terça-feira, 6 de abril de 2010

SANDRA, ANTES E DEPOIS



por Carlos Bruni

O temporal acabado de cair fez descer a temperatura, coisa nem tão incomum assim em São Paulo num fim de dezembro, mas suficientemente incômoda para me fazer atravessar a rua até o bar defronte ao escritório, pensando num bom conhaque. Precisava de uma bebida que me compensasse da persistente chuvinha e depois de driblar pedestres apressados e auto-móveis imobilizados entrei, indo me sentar num lugar de onde podia observar através da grande janela a azáfama tragicômica daquelas pessoas na vã tentativa de fugir do ano se esvaindo.

A bebida pouco mexeu com meu estado de espírito, em nada parecido com o movi-mento do lado de fora do vidro ou mesmo ali dentro, onde risadas e conversas do tipo “tudo de bom no ano que vem” indicavam uma festa acontecendo, fazendo com que eu me esforças-se para ficar imune àquela aleivosia mascarada com rodadas infindáveis de chope e porções de fritas, atitude justificável, aliás, para alguém saído há menos de um ano de um casamento que até então se arrastava procurando por uma sobrevida.

Meus pensamentos foram interrompidos quando Sandra entrou no bar, quase sem ser notada em meio daquele bulício. Entre suas virtudes aparentes, incluía-se a de ser discreta em qualquer ambiente onde se apresentasse. Indo direto ao caixa pediu um maço de cigarros e enquanto aguardava pelo troco, correu os olhos ao redor parecendo explorar aquele terreno, contudo num visível cuidado de passar despercebida.

Nossos olhares se cruzaram e ela permitiu-se um leve sorriso, ao qual respondi com outro igual e levantando ligeiramente a taça de conhaque num cumprimento.

Enquanto Sandra guardava o troco em sua bolsa, fiquei a observá-la com um interesse indefinido. Na verdade, sua presença pouco chamava a atenção das pessoas além daquilo que lhe convinha, visto ser a secretária da presidência da empresa, levando-a também a vestir-se sempre de maneira sóbria mas elegante. Ali pelos quarenta, como eu, não obstante bonita e um certo charme, dificilmente passaria por uma femme fatale, daí não ser lá dentro motivo de comentários mais apimentados. Trabalhava um andar acima do meu, e nossos contatos eram marcados por assuntos profissionais; apenas ocasionalmente conversávamos sobre outras coisas, fosse no café dos funcionários no terceiro andar ou no elevador. Ao sair, entretanto, no lugar de seguir pelo caminho mais direto até a porta, enveredou por entre as mesas agora tomadas e parou perto de mim. Olhei-a surpreso e estupidamente calado. Foi ela quem falou primeiro:


— Parece que você está um tanto desanimado neste fim de ano.


Tratei de procurar alguma tranqüilidade e desfazer a impressão de desatenção:

— É verdade. Essas festas pouco me animam. — Sem conseguir raciocinar melhor, disse sem muita convicção: — Parei para um conhaque e passar o tempo. Pelo menos até essa chuvinha diminuir.

Sentindo-me idiota com essa conversa boba, percebi a necessidade de pelo menos dar mostras de educação:

— Não quer sentar-se?

Ela aceitou, não deixando de me surpreender. Até onde eu sabia, ninguém conseguira ou tentara algo induzindo-a a deslizes comprometedores. Talvez por isso, hesitei sobre o que fazer diante dessa situação incomum. Tratei então de oferecer-lhe um conhaque, aproveitando o pretexto do entardecer garoento .

Nova surpresa por aceitar. Chamei o garçom, pedi-lhe a bebida e uma outra para mim.

Abrindo a bolsa, ela pegou do maço de cigarros, abriu-o e colocou um nos lábios. Outra vez fiquei no papel de bobo, pois não tinha como acendê-lo. Sandra aliviou meu embaraço perguntando com delicadeza se me incomodaria por fumar, mas ao mesmo tempo pegando seu isqueiro.

Depois de uma tragada com visível prazer, jogou a cabeça para trás soprando a fumaça, fazendo-a subir em meio a tênue luz do ambiente já perdendo a claridade externa. As bebidas chegaram, ela pegou a sua e provou-a de olhos fechados como se estivesse experimentando do néctar dos deuses. No momento seguinte, voltou ao mundo terreno:

— Que estranha maneira de fechar o ano. A não ser que eu me engane, você está realmente desanimado.

Concordei, balançando a cabeça:

— Se não a conhecesse como secretária, diria que é psicóloga. Ou vidente. Matou a charada só de olhar para mim.

— Nem uma coisa, nem outra, sorriu levemente. Uma dedução, apenas.

— Você está certa, disse-lhe antes de tomar um pouco da bebida. — Tenho pouca vontade de festejar seja lá o que for. O ano está indo embora, mas o que irá mudar além de alguns dígitos no calendário? Dê uma olhada ao nosso redor, aqui dentro ou lá fora: na semana que vem, e na outra, e na outra, tudo continuará do mesmo jeito. Inclusive nós mesmos, concluí fazendo uma apologia do desânimo.

Outra vez o sorriso suave, mostrando-se compreensiva:

— Por experiência própria, devo concordar com você. Ainda assim, não há ninguém com quem repartir isso? Quero dizer, esse estado de espírito sendo dividido com alguém...

Tive de devolver-lhe o sorriso. Mesmo eu sendo pouco cavalheiro, Sandra conseguia me mostrar como as pessoas são surpreendentes. Pelo que conhecia dela, de ver ou ouvir falar, nunca esperaria uma conversa tomando esse rumo, até porque minha vida não era um segredo guardado a sete chaves. Por outro lado, sabia ser precipitado tirar qualquer ilação daquela pergunta jogada de forma quase displicente no ar, pois salvo engano maior, percebia-lhe a necessidade de conversar com alguém e, como eu, ainda tateava à procura das palavras certas. Assim pensando, conclui mal não haver em falar-lhe sobre meu visível desânimo, contar coisas de uma vida dissolvida num casamento medíocre, acabando por me levar até alguma mesa de bar de quando em vez.

Com os braços cruzados sobre a mesa permaneceu ouvindo e, eu diria, com interesse. Depois, pegou novamente da taça e após molhar os lábios com o líquido, ficou a olhá-lo. Seus olhos castanhos pareciam refletir a cor da bebida.

— Eu também tenho pouco para comemorar, comentou sem poder esconder alguma tristeza na voz. Você não estava de todo errado quando me julgou psicóloga. Contra a vonta-de de meu pai, vim para São Paulo tentar a USP e por quase dois anos fiz das tripas coração em trabalhinhos aqui e ali para manter meus sonhos. No fim, desisti e acabei indo parar nessa empresa. Felizmente, consegui me dar bem, mas... o mundo perdeu uma doutora. Como compensação, completou sorrindo agora de um jeito irônico, ganhou uma eficientíssima se-cretária executiva.

Devagar, tomou outro tantinho do conhaque e permaneceu balançando o líquido em seu recipiente. Fiquei olhando com um misto de curiosidade e carinho, aquela mulher ali à minha frente, em muito parecida comigo. Duas pessoas quebrando a cara no mundo e espe-rando acontecer algo para aquecê-las da garoa das ruas, daí ficarmos ainda algum tempo conversando sobre nossas vidas, experiências, como se fôssemos velhos amigos. Tínhamos várias coisas em comum, nos deixando à vontade e levar-me num ímpeto, talvez incentivado pelo conhaque, a perguntar-lhe:

— O que diria de passar a noite de Ano Novo comigo?

Tendo voltado a girar a taça no ar, Sandra parou esse movimento aí mesmo. Seus olhos adquiriram tal brilho, como se o conhaque estivesse sendo flambado. Pareceu enrubescer e não me surpreenderia se o jogasse em mim, ou simplesmente se levantasse e fosse embora. No entanto, era uma mulher cheia de surpresas e eu descobria isso aos poucos. Colocou devagar o recipiente sobre a mesa e fitou-me nos olhos de forma tão intensa, desarmando-me a ponto de não conseguir antever sua reação a partir daquela pergunta.

— Você disse que quer passar a noite comigo?

— Eu disse que quero passar a noite de Ano Novo com você.

Nesse momento, eu a senti hesitar diante desse jogo de palavras, o que me animou a levar a proposta adiante.

— Certamente, já notou sermos duas pessoas sem alguém com quem repartirmos nos-sas tristezas, mão tocando mão... Enfim, nenhum ombro a servir de apoio. O que proponho é ficarmos juntos na passagem do ano, estourarmos um champanhe à meia-noite e depois continuarmos nossas vidas.

— Tudo platonicamente?

— Tudo platonicamente.

Ela cruzou os braços sobre a mesa e ficou a me olhar com uma expressão que não se definia entre a mera surpresa, indignação ou se estava divertindo-se com aquilo tudo. Não demorou, contudo, a chegar a uma conclusão:

— Para quem não quer festejar coisa alguma, você está sendo bastante contraditório, mas... a idéia me agrada. Em seguida riu baixinho, comentando: — Devo estar maluca. Meu pai teria um enfarte se ouvisse isso.

Sorri, sem nada dizer. Ela prosseguiu:

— Eu tinha idade e juízo suficientes para sair de casa; penso ter também agora para aceitar sua proposta. Calou-se por instantes e depois completou:

— Muito bem. Nesse caso, gostaria que fosse em meu apartamento, se não tiver nada contra. Respirou fundo, como querendo reforçar sua decisão: — Talvez eu esteja mesmo precisando esquecer mais um ano se acabando e comemorar a chegada do Ano Novo como as pessoas... hum... normais.

Tomei outro gole maior do conhaque procurando reafirmar meu autocontrole, por ins-tantes parecendo balançar:

— Não tenho nada contra. Nem mesmo de nos portarmos como pessoas normais. E aproveitei para emendar: — Eu levo o champanhe.

Ela tomou o restante da bebida antes de concluir:

— Eu o esperarei às nove. Farei uma comidinha gostosa, conversaremos ou, se preferir, analisaremos nossas frustrações, e esperaremos pelo Ano Novo.

Concordando, tomei o restante do conhaque e enquanto esperava pela conta peguei-lhe o endereço. Despedimo-nos com um beijo no rosto e a acompanhei até a porta. Fiquei vendo-a atravessar a rua em direção ao estacionamento e pensando no que estava fazendo a ela. Ou seria o contrário?

Iria descobrir logo, pois faltavam apenas duas noites para se fechar o ano. E, o óbvio, começar outro. Só não imaginava como seria.

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Pontualidade não está entre minhas parcas virtudes, pois só fui tocar a campainha do apartamento de Sandra depois das nove e meia. Ao contrário da noite anterior, esta recuperara o calor habitual de qualquer fim de dezembro e havia o prenúncio de chuvas.

Ela abriu a porta junto com o sorriso de quem nem de longe ameaçava uma censura pelo meu atraso. Vestia um conjunto de saia e blusa, apropriadamente brancas, diferindo em muito dos trajes formais do escritório e deixando-a bem mais jovial, diferente daquela secretá-ria circunspeta.

— Flores! — exclamou surpresa. — Pensava não existirem mais homens que ainda fizessem dessas coisas, disse enquanto apanhava o maço de rosas vermelhas que eu lhe oferecia:

— Meio convencional, penso. Mas achei que iria gostar.

Após guardar o champanhe na geladeira, tratou de ajeitar as rosas no vaso sobre um móvel, enquanto eu examinava o ambiente. Sala razoavelmente grande; um confortável sofá, uma estante com livros diversos e um inesperado piano de armário.

— Não sabia que gostava de música, comentei embora soubesse também não conhecer quase nada sobre ela.

— Ajuda a passar o tempo e a esquecer algumas coisas, disse-me num tom enigmático ao qual não dei muita importância. — Fique à vontade; o jantar está quase pronto.

Em pouco tempo estávamos à mesa saboreando o jantar sem maiores requintes, mas delicioso, lembrando-me um ar caseiro num passado perdido e do qual eu procurava escapar. Mesmo pensando em caminhar noutra direção, não tinha a certeza do que realmente queria. “Tudo platonicamente”, tentei acreditar. “Tudo platonicamente”, repeti a mim mesmo.

Sandra colocava o garfo na boca com delicadeza e, a cada movimento para apanhar algo sobre a mesa, a blusa, que normalmente se permitiria dois botões abertos, tinha um terceiro, fazendo nesses movimentos deixar aparecer ligeiramente a junção dos seios roliços e instigantes. Entretanto, fazia isso com tal naturalidade e não me deixava pensar serem gestos premeditados. Não conseguia vê-la ardilosa.

Findo o jantar, ela pôs à mesa a fruteira de onde retirou um cacho de uvas. Enquanto conversávamos, ela pegava os grãos e um a um levava-os à boca, distraidamente, pousando-os com delicadeza nos lábios carnudos e deles retirando sua polpa de forma lenta e decididamen-te sensual. Ainda assim, os belos olhos castanhos nada deixavam transparecer e se estivesse fazendo uma espécie de jogo sabia estar guardando seus trunfos para a hora certa.

Na verdade, estaria mesmo ou seria eu que estava querendo me convencer disso?

Mais tarde e já retirada a mesa fui sentar-me no sofá. Sandra dirigiu-se ao aparador e em uma bandeja de prata onde havia uma garrafa de licor e alguns cálices, colocou da bebida em dois deles e veio sentar-se perto de mim. Ofereceu-me a minha, fizemos um discreto brinde e provamos de seu gosto. Como se isso fosse hábito arraigado nela, o fez de olhos fechados parecendo aproveitar de toda sua essência.

Eu a observava fascinado. Seus gestos lembravam um ritual ao qual ela se entregava de corpo e alma. Sentado à curta distância, parecia-me sentir o mesmo êxtase que a dominava. O corte na lateral da saia, deixava à mostra pouco mais que palmo e meio da coxa cruzada sobre a outra perna e novamente ocorreu-me a idéia de um jogo, no qual os contendores procuravam ter domínio mútuo total. Como por instinto, eu tentava fechar minhas defesas. Só não sabia contra o quê.

A conversa continuou fluindo, descompromissada. Voltamos novamente a nossos passados, levados à baila em conta-gotas como se quiséssemos nos poupar. Porém, era evidente o assunto servir apenas de pretexto para que cada qual estudasse o outro, planejando o próximo lance. Era esta a impressão reinante e eu com a nítida sensação de estar me deixando tomar por uma paranóia inexplicável, se é que paranóicos sabem que o são.

Sandra levantou-se, pegou meu cálice vazio e colocou-o juntamente com o seu na bandeja, indo em seguida até o piano e sentando-se na banqueta. Como se fosse uma criança, a fez dar duas voltas, o que em outras circunstâncias, não nesta noite, talvez me surpreendes-se. Sorrindo, olhou para mim parecendo pedir desculpas por uma travessura. Eu não só a desculpava, como achava tudo aquilo delicioso. Invadia-me uma sensação agradável em vê-la assim descontraída, mas não me escapava o detalhe de ela ter um perfeito controle de seu savoir-faire.

Voltando-se para o piano, levantou a tampa do teclado. Olhou-o como um duelista escolhendo suas armas e dedilhou algumas notas, de imediato fazendo-me lembrar a Sonata Kreutzer.

Embora suas atitudes sugerissem descontração, imaginava-a uma habilíssima enxa-drista, astuciosa no movimento de suas peças mesmo eu entendendo naquela obra caber ao violino propor o desafio.

Estava ali o nó da questão. Nessa aparente inversão de papeis, cabia-me aceitar o repto e enfrentá-la em seu terreno, aceitando os termos. Tornava-se impensável recuar, pois cada movimento seu sempre se antecipava aos meus. Em breves segundos, tentei recompor os acontecimentos. O que, então, deveria esperar desde aquela noite no bar? Numa fração de tempo me vi possuído de inominável ridículo. Como podia ter pensado que nosso encontro se resumiria a um jantar, um espocar da garrafa de champanhe e um até breve? Na verdade, ela era quase uma desconhecida quando a convidei para o conhaque, mas agora ficava claro ter sido disparado um processo emocional, cujas conseqüências eu ainda não conseguia medir.

O tempo tornou-se meu aliado. Mostrei-lhe o relógio dizendo faltar pouco para a meia-noite. Ela sorriu e foi buscar o champanhe e duas taças. Fomos até o terraço tendo pela frente a bela vista da região destacada pela beleza dos fogos de artifício explodindo em mil cores, indiferentes à chuva contrapondo-se àquele colorido. Fiz saltar a rolha que voou para o asfalto molhado, lá embaixo.

Servimo-nos da bebida, erguendo as taças num brinde cheio de presságios.

— Feliz Ano Novo, disse-lhe. Ato contínuo, depositei um curto e suave beijo em seus lábios.

Seu sorriso não revelou surpresa e complementando o reflexo do colorido da noite nos olhos, abriu caminho a palavras ditas com doçura:

— O mesmo para você.

Alguém impensadamente disparou um artefato lá da rua e, subindo por entre os prédios, veio estourar perto da sacada onde nos encontrávamos. Sandra deu um gritinho de susto agarrando-se instintivamente em meu braço, assim permaneceu enquanto assistíamos, calados, ao espetáculo de cores e sons. Agradava-me sentir o toque da mão cálida, ainda trêmula, e poderia jurar estar mesmo sentindo o pulsar de seu sangue no ritmo das explosões.

A barulheira foi arrefecendo e voltamos para a sala. Ela serviu mais um pouco da bebida e inesperadamente disse:

— Não vá.

Olhei-a, calado a princípio, pois tal como no jogo, surpreendia-me colocando meu rei em xeque e levando-me a procurar a defesa:

— Estamos fugindo ao nosso trato, disse-lhe como numa defesa mal planejada.

Em momento algum ela sentiu-se acuada e sua proposta surpreendeu-me:

— Ficaria mais tranqüila se dormisse aqui. Seja sensato: é noite de Ano Novo. Chove. Muitas pessoas beberão além da conta e sairão dirigindo pelas ruas pondo em risco suas vidas e a de outros. Há um quarto de hóspedes onde você poderá ficar à vontade. E comple-tou com pinceladas de malícia: — A menos que tenha algo contra.

Sorri, sem dizer nada, mas nesse momento a proposta se mostrava irrecusável. Não me passava pela cabeça, absolutamente, questionar o trato desfeito.

Depois de ajudá-la a pôr alguma ordem na sala e na cozinha, ainda conversamos um pouco mais, tudo com aquela naturalidade típica de uma rotina de anos; um perfeito clima platônico.

Ela ajeitou com presteza o quarto de hóspedes, deixando que me instalasse realmente como hóspede. Fechei a porta e sentei-me na beira da cama, estudando o pequeno ambiente: um armário, uma mesinha de cabeceira, uma escrivaninha com um microcomputador (que segredos haveria em sua memória?), um pequeno televisor e poucas coisas mais.

Tirei a roupa e deitei-me sobre o lençol macio, recendendo a novo. Deixei apenas a luz do abajur iluminando o ambiente e ali fiquei, estático, mãos cruzadas sob a nuca, pensando no inusitado da situação, quase surreal. Por mais que quisesse pensar o contrário, via naquilo tudo mais outro lance do jogo e, a exemplo de qualquer jogo, deveria haver a defesa ou o contra-ataque. Eu simplesmente não sabia qual seria a jogada seguinte.

Quase duas da manhã apaguei a luz mas, conciliar o sono, quem conseguiria? Percebi que Sandra fora para seu quarto, ao lado. Na noite agora silenciosa, eu podia imaginar cada movimento; uma porta de armário se abrindo, sapatos sendo jogados a um canto, um cabide caindo ao chão. Visualizei-a despindo-se: a blusa sendo largada sobre uma cadeira, a saia colocada num cabide e dependurada no móvel. Fechei os olhos e tentei vê-la em suas roupas íntimas. Brancas, provavelmente. Depois, em gestos lentos desabotoando o sutiã, jogando-o sobre a cama e, finalmente, a derradeira peça de roupa descartada. Pensei em sua nudez, ela sempre tão recatada e jamais dando ensejo a especulações e desejos mal resolvidos.

A mesma silenciosa noite me deixou entender que ela se deitava. Podia perceber o amassar do colchão e um ligeiro rangido da madeira da cama logo aquietada.

Eu estava sem sono e poderia apostar que do outro lado da parede o mesmo ocorria. O mostrador luminoso do relógio revelou-me o tempo terrivelmente lento: duas e quarenta. Do quarto contíguo vinha o ruído abafado do corpo se revirando, insone, na cama delatora. Em que estaria pensando? Voltou-me ao pensamento a idéia da Sonata e, era forçoso reconhecer, desagradou-me imaginar que se ela a executava bem, é porque haveria — ou teria havido — alguém a fazer-lhe contraponto.

Três e cinco, ouvi-a abrindo a porta do quarto. Alguns segundos de silêncio e depois o clique-clique do isqueiro. Notei seu caminhar, mesmo descalça, pela sala. Depois, a porta do terraço aberta com cuidado e logo fechada, talvez por causa do frio vindo com a madrugada úmida exigindo calor para todos os corpos.

Eu estava tenso. Imaginei-me levantando, um pretexto qualquer, e encontrando-a sentada no sofá, e a surpresa descaradamente fingida de parte a parte. E depois, tudo acontecendo naturalmente.

A porta de seu quarto fechou-se novamente, com o cuidado de tentar não deixar isso transparecer. Fiquei olhando através do escuro, como se elaborasse um lance para jogar naquele negrume, na incerteza se deveria ser uma tática defensiva ou de ataque. Uma indecisão que me atormentava.

Acordei com a claridade do sol querendo invadir o ambiente. Num primeiro momento, fiquei sem entender nada até me localizar no tempo e espaço. Espreguicei-me e enquanto esfregava os olhos, tudo foi repassado por minha cabeça vindo feito um vagalhão de encontro à minha memória.

Vesti-me e saí para a sala. Ao abrir a porta, o cheiro forte de café despertou todos os meus sentidos. Encontrei Sandra na cozinha; calça de moleton e uma camiseta, fresca e linda como eu jamais a vira em todos esses anos, tão perto de mim e ao mesmo tempo tão distante.

— Dormiu bem? perguntou.

— Feito um anjo, brinquei.

— Como eu, sorriu numa deliciosa mentira.

Sentamo-nos para o café, misturado com frases soltas na mesa entre biscoitos e croissants e, como se houvesse um acordo tácito, sem menções à noite anterior. Servi-me da be-bida quente, adicionei leite e açúcar e enquanto brincava com a colherinha, fiquei observando-a passar manteiga no pão tostado que a fez derreter-se. Sandra levou a fatia à boca e mordeu-a com delicadeza para, em seguida, apertar os lábios como querendo tirar deles o excesso do creme.

Nesse instante, mergulhei fundo naqueles olhos cor de mel, com a certeza de o xeque-mate ter sido dado e de que ela sabia que o faria, desde aquela noite no bar quando decidiu aceitar o desafio e mover suas pedras, para deixar num outro tempo duas obscuras histórias de vida.




Carlos Bruni é nosso convidado dessa semana. Esse conto foi vencedor em primeiro lugar no conceituado Concurso Literário da Secretaria da Cultura do Paraná, em 2003.

Administrador de empresas aposentado, resolveu tirar das gavetas seus escritos feitos nas suas (poucas) horas de lazer e dar-lhes vida, agora com mais calma. Como resultado, conquistou vários prêmios em concursos literários, no Brasil e em Portugal.

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