sexta-feira, 9 de abril de 2010

“Caso sério” e o trágico amor que teima em (en) lutar


“Caso sério”, peça do ator, diretor e dramaturgo Cláudio Simões é uma peça do seu tempo, um pastiche da dramaturgia de casal tão pródiga no Brasil. Ela é intertextual e, para lê-la, é preciso conhecer outros textos. E outros sons. Estão lá como Vianinha, Leilah Assumpção, Maria Adelaide Amaral, Arnaldo Jabor, Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa e tantos outros.

É do seu tempo, também, porque tenciona revelar as fragmentações pelas quais a sociedade pós-moderna e, especificamente, o individuo passa nesses últimos 30 anos. Sobre Rodrigo e Cecília, as personagens dessa história, não cabem certezas ou centros de segurança, eles começam a experimentar a angústia existencial e viver uma profunda crise numa ruptura definitiva com a possibilidade de uma identidade essencial, coesa, fixa, imaculada, permanente.

“Caso sério” é uma história de amor entre dois amigos que nasce a partir das catástrofes amorosas que cada qual traz à sala de espera de um consultório de psicanálise. Nessa sala, parecem entender que num mundo em que as possibilidades românticas, sob medida para o líquido cenário da vida moderna, surgem e desaparecem numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, importante perceber como o homem contemporâneo, confirmando as palavras de Bauman, consegue extrair a experiência do fato e, mostrar, à luz da pós-modernidade que o amor pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante como a morte.

No livro do theco Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, a personagem Teresa não suportando mais a situação de infidelidade de Tomás, decide partir deixando-lhe um bilhete no qual revela não ser suficientemente forte para aceitar (suportar, sustentar) a leveza do seu (dele) amor.


Amar pesadamente (como Teresa) nos torna fracos, suscetíveis a tudo, frágeis, ficamos à mercê do outro, do que ele faz, do que ele diz, do que ele não faz, não diz. Sempre ele, sempre! Como Barthes, somos raptados, capturados, aprisionados pelo outro, pela sua imagem (a imagem do amor), ainda que sejamos nós (eu), o sujeito que ama, o raptor, o que partiu para a conquista, para a captura. Curiosa inversão: “é o objeto raptado que é o verdadeiro sujeito do rapto; o objeto da captura se torna o sujeito do amor; e o sujeito da conquista passa ao posto de objeto amado” (BARTHES: 1991, 163).

Ao amarmos de forma pesada, transformamos o outro num signo pesado, isto é, pleno (cheio, denso, transbordante) de significados. Qualquer atitude, fala ou gesto seu está prenhe de sentidos, e cabe àquele que ama interpretar ou decifrar. Transformamo-nos, então, em hermeneutas, filólogos, obstinados interpretes! E o pior: todos os signos que o outro emite são, por natureza, signos de incerteza, de ambigüidade, e até mesmo falsos. Por isso, aquele que ama pesadamente é um atormentado, não conhece a paz a não ser momentaneamente, quando acredita (quer dizer: se ilude) ter decifrado alguma coisa ou quando renuncia a toda interpretação (Barthes), aceitando tudo do outro como sendo verdadeiro.

“É curioso o que acontece comigo, te amar assim dessa maneira, desesperado - eu que sempre amei levemente!”. Assim poderia falar um apaixonado (com alguma leitura, pelo visto), reconhecendo em si, no seu amor, a inevitável mutação amorosa, a passagem do leve para o pesado.

Somos pesados quando queremos possuir, reter o outro a qualquer custo, quando somos “donatários de capitanias”, quando não partilhamos, não dividimos; somos leves quando, ao contrário, compartilhamos, dividimos, deixamos o outro voar, partir, fugir, seguir para onde. Seria impossível mesmo crer o amor sem essa dialética, essa tensão permanente entre o denso e o suave?

A partir desta perspectiva, podemos pensar essa tensão dialética, essa relação entre peso e leveza, como duas formas constitutivas de cartografia amorosa, duas maneiras de amar, dois modos de constituir “territórios amorosos”.

A primeira relação, pesada e possessiva, funciona como uma espécie de “máquina simbiótica”. É aquela relação que diz assim: “sem você, meu amor, eu sou ninguém”, “você é minha vida”. A nossa literatura musical, do brega à MPB mais elaborada esteticamente, expressa em demasia este tipo de relação. Vinícius de Moraes, por exemplo. Este tipo de relação constitui territórios amorosos cujas fronteiras são muito bem vigiadas pelo ciúme, guardião do amor, cujas fronteiras não podem ser ultrapassadas sem uma espécie de salvo-conduto do outro, salvo-conduto temporário, que o obriga a voltar novamente, pois “cada volta tua há de apagar o que esta tua ausência me causou”. Este amor nunca pode transitar livremente; há uma espécie de geopolítica amorosa que o limita: o arraigado familiarismo, a tentativa desesperada de constituir família, ou melhor, um tipo de território familiar: o da solidão a dois, a do “inferno entre quatro paredes”, pra usar uma expressão de Sartre. Este tipo de amor não é nem alado nem alante, pois não possui asas, tampouco é capaz de doá-las. Este tipo de amor leva inexoravelmente à morte, pois, aqui, quem ama mata.

A segunda relação, leve e transitiva, funciona como uma espécie de “máquina celibatária”. (Estes dois termos que eu utilizo: “máquinas simbióticas” e “máquinas celibatárias”, são de Félix Guattari e do Gilles Deleuze. Foram criados por eles para designar modos de constituição de territórios do desejo). É aquela relação que diz assim: “nada dura eternamente: o que amo já não amo mais”, “alguém quando parte é porque outro alguém vai chegar”. Este amor, ao contrário do outro, é extremamente livre, transita permanentemente, desterritorializa, é incapaz de constituir territórios amorosos; não quer, não deseja, não pode fazer isto. É o amor da aventura amorosa, sempre passageira. Amor-espaçonave: ora aqui, ora ali, ora alhures. Voa por todos os lugares, mas não se fixa em nenhum. Todos os lugares: nenhum lugar. Livre para voar, voar, mas incapaz de pousar com mais demora, pois, quando pousa, sua tendência é constituir, de novo, um território amoroso e simbiótico. Esta é a sua contradição: se continuar voando, voando, voando, acabará morrendo por exaustão, de cansaço. Se pousar e fixar território nos moldes simbióticos, morrerá do mesmo jeito, sufocado.

E agora? Se as nossas relações amorosas comportam estas duas cartografias, o amor, ao que parece, tende sempre para um irremediável fracasso, para a morte? Assistir a “Caso sério” foi assim, não que tenha gostado inteiramente da peça, não mesmo, mas saí dali assim, mais filósofo, pensando nesse tema, que é tão caro a rodo homem contemporâneo – e comum.


Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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