A afilhada da lua.
Dois Poemas comentados de Anna Maria Dutra de Menezes de Carvalho
por Altair de Oliveira.
Quisera eu estar menos apaixonado pela poesia desta Senhora Poeta Anna Maria Dutra de Menezes de Carvalho, nascida no Rio de Janeiro em 1933 e que ainda mora lá, para poder contemplar seus poemas com a sabedoria que eles merecem. Mesmo assim, sem pretensão nenhuma de qualquer análise ou interpretação literária, decidi tecer 2 comentários sobre os poemas que seguem abaixo, extraído de seu mais recente livro "Auto de Ana, a Louca", munido apenas pela comoção que a leitura deles me proporcionou.
***
Poema comentado I
Um poema com o nome de "Auto-Retrato Vaguíssimo", de uma poeta que até uma semana atrás desafortunadamente eu nunca ouvira falar (fui apresentado à sua poesia pelo excelente João Luís, do Corujão da Poesia no RJ), lembrou-me inicialmento o poema "Auto-Retrato" da também carioca e poeta Cecília Meireles, só que neste último a imagem aparece mais etérea e multifacetada enquanto que no retrato de Anna, apesar de vago e bordado de antíteses, é mais nítido e podemos muito bem ver nele a marca d'água daqueles que buscam a si mesmo.
O "vaguíssimo" do auto-retrato da Anna Maria, por um momento, me deu a impressão de ver um Van Gogh desesperadamente tentando retratar o mundo que o fazia doer. Mas não, a pessoa que o escreveu devia estar sereníssima, se doera a dor se fizera aparentada. Do trono do reinado de si mesma, ela se contemplara com muita força e por muito tempo. Força e tempo suficientes para aprender a prender-se em bem-querer.
Narcisista (ela mesma adverte ao iniciar o poema), mas quem não é!? Não é este mesmo narcisismo um dos principais combustíveis da arte?
A poeta aqui, calcada pelas atribulações e contradições mundanas, parece justificar-se de que vive para construir o sagrado de si e, como Rilke, consegue até avizinhar-se de Deus. Mas ela consegue mais, consegue convencer-se de que ela é mesmo apaixonante e, para o nosso bem, nos leva junto com ela.
AUTO-RETRATO VAGUÍSSIMO
Narcisista, refinada e vadia
profundamente idílica e artista
posso ser nova coisa a cada dia,
tirana, iconoclasta, panteísta.
E estou-me nas tintas francamente
para a moral vigente no recreio
o meu carisma em elo trascendente
une meu ego ao absurdo enleio.
As convenções me cansam o pensamento
e deixo as leis a quem é de direito
eu sou a dona de meu advento
do medo fiz cautela de provento.
Cuido de mim o mais divinamente
como se fora deusa que exilada
espera retornar devidamente
à sua divindade abandonada.
E se do amor de ação prerrogativa
me ofertam o sabonete sem tamanho
a minha pele sempre sensitiva
aceita o eventual e toma banho.
Como tudo na vida é virtual
despido de nobreza e de virtude
minha dignidade é amoral
e sou demônio da beatitude.
Ergo, invento, refaço e quase crio
no mágico mistério do existir
e carinhosamente eu alicio
minha nudez perita em se vestir.
Tenho o vício sutil deste tabaco
e já bebi suficientemente
e se hoje não durmo junto a Baco
é por excesso de o deixar contente.
Gosto de mim achando-me bonita
abuso do direito de orquestrar
a mistificação que não limita
o convite da vida em seu valsar.
Durmo bem e só como em ritual
aliás, sou uma ritualista
não fosse este meu ser fundamental
o mais possível do surrealista
não fosse mitológica que enrede
a todos os delírios congregados
neste holocausto que oferece e pede
a magia dos astros deslumbrados.
Sou vizinha de Deus, nos entendemos
cada qual em seu campo pretendido
nos divertimos e nos entretemos
o que nos faz felizes e unidos.
Do resto é viajar no meu veleiro
este mar que me leva a Alexandria
seguindo o seu farol, luz e sendeiro
na eternidade do meu cada dia.
E se transpondo o oculto universal
do fantástico sempre ao meu dispor
seguir o meu calendário intemporal
a ser eu mesma seja onde for!
***
Poema comentado II
A primeira imagem que surgiu-me deste poema foi a configuração da própria Anna, a poeta louca, no centro do palco crepuscular de Edward Munch, com o seu grito inadiável fazendo estremecer o mundo e o Deus que estava por trás dele.
Demasiadamente humana e raivosa, a louca da Anna cobrava inicialmente o amor, razão com prioridade zero na existência. Mas ela cobrava também o seu quinhão de conhecimento e a partilha do sagrado.
Como uma metáfora fabulosa, o poema evoca assustadoramente os deuses com o seu grito, mas surpreendentemente ele parece nos remeter à nossa condição humana de homens e mulheres reais, com as nossas injustiças históricas de compartilhamento do mundo. Por um momento o grito de Ana, a louca, parece ser o grito de todas as mulheres de todos os tempos: lúcido e impossível de ser incompreendido. Mas no livro "Auto de Ana, a Louca", de Anna Maria, há um subtítulo que alerta "Poemas Lúcidos".
Loucos então seremos nós, os pré-tensos amantes da poesia, se protelarmos em conhecer o trabalho desta grande poeta.
O GRITO
Gritava louca pela madrugada
o seu selo de dor sobre o infinito
que nunca fora amante ou fora amada
que nunca fora fêmea além do grito.
Reclamava dos deuses seus direitos
ocultos no evangelho do sagrado
a destruir processos dos conceitos
do conseguir perdão sem ter pecado.
Aranhava da cara o sangue exato
nesta consagração adventista
de seu Messias posto no abstrato
de seu ventre poeta ou panteísta.
Mordia o chão com fúria desabrida
de Górgona infeliz decapitada
pois queria saber tudo na vida
na alquimia da coisa sagrada.
Gritava por seu nome além do antes
a acordar seu mundo paralelo
por todas as matérias consoantes
- queria o caduceu, queria o velo!
Entregava a Apolo seu contorno
e em Selene ungia o seu magoar
mas não via ninguém olhando em torno
e não parava nunca de gritar.
Finalmente no eco do profundo
este Deus do saber ensimesmado
sentindo perturbar-se de seu mundo
resolveu atender o seu chamado.
E enviou o anjo da bonança
com o cálice de amor restituído
vagando sobre a arca da aliança
nesta razão do todo concluído.
E deu-lhe o homem, a cama, o conhecer
o uso da razão, a presciência
a rosa no cruzeiro do saber
a eternidade pela persistência.
Então ela vestiu o seu noivado
de luz esfuziante de alegria
e prometeu ao deus apaziguado
que nunca mais na vida gritaria.
Anna Maria Dutra de Menezes de Carvalho - In: "O Auto de Ana, a Louca. - Poemas Lúcidos".
Quem é Anna Maria D. M. de Carvalho:
Anna Maria Dutra de Menezes de Carvalho, é poeta e escritora nascida no Rio de Janeiro em 23 de julho de 1933, tendo crescido entre lideranças políticas e intelectuais no casarão de seu pais, na tradicional rua São Clemente. Filha de embaixador, conviveu com os maiores poetas contemporâneos, editou vários livros, morou anos na Europa e viajou pelo mundo inteiro. Teve acento junto às mesas dos grandes da literatura, especialmente em Lisboa, com os queridos líderes africanos Samora Machel e Agostinho Netto, dentre outros. Foi pioneira da TV TUPI, sempre cercada de intelectuais e artistas, escreveu o livro “Estribilho do Encarcerado” cuja a primeira edição foi 1967, instigada por Vinicius de Moraes e Paulo Mendes Campos. É conselheira do Instituto Brasilan e especialista em folclore brasileiro. Reeditou o "Estribilho" em Agosto de 2009 e sob pressão dos amigos, começou a divulgar o seu mais recente livro escrito em Portugal em 2006, "O Auto de Ana, a Louca - poemas lúcidos".
Para saber mais: http://autodeanna.blogspot.com/
Ilustrações: foto da poeta Anna Maria D. de M. de Carvalho, máscara e desenho da artista plástica Iasmin Mattos e foto da capa do livro "Auto de Ana, a Louca".
Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve às segundas-feiras no ContemporARTES. Contará com a colaboração de Marilda Confortin (Sul), Rodolpho Saraiva (RJ / Leste) e Patrícia Amaral (SP/Centro Sul).
3 comentários:
Lindos poemas, fortes, marcantes.
26 de abril de 2010 às 21:26Parabéns Altair pelo excelente gosto, em nos brindar
com essas maravilhas.
Abraço.Dalvissima
Altair Poeta querido, conheci a Anna através também do João do Cotujão.
26 de abril de 2010 às 21:55Estou realmente me embriagando de sua obra, émaravilhosa, precisamos dar voz à sua poesia.
Parabéns pelo tópico!
beijo da Marisa Vieira
MEU QUERIDO POETA ALTAIR DE OLIVEIRA,ADOREI CONHECER AS POESIAS
29 de abril de 2010 às 20:17DE ANA MARIA DUTRA.
ENEBRIANTES E QUENTES POESIAS, ADOREI !
MUITO BOM O TOPICO!
BEIJO NO SEU CORAÇAO
Postar um comentário
Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.