Típico Alemão





      O testemunho, e no caso aqui, o testemunho da vivência de outra cultura, a gente não pode nunca deixar de lembrar que é pessoal, principalmente por conta da "tal da generalização".

      Numa viagem de férias, fulano passa alguns dias nessa e naquela cidade, quer ver, quer conhecer, quer "ter estado". E quando volta: "Ah, na Itália é assim...". "Em Portugal é assado..." Perfeito, correto. Viajar é catar impressões, colher, levar pra casa e com sorte deixar tais impressões mudarem algo dentro de si mesmo. Eu disse: "Com sorte"...
      Beltrano vive num país que não é o seu, tem uma vivência de décadas, ele sabe ele vê, se confronta, interpreta com seu filtro, faz a síntese da sua experiência,  e mesmo assim ainda não pode estar confortável e se arriscar em generalização. Com sorte, ele também se deixa mudar... Com sorte.

      E aí então, pra tudo não ficar chato demais,  existe o código secreto e intrínseco de aceitar a generalização, sem problematiza-la, principalmente quando esta é positiva. Um fala "Na Alemanha é assim..." e o outro entende: "O que eu vi na Alemanha foi isso..." E estamos combinados.

      Há muitos e muitos anos um jornalista alemão me pediu para falar sobre o que, para mim, seria típico alemão. Ele buscava estrangeiros que respondessem à pergunta. Automaticamente falei: sandálias com meias. Estávamos ao telefone e, do outro lado da linha (espero que todos entendam essa expressão), o jornalista gargalhou de maneira aprovativa. Me queria para seu artigo.

Quando encontrar um gringo assim por aí, saiba: ele é de língua alemã...

      O leitor não pode imaginar o choque estético-culutral que tive ao avistar um indivíduo vindo em minha direção usando orgulhosamente sandália com meias em pleno verão... mesmo sendo desnecessárias.
      Nunca vi povo pra ter paixão por sandálias com meias. Essa paixão mostra a proximidade dos países falantes de língua alemã, austríacos também são adeptos. Qual não foi a minha decepção ao ver o baterista e cantor de uma banda austríaca muito querida ir fazer um show de sandálias e meias brancas! Dos suíços eu não sei dizer, mas arriscaria colocá-los no pacote.
      Modelito de verão preferido, a meia branca é o clássico. Os mais discretos preferem as meias escuras. E isso me faz lembrar uma das minhas aventuras em Berlim.

      Na copa de 2006 mais uma vez um repórter me procurou, desta vez um brasileiro. O cara havia marcado um entrevista com Udo Voigt, o chefão do partido neonazista alemão e ela aconteceria na sede do partido. Na noite anterior mal consegui dormir, tive sonhos malucos e apesar de feliz pela oportunidade de entrar no covil dos lobos, estava super amedrontada.
     Ainda me lembro muito bem de quando entramos na casa, fomos bem recebidos e bem tratados, claro, mas quando passei os olhos por toda a sala, vi um rapaz todo tatuado nos encarando de forma ameaçadora e tive a impressão dele ser todo amarelado. O rapaz, para mim, estava literalmente amarelo de ódio. O que só aumentou a minha apreensão.
      Seguimos até a escritório do chefe, uma bandeira do partido enorme, outra bandeira da antiga Alemanha, símbolos nazistas para todos os lados, eu nervosa no meu primeiro trabalho como intérprete. Aí olho pra baixo e vejo aquele homem que representava uma carga de ódio e intolerância usando sandálias com meias... Sorri por dentro, e recobrei toda a minha confiança.

    Neste dia, como sempre desejam os alemães, eu realmente "me diverti no trabalho".


Ana Valéria é historiadora e mora em Berlim. Terminou dois “estudos de História” uma vez no Brasil outra na Alemanha. Hoje trabalha como tradutora.

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Se chorei ou se sorri


Definição melhor não há para Divertida mente: filme cabeça. Não bastasse ter como cenário principal o cérebro de uma menina de onze anos (Riley) e como protagonistas as emoções que lá habitam – Alegria, Medo, Nojinho, Raiva e Tristeza –, o novo longa da Pixar ainda apresenta um conjunto tão vasto de boas ideias, que ofuscaria até uma viagem à cachola de Freud guiada por Charlie Kaufman.

Que neurônio não sorri diante daquelas criaturinhas aspirando e descartando as lembranças mais antigas? Que não gargalha toda vez que certo jingle é repetido? Que não pega carona no trem do pensamento? Que não se encanta com as ilhas que sustentam a personalidade de Riley e que, com a passagem da infância para a adolescência, desmoronam e precisam ser reconstruídas?

Quantas sinapses não são feitas quando três personagens invadem a sala do pensamento abstrato e sofrem uma espécie de picassoalização das suas formas (numa sequência que brinca com a própria natureza da animação)? Quantas zonas da massa cinzenta não são reativadas quando certa criatura assustadora – que repousava nos confins do inconsciente – precisa ser acordada? Quantos neurotransmissores não são produzidos quando somos levados ao lugar onde os sonhos são fabricados – algo como uma Hollywood intracraniana?

Mesmo que se resumisse a esses conceitos – todos tão bem resolvidos visualmente, que em geral prescindem de grandes explicações para que sejam entendidos (vide as memórias, representadas pelas esferas coloridas) –, Divertida mente já seria um filmaço. Mas não. Ele vai muitíssimo além de um desfile de alegorias digno de nota dez em originalidade.

Numa época em que não compartilhar selfies de felicidade absoluta a cada segundo é indício de câncer emocional em processo de metástase, um filme que trata a Tristeza com tezão, conferindo-lhe status de personagem indispensável à vida de qualquer ser humano, merece toda a atenção e reverência. É um insight de ousadia e coragem em meio a tanto déjà-vu nas telonas.

Em ritmo de aventura (o que entretém os ainda miúdos), o roteiro mostra ao espectador e à Alegria – habituada a afastar a Tristeza do painel de comando – que não amadurecemos apenas com sorrisos: lágrimas são mais do que necessárias para que possamos pavimentar novas estradas dentro de nós mesmos e erguer pontes mais seguras entre nossas emoções e o mundo.

Falando em pontes, sugiro ao leitor que atravesse uma até o cinema mais próximo. Já. Se quiser experimentar a sensação de uma doce amnésia do senso comum.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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FLASHBACK LITERÁRIO (2012)



FLASHBACK LITERÁRIO (2012)


Abraços Literários e até +.


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Fim de mundo que liberta.



Às vezes nossa pior tragédia, pode ser nossa salvação.
É difícil pensar isso, porque nossa pior tragédia parece ser o fim de tudo, sendo difícil mesmo imaginar uma continuidade qualquer depois dela.
Mas nossa pior tragédia pode ser tudo o que a gente precisa pra se reinventar, viver de um outro jeito, iniciar uma nova forma de levar a vida, uma nova maneira de encarar o mundo e encontrar soluções para problemas truncados, questões que pareciam insolúveis.
A nossa tragédia particular é, sob esse ponto de vista, libertadora. Quando o pior que nos poderia acontecer, enfim acontece, é como se a partir de então não houvesse mais o que temer, e se pudesse seguir em frente sem o peso de evitar uma perda... parece que, afinal, nesta caminhada, tudo foi pensado, cuidadosamente arquitetado, para "sofrer" perdas.
E não há o que se fazer a esse respeito, a não ser conformar-se, adaptar-se, desapegar-se.
Sou uma pessoa apegada. Coleciono coisinhas, que sei dizer o dia em que foram havidas, as pessoas a que me remetem, às vezes a roupa que eu vestia.
Sou tão apegada que as músicas, por exemplo, raras exceções, ficam indelevelmente ligadas aos momentos de vida que permearam, episódios da minha história de que foram trilha sonora, e é difícil pra mim, no futuro, ouvi-las novamente, desligá-las daquele período de vida, pensá-las apenas como músicas. Fico avessa a muitas delas, não importa quanto tenham sido importantes, quanto tenham condecorado os pequenos clímax do meu enredo.
O apego...
Meu pai um dia me disse: "você se apega a tudo!" e eu pensei, com certo pesar, que era verdade.
Mas não totalmente. Aprendi, nas encruzilhadas da vida, que há certas bagagens que a gente não deve carregar. 
E hoje sou tão boa em guardar tranqueiras e penduricalhos, quanto em faxinar armários, gavetas, arruinar caixas inteiras de lembranças.
E olhar para o outro lado, hábito muito difícil, que requer prática, requer persistência... acabou virando uma sabedoria concreta, uma coisa que sei fazer bem, ainda que não sem sofrimento (ainda).
Ninguém quer que a tragédia aconteça. Ninguém anseia pelo fim do mundo. Mas de um jeito ou de outro a gente descobre que depois do fim do mundo existe um novo começo, às vezes de um mundo muito melhor e mais leve de levar. Porque depois que se abriu mão do mundo inteiro uma vez, aprende-se que é possível continuar sob qualquer circunstância e que ter o corpo, sim, parece ser fato de máxima importância.
Aquela frase batida "saúde e paz, o resto a gente corre atrás", penso que até de paz a gente corre atrás... e que saúde é o que de verdade importa, ainda que muita gente sem saúde ou com pouca saúde, consiga dar passos largos em direção à evolução e à felicidade.
Mas, pra mim, que gosto tanto da natureza, que gosto tanto de sair por aí sentindo o vento e deixando as coisas se organizarem sozinhas, como uma história que a gente conta e que vai se inventando em si mesma à medida que nasce - a saúde,  ter as pernas e poder andar, ter o corpo que seja, pra sentir mergulhar numa piscina azul numa tarde quente, ter a pele que seja pra sentir um beijo, o toque suave e terno de uma mão amorosa percorrendo as costas, é o mais importante de todas as coisas e nenhuma tragédia pode ser maior que deixar de ter o corpo (neste sentido).

Mergulhar no azul e sentir todo o corpo envolto pela água, a densidade suave da água envolvendo-nos inteiramente, como de volta ao ventre da mãe.

Um sonho:

Engraçado e bonito é que tinha uma grande piscina, e bem azul. Eu saio dela molhada e atravesso o saguão sem saber se é permitido andar molhada por ali. Encontro algumas pessoas da literatura, que, em sonho, eu conhecia e abro a porta: do outro lado há outra piscina bem azul, maior que a primeira, e eu fico admirada que haja no meu hotel duas piscinas tão grandes, perto do mar, e mergulho: tchibummmm. 
Bom presságio, porque pra mim nada se aproxima mais do conceito de felicidade que um mergulho de corpo inteiro numa piscina bem azul, em dia de sol.


que me desculpe o Chico,
mas nada é "pior do que se entrevar",
enquanto se puder correr, correr
ir por aí
tá tudo bem.

Discordo de Chico. Pra mim, nada é pior do que se entrevar. 
Mas como eu dizia ao início, mesmo depois do fato mais terrível, do assombro mais temido, da perda mais insuportável, começa uma estrada. E pode ser acalentador caminhar por ela sem apego de nada, perdido das coisas mais preciosas, tendo-se a si mesmo, apenas.
E dentro de si, a força que não acaba, a qual você pode chamar de Deus, e que você pode conhecer melhor, compreender uma nesga que seja, quando estiver despido de tudo (quem sabe também do corpo? - a minha pior tragédia).




escute esta canção e entenda com o coração, o que não está dito.









Larissa Germano é autora de "Cinzas e Cheiros" e escreve nos blogs Palavras Apenas (naoapenaspalavras.blogspot.com) e Nunca Te Vi Sempre Te Amei (cafehparis.blogspot.com), Tem perfil no facebook e no twitter e a página Lári Prosa e Trova no facebook. É também compositora intuitiva e tem perfil no Sound Cloud e Youtube.


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