Ao danchi com carinho...
Habitar
no Japão é muito prático, funcional e possui suas peculiaridades. Por aqui, os
atendentes das imobiliárias têm até um
vocabulário específico para apresentar/explicar as diferentes disposições
internas dos apartamentos a serem alugados/comprados: estilo kamaboko
(uma espécie de “pasta de peixe”), estilo yokan-giri (doce de feijão
geralmente em formato retangular), estilo ta no ji (ideograma de
arrozal) ou “barra de chocolate”. Se compararmos com o Brasil, em média o
tamanho destes apartamentos ou “caixas” (construídos nos últimos vinte anos)
não varia muito, entre 50 a 75 metros quadrados. Geralmente os japoneses os escolhem
de acordo com o tamanho da família, localidade, funcionalidade e (é claro...) o
seu “bolso”. Nos dias de hoje (além das casas pré-fabricadas) as duas opções
mais “modernas” são os apartamentos (アパート= apaato) e as mansões (マンション= mansion). Mais
uma vez a peculiaridade nipônica nos toma de assalto: a denominação apaato/apartamento
até da para compreender, associando a palavra à imagem, mas quanto a mansion/mansão
fica difícil para nós, tupiniquins, associarmos de “bate-pronto”. Advirto que
uma mansion aqui não tem nada a ver com uma mansão aí no Brasil. Para
não me alongar muito na explicação, o link abaixo vai ao ponto:
A questão dos espaços habitáveis no País do Sol
Nascente é historicamente importante na representação do modus vivendi
japonês. Notamos isso, por exemplo, ao visitar um museu em forma de vila,
representando o estilo de vida do período Edo (江戸時代 = Edo
jidai 1603-1868) na, então, próspera cidade de Osaka ou próximo de onde nós
moramos, ao visitar um museu ao ar livre que nos possibilita ver, em tamanho
real, habitações originais e representativas de antigas fazendas de várias
regiões do Japão dos últimos trezentos anos. Podemos notar um certo padrão na
arquitetura das casas (simplicidade nos traços, espaços arejados,
funcionalidade), mas também grandes diferenças (formato do telhado, disposição
dos quartos, armazenamento de alimentos, etc..). Uma lógica arquitetônica onde
a família extensa (três gerações ou mais) era o centro de tudo.
Como em qualquer país que tenha o mínimo de cuidado
com o seu patrimônio histórico (aqui um parêntese: mais de 80 % dos castelos
pertencentes aos daymios - senhores feudais japoneses - foi demolida nos
primeiros anos da era Meiji...), no Japão é possível notar e admirar a
preservação e a representatividade de vários estilos arquitetônicos, seja ele
palaciano, militar, religioso ou popular, exemplos de diferentes períodos da
história nipônica. Seguindo essa lógica,
podemos dizer que o danchi é representativo de um certo período da
história do Japão, a era Showa (昭和時代= Showa jidai 1926-1989).
Essa palavra pode ser
traduzida para o português como “conjunto residencial”. Esse modelo
habitacional é representativo do padrão de moradia popular do pós-Segunda
Guerra no Japão. Os ideogramas de danchi,
separadamente, representam, 団 = grupo de
pessoas “bem juntinhas” e 地 = terra, terreno. Esse modelo de moradia popular
tornou-se um dos símbolos japoneses durante as décadas de 1950-80,
principalmente, durante o “milagre” japonês.
Construídos por um órgão do governo
japonês chamado Nihon Jutaku Kodan (1955) atual Toshi Kiko - UR (Agência Nacional de
Planejamento Urbano - privatizada), esse modelo de apartamentos em blocos
(muito similar à COHAB no Brasil) foi inspirado no modelo soviético de moradia
popular construído nos subúrbios de Moscou e Leningrado. A motivação da Kodan
ao implantar no Japão esse modelo se encontrava principalmente no design
prático e no baixo custo do projeto, objetivando suprir a grande demanda por
moradia próxima aos centros urbanos. Além disso, esse projeto habitacional era
um retrato do Zeitgeist japonês em fins da década de 1950: momento em
que o Japão havia reatado relações diplomáticas com a ex-URSS, nele ocorreu a
ascensão das uniões trabalhistas, das ligas estudantis (como a Zengakuren fundada em 1948) e da associação dos
professores japoneses, que passam a ter voz mais ativa, debatendo e divulgando concepções
de cunho socialista, ou seja, espalhando
ares de um sentimento considerado mais “democrático” (com menos censura, por
exemplo) para discutir ideias, pela primeira vez, com autonomia, após os sete anos de ocupação norte-americana
(1945-1952). A novidade, a uniformidade e a simplicidade dos danchis
reforçavam esse sentimento.
Construídos em concreto, geralmente
na cor cinza, com quatro/cinco andares (já vi um com seis!), todos os
apartamentos têm a mesma planta de cerca de quarenta e cinco metros quadrados
de área para uma família, em média, de cinco/seis pessoas. No projeto original
as unidades não são providas de elevadores nem saídas de emergência para casos
de incêndio e, em sua maioria, não possuem portões: você entra direto da rua no
apartamento onde mora ou que vai visitar. Os danchi são considerados exemplos de funcionalidade, apesar de
carecer de elevadores e sistemas de segurança mínimos e de nunca terem sido
considerados “bonitos” ou “modernos”, arquitetonicamente falando. Os pontos
positivos, se comparados aos apaatos ou mansions, são o ambiente
mais iluminado, cômodos mais espaçosos e melhor circulação de ar. Hoje, ao caminhar pelos arredores do nosso
bairro ou no trajeto do trem para a estação de Umeda (Osaka) podemos ainda avistar
vários conjuntos de danchis, alguns blocos com cerca de 30-40
anos de idade. Feios? Parecem decrépitos? Ou “Mal-Assombrados”? Rsss... Para
mim, não importa. Considero-os monumentos (na concepção do historiador
francês Jacques Le Goff) de uma época de crescimento e prosperidade japonesa,
na segunda metade do “breve” século XX.
Uma revelação: ao escrever
esta coluna fiz uma descoberta. Constatei que o imóvel onde moramos, no
primeiro ano e meio aqui em Osaka, pode ser considerado um misto de apaato/danchi
para funcionários públicos (宿舎)= Shukusha).
Explico: o
conjunto habitacional é administrado pela universidade, portanto tem caráter público.
Composto de quatro blocos com quatro andares, cada um com dois apartamentos, o
conjunto inclui um pequeno estacionamento e um salão comunitário (ou “de
festas”) . Nosso bloco era o de número um, apartamento 212, um dos mais
“antigos”, construído em meados de 1970. Boa parte do que descrevi acima sobre
os danchis pode se aplicar a nossa morada inicial, as únicas diferenças
estão em suas boas dimensões para o padrão nipônico - cerca de 80 metros
quadrados – e na disposição dos blocos. Eu adorava o espaço do apartamento,
pois nele acomodávamos de maneira digna nossas visitas, fossem amigos
brasileiros ou estrangeiros ou até mesmo um grupo de onze alunos curiosos do
primeiro ano, que passaram uma tarde conosco aprendendo a fazer brigadeiro e
arroz-doce... O maior problema era (ainda é...) o estado de conservação dos
blocos, tanto por fora como por dentro. A sensação, a um primeiro olhar, é a de
abandono pela administração da universidade. A alguns dos nossos ex-vizinhos e
colegas de trabalho isso incomoda, mas a outros não. Para nós, viver no Shukusha
da universidade marcou nossas memórias dos primeiros (e intensos) momentos no
Japão. Uma experiência que nunca imaginava vivenciar nem no Brasil. Às vezes dá
até uma “saudadezinha”...
また今度!!
Até a próxima!
Todas imagens publicadas na coluna possuem
direitos autorais Copyright ©2013AkitiDezem
Links e
bibliografia de referência:
Open Air Museum of Japanese Farm Houses: http://www.osaka-info.jp/en/search/detail/sightseeing_5337.html
団地の時代 (A Era dos Danchis). Autor: Takashi Hara. 新潮社, 2010.
Exemplo de danchi:
http://japanpropertycentral.com/2011/11/apartment-reconstruction-cancelled-due-to-liquefaction/
A “Cohab Brasileira”
em solo japonês: http://esportes.terra.com.br/corinthians/conheca-homi-danchi-a-cohab-brasileira-em-solo-japones,78d2eb598d67b310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.htm
Rogerio Akiti Dezem é professor visitante de língua portuguesa e cultura brasileira da Universidade de Osaka, no Japão. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Matizes do Amarelo - A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (Humanitas, 2005) entre outros livros.