sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Dzi Croquettes

A instabilidade como imperativo, o hibridismo como riqueza

Esse texto nasce de duas fortes motivações. A primeira foi o impacto que me causou ter assistido ao filme-documentário Dzi Croquettes (2009), dos diretores Tatiana Issa e Raphael Alvarez; a segunda, a revolta de uma amiga e atriz, Julia Marini que disse ter sido lesada todo esse tempo (ao se referir ao anonimato da história dos Croquettes nos currículos das escolas e faculdades de teatro).

O fato é que a história do Dzi Croquettes só começou a ser contada. Muito ainda precisa ser dito. O único livro que existe sobre o grupo, o “Além da palavra: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes”, de Rosemary Lobert, é resultado de suas pesquisas no Mestrado em Antropologia, nos longínquos anos 70. Mais nada foi produzido, uma triste lacuna do teatro brasileiro.

Eu cá, comecei a minha parte. Semana passada num Curso de Extensão oferecido pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) intitulado “Introdução à Teoria e Política queer”. Nesse Curso, cujo título repito nesta coluna, procurei mostrar, ainda preliminarmente, o poder de transformação social do teatro.

Que além de ser um grupo de estética arrojada, de rompimentos e mudanças radicais, foram responsáveis por questionar um padrão hegemônico de masculinidade e sexualidade. Os Dzi foram pós-estruturalistas quando ainda desenhávamos os pilares teóricos dessa corrente. Para eles o gênero era mutável, múltiplo, e não apenas o masculino e o feminino. Eles implodiram a constituição da masculinidade quando foram mulheres e bichas em corpos marcados por pêlos. 13 homens que ajudaram a dilatar as normas, a flexibilizar os “corpos dóceis” que, em plena ditadura militar, eram mais do que vigiados e punidos.

Parafraseando as palavras de Bauman, em Vida líquida, o mundo contemporâneo está infestado de emoções fluídas, que transformam a vida numa experiência rápida e sem profundidade. As alianças são transitórias e as verdades mudam aceleradamente. Tudo é descartável, substituído e, logo depois, substituído de novo. Porém diante de tal colapso e certa descrença há também uma constante “destruição criativa”. Num mundo disforme, com identidades frouxas, vivem melhor aqueles que “se consideram em casa em muitos lugares, mas em nenhum deles em particular”. Os Dzi foram assim.

Contaminaram uma geração inteira com seu desbunde e com sua anarquia. Virou estado de espírito, modo de viver, influenciou a linguagem e o comportamento, quebrou paradigmas e foi queer quando ainda não sabíamos a dimensão política do termo. O importante para um Dzi, não era saber quem você é, mas quem você deixou de ser – e rapidamente deixar de ser novamente. A existência para eles se transformava numa experiência nômade.

Só então o sistema entendeu que a nudez daqueles corpos ia além do cômico, do farsesco, do grotesco, da “pinta”. Com a “força do macho e a graça da fêmea” enfrentavam as privações e tentavam explicar que “a vida é um cabaré”, como diz o “pai” da família Dzi Croquettes, o bailarino Lennie Dale, em trecho do filme. Em suma, uma política queer, que talvez pensasse: Estou constantemente em movimento, quando querem me classificar numa categoria, já me transformei, já estou noutra parte.

Essa
concepção desconstrói uma visão essencialista observada na sociedade moderna, na qual as identidades eram consideradas homogêneas, adotando-se uma visão mais adequada à modernidade tardia, em que se fala em flexibilidade, pluralidade, fluxo, heterogeneidade, atravessamentos, fragmentos, contradições, inacabamentos.

E o que está inacabado está sujeito, portanto, a renegociações, das quaispoderiam emergir novas identidades sociais, que fugiriam aos padrões perpetuados na cultura, como o modelo da masculinidade hegemônica, por exemplo. Afinal, se a masculinidade se ensina e se constrói, não há dúvida de que ela pode mudar.

Mais que à estética teatral, a trajetória dos 13 homens ensandecidos é vital à cultura brasileira, pois foram eles quem apontaram outros itinerários para nossos corpos e desejos, cultivaram outras subjetivações e deram mais delicadeza aos anos de chumbo.


Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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