Poemas de Ianê Mello

       



O Beijo de um Anjo
Na rua um corpo de mulher
nu... atirado ao chão
a chuva a encobri-lo
como um manto
em pesadas gotas
faz muito frio...
parece adormecido
entregue a dor tão profunda
que não se move
deixando a água a fluir sobre si
como um rio que banha
momentaneamente se move
aparentemente desperto
de um sono profundo
mas não encontra
forças para se erguer
e assim se mantem ao chão
mas seu espírito se eleva
nas asas de uma libélula
um anjo de luz
que voeja em raios de sol
num vôo de libertação
O sol perpassa
as gotículas de chuva
e nuvens se formam
e se avolumam
cálidas, alvas e envolventes
e brilham como estrelas
que pouco a pouco vestem
esse corpo de mulher
envolvendo sua nudez
em flocos brilhantes
enquanto seu corpo
antes inerte se ergue mais e mais
e ao ir se erguendo
quando completamente
coberta por uma veste
de nuvens algodoadas
de uma brancura alva
e purificadora
começa lentamente a caminhar
em direção a branca luz
e dela se aproxima
compreendendo o real sentido
compreendendo que sua vida findara
entrega seu corpo ao negro pássaro
e sem mais resistência
liberta seu corpo que jaz
Assim...
Inicia-se o bailado da vida e da morte
e a alma, enfim, se liberta.


Abrigo de Pedras
Em minha finitude e inconsistência
Me perco em caminhos mal traçados
Nas ausências, desventuras e no fracasso
Tento desatar meus próprios nós
e, aos poucos, me refaço
Busco um ponto de chegada na partida
Um remanso que me aplaque a alma
Merecido descanso de uma mente aflita
Das cinzas que me tornei, então renasço
Tal como a fênix um dia renascida
Das pedras construo um abrigo
e nele me protejo do cansaço
Das flores guardo o intenso perfume
Dos espinhos me desfaço
Montada em bravo cavalo 
Pego a minha vida num laço
As tristezas vão-se pelo ralo 
numa nova esperança que renasce
da semente que brota em meu ser
Consciente de mim mesma estou
Tornando possível o sonho de ver crescer
a mulher que em mim se formou


Projeções Humanas
Mulheres que se agrupam
na sombra
esquecidas
extenuadas
sem sobressaltos
Mulheres que se agrupam
na sombra
contornos
imaginários
de vultos
Mulheres que se agrupam
na sombra
fazem nela morada
de cansaço
de canção
de quedas aflitas
Mulheres que se agrupam
na sombra
rebrilham em luz
interior
cultivam paz
em lugar da guerra insana
Mulheres que se agrupam
na sombra
seus filhos protegem
no ventre
nos braços
na barra
da saia
Mulheres que se agrupam
na sombra
e invadem sonhos
de pobres homens
que dormem
solenemente
ao entardecer
Mulheres que se agrupam
na sombra
e do pranto
recriam o riso
e do espanto
redescobrem a coragem


A Outra
Não, não quero mais palavras retas
retilíneas e certas, precisas
Quero palavras tortas, cambaleantes,
encharcadas como um ébrio de sua bebida
a andar por aí à esmo, sem saber aonde chegar
Palavras embaralhadas, desprovidas de sentido,
palavras torpes, inaudíveis aos apurados ouvidos
Palavras que gritam, palavras que ferem
como ponta de faca
Palavras que acariciam como mãos de fada
Palavras...palavras...palavras...
Que me escapam entre os dedos
espalhando-se no branco papel
Palavras brancas, palavras brandas
Palavras vermelhas de sangue
Meu próprio sangue que escorre e flui
Como esntancá-lo, ferida aberta e exposta?
Como silenciar a voz que sai das entranhas
Esse grito gutural e animalesco
Esse urro, esse sussurro, esse bradar...
Como lobo a uivar pra lua
Animal aprisionado que se liberta
A noite não tem fim
Fechem janelas e portas
Tentem não ouvir esse apelo
Continuem surdos em seus mundos de hipocrisia
Sou fera, sou bicho, sou fêmea
Quando a lua vislumbro no alto céu
não sou mais eu , me transformo
Sou a natureza selvagem que em mim habita


Tão Longe e Tão Perto
Oco por dentro
Tosco e fosco
Entreatos vago
Inconstante
Distante
Inalcançável,
mesmo próximo
Roço com os dedos
tua tez suada,
sinto teus pelos
arrepiados ao toque
sinto tuas marcas
calcadas pelo tempo
Mas aonde estás?
Não em teu corpo,
estou certa
Já fugiste para
outra esfera
mais confortável
e silenciosa
Tento alcançá-lo...
em vão
Não me pertences,
bem o sei,
nem isso quero,
mas apenas
tua presença
além de um
corpo inerte
Mas te deixo
partir
O que me resta?
Esperar pela tua
volta,
espiando tua ida
pela fresta
da janela
de teus olhos




Ianê Rubens de Mello nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É educadora e pós-graduada em Pedagogia. Identificada com as diversas propostas em textos literários, escreve também com resultados diversificados. Seus textos incluem contos, crônicas, aforismos, haicais e poesias. Alguns deles são publicados na internet, em sites, blogs e revistas eletrônicas. Escreveu um livro de contos do rock "Rocktales" com o escritor Beto Palaio, em análise pela Editora Record.







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E a poesia se faz real (?)



 Olá leitores! Depois de um tempo de recesso da coluna Escritos Contemporâneos, hoje, retoma-se as atividades a ela relacionadas. Durante as férias, li algumas coisas interessantes que quero compartilhar com vocês.
Como minha pesquisa de Mestrado relaciona-se à poesia portuguesa contemporânea e às ressonâncias que a ditadura portuguesa, a Revolução dos Cravos e o pós- revolução, refletiram na poesia elaborada durante esse período, no mínimo, conturbado na vida da sociedade portuguesa, não posso deixar de trazer à tona aquilo que me inquieta. Por isso, hoje, apresentarei dois poemas, de poetas distintos, que dialogam com esse período histórico português e, de alguma forma, entre si.
O primeiro deles é o Poema “25 de Abril” de Sophia de Mello Breyner Andresen, que compõe o livro da mesma autora intitulado O Nome das Coisas (1977) e refere-se ao dia da Revolução dos Cravos – revolta que depôs o regime totalitário lusitano.  

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.

Observamos que o poema em si possui uma referência direta com a esperança de dias mais justos, mais limpos, com menos proibições e mais igualitários. Um poema, de certa forma, utópico, que reflete a possibilidade de mudança trazida pela Revolução. Era o desejo do eu lírico de que a partir desse momento cravado na história de que todos pudessem “E livres habitamos a substância do tempo”.
Outros poemas de Sophia, publicados no mesmo livro no qual encontra-se “25 de Abril” e que provavelmente foram escritos algum tempo após a revolução, parecem refletir um certo desencanto da poeta quanto às mudanças anunciadas, ansiadas, esperadas, no entanto, não cumpridas, como em “Será possível”:

Será possível que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
– Que nada sejam senão seu rosto ido
Sem regresso nem resposta - só perdido?
Mas esse sentimento de desencanto com a política e, inclusive (ou, em especial), com os homens é compartilhado por outros sujeitos que viveram esse período “censurado” na vida pública e intelectual portuguesa. Ainda em 1961, Ruy Belo publicava “Desencanto dos Dias”. E a partir do poema que será exposto a seguir, podemos nos questionar se mais de uma década depois da publicação de Ruy Belo, Sophia não desnudava a verdade de que tudo não passou de uma ilusão, de que, na verdade, a Revolução não trouxe mudanças significativas? Vamos ao poema:
Não era afinal isto que esperávamos
Não era este o dia
Que movimentos nos consente?
Ah ninguém sabe
como ainda és possível poesia
neste país onde nunca ninguém viu
aquele grande dia diferente

Sophia, nos poemas escritos momentos após a insurreição pública contra o regime ditatorial, parece responder à pergunta elaborada há tempos por Ruy Belo, apresentando “O dia inicial inteiro e limpo”. Entretanto, após o momento eufórico e utópico de libertação das amarras, ela reflete novamente e vislumbra que, na verdade, as coisas são “sem regresso nem resposta”, como “Palavras sem sentido”, possibilitando a todos sentir como se tudo fosse “perdido”.
Reflexões como essa são correntes e importantes na literatura em geral, uma vez que a Arte em si tem um papel relacionado diretamente com a sociedade. Como muitos estudiosos postulam, a sociedade necessita da arte e vice-versa. Isso implica no caráter crítico que a arte possui, tanto em relação ao estético, quanto ao social. Às vezes, devemos (ou deveríamos) parar e escutar reflexões, como as elaboradas nos poemas apresentados, para que sejamos mais críticos em relação ao mundo e a nós mesmos.

 
Rodrigo C. M. Machado é mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa. Dedica-se ao estudo da poesia portuguesa contemporânea, com destaque para a lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen.
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O reencontro de pessoas num lugar de magia: Paulo Netho serve a todos o seu Bolinho de Chuva


Paulo Netho na Livraria da Vila
Fotos: Kátia Peixoto dos Santos

Há pessoas que são especiais, parecem estar sempre por perto. Às vezes ficamos um tempo sem vê-las mas de repente a encontramos meio ao acaso, em uma esquina, em um ponto de ônibus, num parque qualquer. Para alguns a encontramos por acaso, para mim por encanto. Elas simplesmente surgem e neste instante a amizade continua donde parou, como se num passe de mágica o hiato temporal deixasse de existir.
Assim foi quando reencontrei Paulo Netho, amigo "das antigas" que sempre soube brincar com as palavras. Com elas, ele mexe e remexe, recria e reinventa o lugar. A poesia flui soltinha pelos seus poros, pelos seus olhos e gestos. Poesia que nasce e se nutre pelo contato alegre com o outro.
Ele acredita na alma, naquela alma que ilumina o corpo. O sorriso que busca é o da criança, aquele riso esquecido no trânsito, no programa do Datena, nas página sangrentas de mais um dia de confronto no Iraque, nos incêndios de prédios na Grécia, nas notícias de jornais. Dane-se o mal humor, dane-se a falta de tempo, às favas o cotidiano traiçoeiro, eu quero um cantinho pra sonhar .... 

Oh queridos amigos, o Paulinho é poeta, interrompe e suspende o instante para que ele dure, dure o suficiente para esquecermos de nós, do dia, do antes e do depois. Pausa.... silêncio para ouvir o instante presente, suspenso no ar e dando reviravoltas, a poesia se faz.

Ah amigo Paulo, você me emocionou num dia destes, rodeado de fãs, você “causou” na Vila. É, foi lá na Livraria da Vila, neste último sábado que você voou mais uma vez, alto e livre. Eis que tornou-se público seu livro:


“Bolinho de Chuva e outras miudezas”, Paulo Netho, editora Peirópolis. São Paulo, 2012. Ilustrações Carla Irusta



Ao acompanharmos Paulo Netho no livro “Bolinho de Chuva e outras miudezas”, entramos num universo lúdico recheado de momentos da infância; da dele, da minha e a de todos nós.  Lendo as poesias, ao adulto  é dada a  permissão de recordar, pintando imagens nos papéis mentais pela redescoberta do sentir; nos cheiros, nos sons, nos tons e matizes de cores que muitas vezes são apagadas pelas pegadas do dia-a-dia.

As belezas esquecidas num tempo em que o cheiro do café, os bolinhos de chuva, as pipas voando do ar, os cachorros latindo preenchiam as cenas afetuosas e aconchegantes  de um lugar. Lugar que está dentro de nós, e é lá, neste lugar encantado que vive nossas recordações.

As ilustrações de Carla Irusta consegue dar conta, fortalecendo o clima intimista da narrativa que conta de forma lúdica nossos melhores momentos vividos muitas vezes em lugares inventados.


Na tarde de sábado passado a Livraria da Vila estava repleta, filas para ganhar o autógrafo do menino Paulinho. Foi um encontro para todos. Paulinho conseguiu a façanha de reunir pessoas que há muito não se viam e, como num passe de mágica, estávamos lá, eu e outros que não ao acaso o vimos brilhar.
Parabéns amigo, pelo belo livro e por nos proporcionar, numa tarde chuvosa de sábado, o peculiar encontro encantado. É ou não é uma magia poder ver tantas pessoas juntas se reencontrando para ver e ouvir o poeta?




Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sobre a direção de Antônio Benega.
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