terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O VERBO DO REI


Outro dia ouvi uma avó perguntar ao neto: “Você está ficando com alguém?”. Fiquei arrepiada. Minha avó nunca faria tal pergunta e eu jamais ousaria responder como o neto: “Não vó, tô só pegando umas por aí”.Os tempos mudaram, todos sabemos. Os verbos mudaram também com o tempo e se não tomarmos cuidado não conseguiremos  mais nos comunicar com a nova geração. Já é impossível trocar correspondência com eles. As vogais enfraquecidas desistiram e pediram asilo em livros antigos, mas terão que mudar se a guerra dos e-readers realmente for deflagrada. Hoje virou “hj” e cadê virou “kd”, que pode ser “cada” ou coisas muito piores. Na minha época, as pessoas namoravam, noivavam e se casavam. A moça era noiva: verbo ser, já que desistências eram raras. Hoje, os jovens não são mais nada, apenas ficam ou pegam. Pessoas não dizem mais “somos casados”. Com a alta taxa de divórcio é mais seguro se apresentar como “estou casado com fulana ou fulano, no momento”. Quem sabe como vai terminar a noite? Vai que ele – ou ela – decida “pegar” alguém... Tenho amigos que passaram por vários casamentos em suas vidas e ainda estão na faixa dos cinquenta anos... Presente de casamento era coisa séria, importante. A partir do terceiro casamento, quem arrisca investir em um presente para a vida toda? Culpa de quem? Tudo culpa da modernidade e da globalização. Lembro-me que quando era jovem um engenheiro se apresentava assim: “Sou engenheiro mecânico da Ford”.


O verbo ser passava segurança, firmeza, continuidade, era quase eterno. Sim, porque quem entrava em multinacional como aprendiz de ferramentaria, por exemplo, sabia onde bateria o cartão até a aposentadoria. Hoje, temos leitores ópticos, scanners, leitores de íris, mesmo havendo o número de funcionários reduzido drasticamente pela automatização das linhas de produção. Os departamentos eram complexos com muitas vagas. Não havia terceirização de serviços como hoje. Contratos que podem ser desfeitos num estalar de dedos, quero dizer, num clicar da tecla “enter” do computador. Não existia a denominação “empregado inseguro”,  a pessoa estava empregada ou desempregada. Conheço engenheiros que demitidos tiveram que mudar radicalmente de campo de atuação. Administradores que aceitaram salários quatro vezes menores para voltar ao mercado depois de três anos sem trabalhar. O verbo ter também se revoltou.

Pensamos que temos alguma coisa, mas ele não existe mais. Mudou-se para outro hemisférios.Pois aqui no Brasil, não podemos dizer que temos um carro, sendo que o ladrão pode levá-lo no próximo farol. Usamos um carro. Não temos uma casa, pois se perdemos o emprego, a casa se transformará em tijolos comestíveis, caso o banco-sócio não a tire de nós.
 O  verbo TER sempre foi o bobo da corte. Mágico, nos faz acreditar em ilusões. Quem manda nessa terrena monarquia é o Chefe do Parlamento, o verbo ESTAR e seus assessores Ficar, Pegar e Usar. O Rei SER precisa ser resgatado, antes que sobrem apenas súditos desalmados.


Simone Pedersen escreve para o Bar Contemporartes na última terça-feira de cada mês. Autora de diversos livros infantis, foi premiada em inúmeros concursos literários e publicou dois livros para o público adulto: Fragmentos & Estilhaços com prosa e verso e Colcha de retalhos com poemas.



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