Intertextualidade poética entre C. Drummond e M. Bandeira



Há no conto “Biblioteca de Babel”, do escritor argentino Jorge Luís Borges, uma discussão muito interessante acerca das intersecções existentes entre os textos. Ele mostra-nos que é impossível achar um livro em que não existam vozes de outros seres, de outros escritores. Deparamo-nos, certamente, ao realizarmos a leitura de uma obra, com muitas e muitas referências a outros autores, à cultura popular, enfim, a algo que já conhecíamos de alguma maneira.

Essas intersecções ocorrem em todos os textos e permitem-nos repensar um fato, reavaliar uma postura, sentir aquilo que a arte transparece. Há uma relação intertextual que eu gostaria de destacar entre três versos do “Poema de Sete faces” de Carlos Drummond de Andrade e o poema “Poética” de Manuel Bandeira. Para que possamos explicitar essa relação, cabe-nos apresentá-los:

Versos do “Poema de Sete Faces”
Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução.

Poética
Estou farto do lirismo comedido 
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas


Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis


Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja 
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc


Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare


- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

A partir de um breve apontamento elaborado por Abgar Renault a respeito de “Poema de Sete faces” de Carlos Drummond de Andrade, que diz as seguintes palavras: “A intervenção aparece sempre que começa a haver indícios de revolta e libertação próxima” (RENAULT, 1978, p. 75), pudemos encontrar um ponto mais nítido de convergência entre os três versos apontados na questão número dois e “Poética” de Manuel Bandeira. O ponto chave de aproximação entre eles pode ser a revolta e ânsia de libertação.


Bandeira, em “Poética”, se revolta contra os moldes que impõem amarras à poesia, há uma verdadeira rebelião contra as fôrmas poéticas “Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado”. O lirismo criado como através de formas rígidas é renegado pelo poeta que o chama de político, raquítico e sifilítico. Este grito de libertação nos afigura como o assumir a sua poesia como criada a partir da liberdade, dos ritmos interiores, dos sentimentos que lhes são particulares. As possibilidades de liberdade criadora trazidas pelo Modernismo são abraçadas pelo poeta como um verdadeiro cais de salvação, ele “- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.

Nos seguintes versos “Mundo mundo vasto mundo/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”, observamos um Drummond também em tom de revolta com a rima em mundo - Raimundo, uma vez que ela nada traz do que realmente o eu-lírico necessita. Há uma percepção da inutilidade da metrificação perante a vastidão do mundo, o poeta coloca a rima em posição de inferioridade diante das coisas- e porque não perante as soluções que são necessárias - e critica a metrificação supérflua que muitas vezes reflete uma literatura inútil, vazia de significados e sem vida, atrás da qual se escondem muitos homens que se denominam poetas. Carlos Drummond, assim como Bandeira se revolta contra uma rima inútil, contra o culto de algo que na verdade não soma, não contribui para a poesia, para os homens. De certa forma, ele nega também a necessidade de se rimar ao se fazer poesia e implicitamente aponta para a poesia pura e simples (liberta) que nasce do homem de maneira muito menos mecânica.

 Emanuel de Moraes (1978, p.115) afirma que Drummond conseguiu, em suas realizações líricas, que “a forma não se constituísse em elemento de perturbação da realização poética” e o expresso no poema teve um grau de importância muito mais elevado. A poesia, para Carlos Drummond, exigia o se entregar aos trabalhos “cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação” (BANDEIRA, 1978, p. 101), ele aponta para o fato de que os poetas devem armar-se e não simplesmente produzirem uma poesia uma tanto quanto ingênua. A lírica é sempre um dever que o homem tem de cumprir. Da mesma forma, Bandeira não se deteve em seus poemas com a forma e sim com o conteúdo a ser retratado.

Essa despreocupação com a rigidez formal da poesia fez com que os dois poetas em questão produzissem poemas que muitas vezes estão no limiar entre poesia e prosa. Eles conseguiram se libertar de imposições métricas que talvez se fossem utilizadas a todo o momento por estes, não fariam de seus poemas tão ricos de imagens, sons e ritmos como o são – principalmente, se observarmos que estes elementos são fazem parte da peculiaridade da poesia de Drummond ou de Manuel Bandeira.

Referências Bibliográficas:
ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de Literatura I. 34ª ed.  São Paulo: Duas Cidades, 2003, p. 65 - 90.
BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1985.
DRUMMOND, Carlos.Sentimento de Mundo. Rio de Janeiro: Record, 1995.
MORAES, Emanuel de. As várias faces de uma poesia. In: BRAYNER, Sônia. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978, p. 98 - 122.
RENAULT, Abgar. Notas sobre um dos aspectos da Evolução da Poesia de Carlos Drummond de Andrade. In: BRAYNER, Sônia. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978, p. 73 - 82.















Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa.


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São Paulo em cena parte I: lugares e olhares


Em trânsito pelas ruas de São Paulo – ir, voltar, esperar – por motivação de trabalho ou, em raras vezes, de diversão, reflito como minha identidade, minha vida se funde de alguma forma a esse amontoado de gente e concreto que é São Paulo.
Sensação que faz eu voltar a minhas memórias, a minha Gênesis. Nasci na Brigadeiro Luis Antonio, num hospital que hoje posso visualizar duas vezes por semana do alto do prédio, um dos lugares onde trabalho. Minhas fortes lembranças vem da adolescência em que passei muito tempo sentada nas escadarias do Colégio Objetivo observando a Paulista. Encantava-me ver os Hare Krishnas cantando e vendendo incensos enfiados naqueles mantos opacos, levemente coloridos com os cabelos raspados, deixando um peculiar rabinho em alguma parte da cabeça. Executivos engravatados, mulheres bem vestidas caminhando rápido em meio à confusão de pessoas. Os Krishnas, os executivos e nós, os jovens do colégio, dividíamos aquele pedaço da Paulista, aquele cenário, sem nenhuma tensão e intenção. Era como assistir a um filme “ao vivo”. Eu e meus colegas sentados nas escadarias vivenciando múltiplas cenas que desencadeavam outras cenas, executadas em um cenário fixo; carros, ônibus, motos que apitavam e buzinavam. No contra plano, os prédios, o asfalto, faróis e os ainda sobreviventes casarões antigos.

Fotos: Katia Peixoto
Saguão da Sala São Paulo 
Idem
Quarto de hotel
Piscina de hotel
Pela janela do quarto de hotel  (21º andar)
Na sacada

Estação da Luz

Minha diversão era esticar o dia ficando por ali para irmos aos cinemas, ao Top Center, ao MASP, ao Parque Trianon, que chamávamos de parque dos tuberculosos, talvez por ser o único lugar que se podia ver algo de verde mesmo que coberto pela acinzentada poluição. Também íamos jogar pinball na travessa próxima ao colégio e passávamos, principalmente a sexta-feira, juntos nos divertindo no asfalto, nas vitrines e nos cinemas.
Quando ingressei na faculdade o cenário mudou um bocado, corria pelas cercanias da Estação Julio Prestes em direção a Estação luz do metrô em frente a Estação Luz da CPTM. Passava todos os dias pela antiga rodoviária de São Paulo. Ao invés de executivos e Krishnas, via putas, moradores de rua, vendedores ambulantes, sujeira, crianças chorando e muitos pedintes. Aos sons dos carros misturavam-se as buzinas constantes aos olhares das putas que as 6 30 da manhã ainda estavam pelas ruas. As lojas pequenas e alguns bares tiravam um pouco a minha atenção destes personagens e, muitas vezes, ficava olhando para cima, fugindo deles e ao mesmo tempo admirando a arquitetura da Estação Luz e Julio Prestes. São Paulo sempre me fascinou. E mesmo vivendo ali grande parte das horas dos meus dias, sempre me senti uma estrangeira.
Saguão da Estação Luz
Interior da Sala São Paulo
Essas questões me inquietaram e me inquietam de tal forma que proponho uma série, “São Paulo em Cena”, que buscará abordar desde um olhar mais intimista e pessoal sobre a cidade – demonstrada nas fotos que seguem – até colocar em foco, em outras duas edições, filmes e músicas que tematizaram a Paulicéia Desvairada.
Esse olhar é pessoal e, por isso, incompleto, recortado. E é particular na medida que expressou um sentimento presente no momento da captura dessas imagens: busca de um refúgio da cidade, na cidade. A distância das ruas, a carapaça do quarto de hotel para recompor a mente confusa e a loucura constante. Confesso que já fiquei em hotéis aos arredores da Paulista para descansar e ao mesmo tempo para repensar a cidade por um outro prisma. Um carnaval na Paulista tranqüila, um finados, uma necessidade de reviver momentos da adolescência. São Paulo que me encanta e que me faz sentir estrangeira na minha própria terra mas que me faz pensar, refletir.     
Saguão da Estação Luz


Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO, na FPA nos Cursos de Visuais e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.


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