quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Sonho e memória


Memória e sonho. Dois elementos da mesma substância em tempos diferentes. A memória pertencente ao passado, enquanto o sonho, matéria prima do futuro.

Falar de memória, afetiva e mágica, é o mesmo que tratar de uma matéria sensível, tênue, pertencente ao reino dos sentimentos.

Pierre Ansart (2004) afirmou que os sentimentos são mobilizadores de práticas sociais, relações de poder e da própria história. Ver como exemplo o que aconteceu com o nazismo sendo que o próprio ódio, canalizado em um inimigo comum, mobilizou um regime, uma nação.



Porém, os sentimentos tem uma capacidade de não unicidade. Mesmo em meio a tanto caos, onde o ódio se via materializado nos campos de concentração havia sentimentos bons que vingaram. A ficção tem explorado muito bem isso. No filme O Menino do Pijama Listrado (EUA/ Inglaterra, 2008, dir. Marc Herman) se vê a amizade nascer entre duas crianças que o regime havia separado, uma criança judia, que estava no momento confinada nos campos de concentração e uma criança alemã, filha do chefe do campo. Solidariedade, amor, confiança são sentimentos que norteiam toda a relação.
 
Nas pinturas do Muro de Berlim, há muito de sentimentos contraditórios e de uma memória volatizada em tintas e grafite. Em uma delas, vemos dois muros que espremem pessoas como sardinha. Opressão, opressão histórica que durou mais de duas décadas (1961-1989) em um país que passa por duas guerras e o pós-guerra marcado pela ocupação do aliados. Enquanto a Alemanha Ocidental vivia o milagre econômico, seu lado oriental tinha nos muros sua expressão de falta de liberdade de movimento, de sonho, de memória (?).
 
Adélia Prado em seu poema O Vestido junta os dois conceitos em sua arte poética. Naquele "vestido de amante" ficou seu cheiro, seu sonho, seu corpo ido, e é só usá-lo que a memória se torna viva e todos os acontecimentos ligados a ele. E tal é a força dessa memória viva, que guarda sonhos de outrora, que a narradora diz que ao invés de ela guardar o vestido, ele o guarda. "De tempo e traça, meu vestido me guarda".

O Vestido


No armário do meu quarto escondo
de tempo e traça meu vestido estampado de fundo preto
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas
Eu o quis com paixão e o vestido como um rito, meu vestido de amante.


Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.


Já Milton Nascimento, Lo Borges e Marcio Borges na música O Clube da Esquina trazem o tempo do sonho futuro com a noção de passado na antológica frase marcada por uma rítmica que tange impulsos de eternidade. "Os sonhos não envelhecem"...
 


Com essa frase, pensemos hoje nessas duas substâncias, que entre outras particularidades, nos trazem o fino âmbito de nos lembrar humanos. O sonho e a memória.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ana Maria Dietrich, doutora em História Social, é coordenadora da Contemporartes - Revista de Difusão Cultural, junto a Vinicius Elfo Rennó.
 
Para saber mais:
ANSART, Pierre. História e Memória dos Ressentimentos. Memória e (Res)sentimento - indagações sobre uma questão sensível (org. Stella Bresciani, Márcia Naxara). Campinas: Editora Unicamp, 2004.
 
DIETRICH, Ana Maria. Cicatrizes de Concreto. Revista História Viva. 
 
 
 

1 comentários:

Ana Paula Nunes disse...

"Os sonhos não envelhecem". Adoro essa frase.

4 de setembro de 2010 às 20:49

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