sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Amarelo da manga também é o amarelo do pus ... Amarelo manga, o filme



Cláudio Assis
Vamos esperar ansiosos pelo novo filme de Cláudio Assis previsto para estrear nos cinemas em maio de 2011, Febre do Rato.  Enquanto  isso podemos ver ou rever seus cinco curtas: Henrique ( 1987), Soneto do Desmantelo Blue (1993),  Viva o Cinema (1996 ), Texas Hotel (1999), O Brasil em Curtas 06 – Curtas Pernambucanos (1999), ou seus dois longas: Amarelo Manga (2003) e Baixio das Bestas ( 2007).

Baixio das Bestas
Esse pernambucano de Caruaru dirigiu seus curtas e longas com o mesmo estilo e destreza,  encarnando o lado indigesto, miserável, decadente e literalmente podre da humanidade. Assistir aos filmes de Assis é vivenciar algo único e forte nas seqüências bem montadas e fotografias coloridas com enquadramentos corajosos e chocantes. As histórias são amarradas por personagens que redesenham fatos do cotidiano de pessoas que vivem dentro do mesmo universo e compartilham experiências comuns.

O primeiro filme de Assis que assisti foi Amarelo Manga e logo percebi que o diretor era uma mistura de Fellini e Almodóvar no quesito excentricidade  das personagens (travestis, bichas, putas, necrófilos, padre descrente e por aí afora). Personagens caricatas não caracterizam  um mau em sí, quando se opta por esse meio de representação é preciso sensibilidade do diretor para que essas personagens "estereotipadas" não acabem com a surpresa do filme; ou,  talvez pior,  que deixam tudo preso e previsível nas vestimentas e trejeitos das personagens. O diretor deve ir além disso para que possa mostrar ao público mais do que o óbvio. Nesse filme  em especial, a voz over ocupa um papel fundamental pois serve para nos mostrar os dilemas que ocorrem dentro da mente de cada personagem,  trazendo-nos surpresas  ao nos aprofundarmos em seus confitos e temores. 
Canibal (Chico Diaz)
Dunga (Matheus Nachtergaele) 
Levando em consideração essa temática das personagens, resolvi falar um pouco de  Amarelo Manga, pois acredito ser o filme mais interessante para analisá-las. O filme já começa no nome: Amarelo Manga, fruta tropical, gostosa, suculenta e amarela que lembra: Amarelo do sol, do desespero de Van Gogh, do céu ensolarado, mas que também remete as feridas purulentas que decorre das inflamações, da hepatite dos dentes estragados, da urina.... As cenas são coloridas com esse amarelo que se completa com o vermelho do sangue, da carne das entranhas que vazam de bois mortos num abatedouro no qual Canibal (Chico Diaz) trabalha. É possível exalar o cheiro de sangue pela tela.
Canibal é machista e está sempre coberto de sangue dos animais que abate. Ele é a paixão de Dunga (Matheus Nachtergaele), cozinheiro do Hotel, uma espelunca fedorenta onde moram várias outras personagens  como, o Issac (Jonas Bloch ), que gosta de atirar em mortos e Aurora ( Conceição Camaroti), ex prostituta velha e asmática.
 Lígia  (Leone Cavalli) amarra as histórias habitando um bar por onde as personagens passam para beber e conversar. Muito interessante pois o filme começa com Lígia dormindo na cama de seu quarto que fica no fundo do bar. Uma grua a mostra acordando, levanta-se,  se cobre apenas com um vestido, pinta a boca e vai abrir o bar.  Assis utiliza as falas das personagens para dar densidade e profundidade a elas, vejam:

Lígia  (Leone Cavalli)

Lígia no momento que abre o bar:
Às vezes eu fico imaginando do jeito que as coisas acontecem. Primeiro vem o dia, tudo acontece naquele dia até chegar a noite que é a melhor parte, mas logo depois vem o dia outra vez e vai.... e vai.... e vai..... sem parar.

Mikhail Bakhtin valorizava em seus estudos realizados na obra de Dostoievski, a ação discursiva das personagens, em Amarelo Manga é visível o trabalho realizado para compor as falas -  dialógica.  Noutro momento, vemos  Dunga  varrendo a velha pensão, de shortinho curto e cantando uma música que revela sua personalidade:

Mangó de mim, amarelou não vai ficar de graça, dentro dessa caixa, um corpo indigente, corpo que não fala, corpo que não sente...

No bar onde Lígia trabalha, um cliente metido a intelectual  fala em tom jocoso:

O prazer do brasileiro médio é ser enganado.

E para terminar, quero colocar a fala do Padre que tem cachorros como fiés e sua igreja está fechada por falta de pessoas. O vídeo abaixo nos mostrará outro momento em que o Padre argumenta em voz over suas dores. Shopenhauer do agreste.

Ninguém é inocente
Há muito tempo se perdeu a esperança nos homens. O castigo urge e grita aos 7 cantos. Os humanistas de beira de púlpito se apiedam de suas próprias almas pois é justamente no orgulho da bondade que reside o maior de todos os pecados.
O homem morre
O mundo se extingue
E as chamas se consomem mas a soberba acompanha o vazio..... 

Claudio Assis a La Hitchcock aparece em cena e diz à  Kika ( a crente):  Pudor é a forma mais inteligente da perdição.....

Assistam aos filmes de Assis em DVD enquanto esperamos o inédito e provavemente instigante Febre do Rato, previsto para em maio de 2011

Assitam ao trecho do filme Amarelo Manga e ouçam o discurso da personagem Padre


Bom filme!



Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.

2 comentários:

Unknown disse...

Muito, muito bom !! precisamos dialogar, discutir, dar valor ao cinema Nacional !! :-)

12 de novembro de 2010 às 13:44
Leandro Carvalho disse...

Sensacional a montagem das personagens! Grostescas, assim como a vida é!

12 de novembro de 2010 às 21:48

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