pode ser radiativa. Outras que mostram como o povo japonês, dono de uma cultura milenar, reage: mesmo com a situação de escassez, não há notícias de saques a supermercados. Ainda se preserva o respeito ao espaço do outro, a solidariedade e  a dignidade.


Tudo isso me remeteu às lembranças que tenho desse país. Quando estava em Viçosa, dava aulas de História Contemporânea, e uma delas foi sobre as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Na aula, ouvimos a música do Vinicius de Moraes e Gerson Conrad: “mas, por favor, não se esqueçam da rosa, da rosa, da rosa de Hiroshima, estúpida e inválida”. As bombas foram atiradas em um país que já estava derrotado na II Guerra, historiadores afirmam que elas não tiveram um valor bélico propriamente, mas de subjugação, de retaliação, de mostrar o poderio norte-americano. 66 anos após – o país havia se reconstruído completamente – tornou-se um gigante econômico, tecnológico. O chamado Milagre Japonês, da década de 60/70, marcou essa trajetória. Agora, nova catástrofe, essa – de cunho natural – e não por agressão ou violência de outro país. O prejuízo econômico é lastimável. 



Pensamos como essas vidas, como esses seres humanos de cabelos negros, olhos puxados e uma imensa fortaleza e consciência de grupo, vão reagir frente ao Tsunami que entrou sem pedir licença e causou uma confusão gigante em suas vidas. Quanto de dinheiro terá que ser gasto, quanto as mentes serão traumatizadas por isso, será que veremos um novo Milagre, de reconstrução, não só econômica, mas psicológica? Acredito que sim. Por fim, lembro de uma declaração de uma brasileira que mora no Japão em um programa de TV: “Vemos agora que o dinheiro não é tudo, podemos ter milhares de dólares na carteira, mas isso, nessa hora, não nos vale para nada”.

Que o mundo se sensibilize perante tal tragédia em um sentimento de união e solidariedade.









Ana Maria Dietrich
Editora-chefe da Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades
Coordenadora da Contemporartes - Revista de Difusão Cultural
Laboratório de Estudos e Pesquisas da Contemporaneidade
Núcleo de Ciência, Tecnologia e Sociedade - UFABC
Ler Mais