sexta-feira, 29 de abril de 2011

Perdas e ganhos em SHORTBUS


Nesse pequeno texto gostaria de registrar alguns pontos que vem tomando meu tempo nos últimos tempos, vou falar sobre o corpo e suas relação intrínseca com a cidade, tema que venho que colocando tanto no horizonte das práticas políticas como na esfera da reflexão teórico-crítica.


Além de serem apresentados em inúmeros debates, encontros, conversas, leituras, atividades e lutas, dos quais pude participar – ou presenciá-los apenas –, tais pontos são reflexões mediadas pela minha própria experiência pessoal como homem contemporâneo que tem atravessado algumas fronteiras sociais e simbólicas, entre a vivência cotidiana em nossa sociedade machista e sexista e minha formação acadêmica em Artes.

O corpo central da experiência, que dá margem à costura dos pontos apresentados a seguir, define-se basicamente pela pesquisa desempenhada no Estágio de Pós-Doutoramento em Literatura e Crítica Literária da PUC de São Paulo onde pude desenvolver o projeto “Cartografias do desejo e novas sexualidades: aspectos da cena contemporânea dos anos 90 e depois”. Nesse Projeto, devo destacar, além das leituras de textos de dramaturgos não publicados brasileiros e estrangeiros, também, o envolvimento em uma rede de debates e ações em torno da questão das masculinidades em outros tipos de narrativas. Aqui nos debruçaremos sobre o filme Shortbus.

Shortbus, filme dirigido por John Cameron Mitchell (1963), autor do lendário Hedwig and the Angry Inch, que no Brasil foi traduzido por Hedwig – Rock, Amor e Traição ou Hedwig e o Centímetro Enfurecido em sua versão teatral (dirigida por Evandro Mesquita com Paulinho Vilhena e Pierre Baitelli dividindo o papel da transexual que dá título ao filme), já se tornou cult entre os apreciadores de cinema e cinéfilos queer. Após o sucesso do musical sobre o transexualismo, Mitchell voltou a abordar a questão da sexualidade em Shortbus, filme produzido em 2006.


Embora apresentado como uma comédia, Shortbus vai além disso. Desde a primeira seqüência o espectador sente o que o espera e pressente o que será o filme. Da dominatrix praticando explicitamente uma – desconfortável - posição de kamasutra, até a imagem perturbadora de um homem que pratica yoga e se masturba ao mesmo tempo ejaculando em sua própria boca, o filme choca. Seus muitos personagens , um casal gay que procura reativar sua relação aparentemente perfeita – os “Jamies”, uma terapeuta sexual que nunca teve um orgasmo, mas ajuda os outros, seus clientes, a conseguirem, o seu marido, a tal dominatrix (lésbica), um voyeur, travestis, transexuais, mulheres e bichas, homens e ex-gays, ex-homens e futuros gays novaiorquinos, todos se encontram em um clube, o Shortbus, para orgias felizes e despreocupadas, trepadas espetaculares e irrestritas, shows e boa música porém, ao mesmo tempo que nos divertimos e nos excitamos com as cenas explícitas de sexo, Shortbus proporciona verdadeira dissecação do homem contemporâneo, seus frágeis vínculos humanos, o sentimento de insegurança; navalha na carne, nu e cru, íntimo e individual nos diz que o projeto da contemporaneidade ainda está sendo escrito e a pena com que se escreve a carrega de matizes fortes, grave tristeza, melancolia e amargura.

Se for correto pensarmos com Foucault, que a sociedade moderna era regulada e vigiada pelas instituições normativas, que a constituição de um sujeito se dá através de um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais produtoras de “corpos que pesam”, as verdadeiras “edificadoras da ordem”, podemos dizer que Shortbus traz à tela exemplos vivos e explícitos de pessoas que representam a tentativa de fuga dessas mesmas regulações, controles e ordens - os mal-estares da sociedade pós-moderna, resultado do excesso de normas e sua inseparável companheira – a escassez de liberdade.

À época, Foucault pensava desenvolver um estudo crítico do estabelecimento de técnicas que implicam coerção das operações do corpo, garantindo a sujeição permanente de suas forças e impondo-lhe uma relação de docilidade-utilidade - as disciplinas - que terminam por funcionar junto a procedimentos de normalização da sociedade, constituindo-se um poder cuja forma é a da dominação. Assim, do mesmo modo que a vigilância, a normalização torna-se um dos grandes instrumentos de poder a partir do final da época clássica acrescentando graus de normalidade, que são signos de pertença a um corpo social homogêneo, objeto de poder, que pode ser manipulado, modelado, treinado, que responde e obedece, tornando-se dócil e hábil à medida que suas forças se multiplicam. O século XVII descobriu, não só a dimensão metafísica do corpo, como também o conjunto de técnicas e processos empíricos que controlam suas operações, centralizando na noção de “docilidade” toda uma teoria do adestramento.

Em Vigiar e Punir e em A vontade de saber, Foucault aponta não só o modo peculiar de funcionamento das normas modernas, como também o mal-estar que causa. Dentre as técnicas, as práticas, os saberes e os discursos por ele analisados, a normalização constitui um alvo central, pois todas as sociedades têm normas de acordo com as quais socializam os indivíduos. O problema, para Foucault, é que, em nossa sociedade, as normas são especificamente perigosas, já que funcionam de modo muito sutil, como estratégias sem estrategista, impondo uma rede uniforme de normalidade.


O corpo aparece, então, como provido de condições de funcionamento próprias a um organismo, que fazem com que o poder disciplinar se dirija a uma individualidade analítica, celular, natural e orgânica, a partir dos corpos que controla atribuindo-lhe valor e utilidade. As leis funcionariam, assim, como normas devido a suas funções reguladoras capazes de criarem, classificarem e controlarem sistematicamente as anormalidades.

Se como afirmou Bauman ao citar Freud na introdução de seu “O mal estar da pós-modernidade, “o homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança” (BAUMAN, p. 8), queremos demonstrar como os personagens de Shortbus reagem ao inverterem essa lógica de segurança e optarem por um pouco mais de liberdade, afinal, “se você ganha alguma coisa e, em troca, perde alguma outra coisa” (BAUMAN, p. 10), o que ganham e perdem os personagens de Shortbus, frágeis indivíduos, que carregam sobre suas costas os desejos, as sexualidades ou os prazeres ex-cêntricos?
O que acham, leitores?




Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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