terça-feira, 5 de julho de 2011

A cura





Não importava o quanto havia demorado a chegar ali. Nem o quanto lhe doíam mais que antes cabeça, lombo e quadris. Muito menos as dores que se apossavam de suas pernas, panturrilhas e músculo posterior da coxa. A praia tinha fama de eliminar todas as dores. Logo, logo não sentiria nada.
Ao chegar, pouco antes da nona hora, lembrou-se que a maré subiria antes do por do sol, por isso abriu a vala, onde se pôs, e logo começou a cobrir-se como se necessitasse estar ainda com sangue quente. Com as pernas cobertas, acreditou que a dormência fosse já efeito milagroso. Tampou nariz com um prendedor de roupas, pôs dois canudos na boca, derreou-se ávido e cobriu o tórax ainda arfante. Puxou para a cabeça o montinho de areia previamente preparado; tentou deixar apenas os olhos de fora. E, como não sentisse mais as costas e a cabeça, deu-se por aliviado e enterrou braços e mãos.
Embora desejasse mover as pontas dos dedos, coçar um calo que perturbava há dias ou mesmo piscar os olhos, permaneceu estático para a cura ser completa. O corpo se integraria ao cosmos. As forças da natureza, numa ação metafísica, iriam reconstituí-lo da imperfeição e restituí-lo à perfeição. Ao sentir a maré, erguer-se-ia um novo homem.
As ondas subiram e desceram. Águas vieram e levaram a areia miraculosa. Os olhos desorbitados misturaram imagens e perderam-se de vez no mar. Já não sentia mais nada.

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