terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O tango da vida

 
O quinto filho
Deitada na cama,
Coberta de silêncio,
Escuto o escuro
Do meu dia
.

Menino franzino, com olhos e cabelos negros escorrendo pela sua testa teimosamente. Quinto filho de Dona Maria das Dores, Jusué era um menino vencedor. Vencera sarampo, caxumba,
meningite até. Sua mãe creditava às suas rezas. A vizinha enfermeira, trabalhava no Posto de Saúde da cidade de Guariné, e repetia que suas mãos puxavam o menino do Vale da Morte cada vez que ele escorregava na beirada, enquanto o Padre Severino creditava suas vitórias ao fato de o menino ser coroinha da igreja desde os sete anos.

Cada um deles concordava, contudo, que não era por causa da Mãe Zíbia, benzedeira e macumbeira. Ela acendia velas coloridas e falava com voz grossa quando o pequeno adoentava; proclamava que os espíritos do mal queriam levá--lo porque ele traria muita alegria ao mundo.
Para os donos do sítio onde Maria das Dores e o marido João da Silva residiam e trabalhavam como caseiros, era apenas um acaso, uma sorte qualquer, que mantinha o menino fora das estatísticas de mortalidade infantil do país.
Incomodava-os o fato de o menino consumir tanto tempo dos pais, que apresentavam atestados que a natureza se recusava a ler. O mato crescia, as galinhas tinham fome, o lixo se acumulava, estivesse Jusué doente ou não.Todos  os irmãos  tinham  nomes  começando com a letra J: Jânio, Jerônimo,  Jertrudes,  Jairo, Jusué e José. Eram  seis irmãos apenas; uma irmã tinha morrido afogada, com apenas quatro anos, na represa  da cidade. Um menino tinha morri- do de  complicação  de doença,  explicava Maria  das Dores, a quem perguntava,  sem saber exatamente  qual doença  era. Todos ajudavam na plantação  de café ou em casa, cuidando  dos afazeres e dos irmãos menores.Não  havia tempo  para  brincar,  nem  brinquedos. Havia muita fome, isso sim.  Mas Jusué era um menino  diferente, não comia de tudo,  sentia enjôos e, assim, perdia altura  em vez de crescer.  As costas  curvadas e a aparência  frágil eram motivos de zombaria dos irmãos mais velhos, os quais diziam para ele se esconder sempre que passasse um abutre por per- to, para evitar ser levado por engano.Um dia, o patrão  estava na varanda  ouvindo  um CD de música  clássica,  e Jusué  se escondeu  atrás  de  uma  árvore para  ouvir.  O  Dr.  Olímpio  era  homem  culto,  aposentado agora, alto  e com  cabelos  negros  lisos, descendente direto de espanhóis. Quando sua irmã se aproximou  gritando  seu nome, o Dr. Olímpio percebeu o menino e o chamou.

Você estava me espiando?
Não, senhor.
O que você estava fazendo?
 Eu  tava  ouvindo  a  música   respondeu, olhando para seus próprios  pés.
Ah, então você gosta de música?  Escute aqui, quando  eu for à cidade, vou comprar  um aparelho de som para você, desses que tocam CD, e vou trazer uns CDs. A música pode salvar um homem, você sabia?
Sabia, não respondeu com os olhos arregalados.  — Obrigado,  doutor.   E saiu correndo  atrás  de sua irmã,  de volta para a plantação.
Jusué ficou a pensar  a noite toda.  Como  a música  pode salvar um homem? Esse doutor  era mesmo esquisito.  Talvez fosse louco. Espingarda, sim, salva um homem.  Comida.  As
rezas da minha mãe, do padre e da Mãe Zíbia. Mas, música? 
No outro  dia, Jusué acordou  com febre. Sua mãe estava estranha.  Parecia que seus olhos estavam nublados.  Pela con- versa que ele tinha escutado dos irmaõs velhos, Jânio, Jertru- des e  Jerônimo,  a mãe tinha  perdido  um bebê. Tomara  um chá envenenado  sem saber. Por isso, perdera  muito sangue e não poderia carpir por uns dias. Seria uma boca a mais para alimentar, disse Jerônimo,  imaginando  se a mãe tivesse tido o bebê. Jertrudes sentia as lágrimas escorrerem  e respondeu que onde comem oito, comem nove; e ela nunca tomaria des- ses chás que a mãe fazia quando  estava prenha.
Fio, você tá com febre. Vai tomar banho morno e bebe bas- tante água. Eu vou pro meu quarto rezar pra você. E assim ele viu, pela porta entreaberta, a e deitar-se na cama e voltar a dormir.
Um mal-estar  de súbito  tomou  conta  dele, e foi impos- sível chegar  ao banheiro,  vomitando  ali mesmo,  no chão da cozinha, onde acabara de beber água.
Ô moleque,  porque  você não vomita fora?!  Agora vou ter que lavar esse chão, seu porco! disse sua irmã Jer- trudes de forma truculenta. — Sai daqui, sai! gritou apon- tando a vassoura como se fosse uma arma.
Ele saiu e sentou-se  atrás  da jabuticabeira,  perto  da va- randa do patrão. A árvore parece com catapora negra, pensou, cheia de bolinhas pelo tronco e galhos. Gosto mais quando ain- da está florindo, continuou  refletindo,  parece uma noiva com os cabelos enfeitados.  Esperou  até que o Dr. Olímpio apare- cesse, na esperança de ele o haver se esquecido do presente.
O doutor  sempre  dava presentes  para  ele. Sua  mãe di- zia  ao  pai que não gostava da diferença  feita entre  Jusué e os irmãos, mas ele tinha   de ver o menino  tão magrinho aparecendo até os ossos. Para  Jusué, não era problema.  Ele nunca tinha ficado sem agasalho no inverno ou sem chinelo no verão, como os irmãos.  Sorte  tinha também  José, que herdava tudo que nele ficava pequeno.  Ouviu o carro estacio-
nando e o patrão  gritar para seu pai:

Onde   o Jusué?  Eu tenho  um presente  pra ele. Ali- ás, pra vocês todos.  Mas ele é o dono,  ele empresta  para os irmãos quando  não estiver usando.
Dr. Olímpio  sempre protege o Jusué, resmungou João da Silva bem baixinho.  Melhoassim, pensava,  o dava conta mesmo de alimentar e vestir os miúdos.
Quando os irmãos batiam nele, as marcas se eternizavam por dias em seu rosto  de boneca.  Seus  olhos escuros  eram pequenos e caídos, dando  a impressão  de que estava sempre chorando. Tinha aparência  diferente  dos irmãos  de cabelos crespos e avermelhados.
Jusué deu um salto e disse:
Precisa me procurar não, pai, eu aqui. A mãe man- dou eu ficar embaixo de uma árvore até minha febre baixar...
Ah, pirralho,  você está aí. Então venha cá. Veja o que eu trouxe.  Você vai ouvir na sua casa,  é elétrico.  Pilha cus- ta muito caro e acaba rápido.  Eu trouxe um CD do Mozart para você. Depois você conta se gostou. Deixe eu sentir a sua testa. Uhm,  não muito  quente  não,  deve ter sido uma virose. A música vai curar você.
Jusué o conseguia  falar. Sua respiração  era o - pida,  como se tivesse visto um anjo, ou a Maria Morena, filha do caseiro do sítio ao lado.
Sem saber direito como agradecer, ajoelhou-se  e abaixou a cabeça, repetindo  “obrigado,  obrigado”.
Moleque, moleque, levante já daí. Você endoidou? Se você o levantar, eu vou dar esse presente para outra pessoa. Onde já se viu, é apenas um toca-CD. Paguei 89 reais na promoção. E assim você me deixa ouvir minha música na varanda em paz, sozi- nho, como eu gosto. Eu me sinto vigiado com você atrás daquela árvore, me espiando, ou você pensa que eu o te vejo?
Jusué levantou-se  e correu  para  casa.  Como  estava do- ente,  não  precisava  trabalhar  naquele  dia.  Ligou  o rádio  e esperou. Silêncio. Chiados.  Colocou  o CD. De repente,  um
estrondo  maravilhoso. O maestro Leonard Bernstein, conduzindo a Orquestra Sinfônica  de Viena, gravara  as obras  de Mozart,  começando por Ave verum corpus.
Jusué sentiu-se  arrepiar,  mais do que quando  viu Maria- zinha Morena banhar-se no reservatório  de água dos cavalos de calcinha. Seu corpo todo ficou em alerta. Seus cabelos ouriçados.  O coração  batia velozmente.  E assim ficou, du- rante mais de uma hora enquanto tocava o CD.
A impressão  deixada pela música clássica foi o profunda que  todas  as noites ele ouvia o CD, bem baixinho,  para não atrapalhar a novela das nove acompanhada pela e e irmãos. Aos poucos, foi decorando os sons. Gesticulava enquanto ouvia. Chorava quando a melodia era mansa, imitava a voz da soprano  nas árias,  fingia fazer parte  do coro. Seu cabelo liso dançava para cá e para , movimentando-se conforme suas viradas for- tes de um lado para o outro, a conduzir a orquestra  imaginária.
Jusué procurou  Dr. Olímpio na varanda, em uma tarde de outono. As primeiras rosas nasciam, o verde das folhas nas plantas era claro e a jabuticabeira já havia sarado da caxumba, seus ir- mãos comeram todas as suas feridas, pensou o menino com ânsia.
Dr. Olímpio estava sentado na varanda, com o gato Filé no colo. Quando viu o menino, perguntou se havia algum problema.
Ah, Dr. Olímpio, eu posso pedir uma coisa pro senhor?
Ai, ai, ai, Jusué,  eu acabei de te dar  um presente  há dois meses e você quer outro?  Você pensa que dinheiro nasce em árvore, é? Sua mãe me procurou para dizer que você precisando  de roupa nova de frio...
Não, doutor,  não custa dinheiro  não. O senhor  pode perguntar na cidade se tem vaga pra mim em curso  de mú- sica do SESI.  Eu ouvi dizer que se pode estudar  de graça.
Sua mãe sabe disso? Ela não quis colocar vocês na es- cola; como eu vou convencê-la a deixar você estudar música?
Você louco? Ela não vai concordar nunca. 
Eu falei com ela. Ela não aguenta  mais ouvir aquele CD, se tiver um lugar onde eu possa ouvir música bem longe dela, ela não liga não, é graças a Deus.
Entendi.   bom, eu vou verificar e depois te falo. Quando o pequeno Jusué chegou ao SESI, uma professora
de música, percebendo sua sensibilidade musical, perguntou qual era a sua música preferida. Como o sabia ler e desconhecia os títulos das músicas, ele disse que iria “cantar um pedaço para ela. E, de olhos fechados, ele repetiu sons de violinos, de flautas, de contrabaixos,  de coral e de solistas, soprano e mezzo sopra- no, mexendo os bracinhos para cima e para baixo, rapidamente, freneticamente, para depois virar as pequenas mãos com a maior delicadeza e doçura, sem abrir os olhos por nenhum momento.
No final, quando se recompôs, viu que a professora chorava, enquanto a diretora e outros dois professores haviam se aproxi- mado para saber o que estava se passando. Juntos, os professores inscreveram o menino Jusué em um programa internacional para músicos de  comunidades  carentes.  Também  se revezaram  em ajudá-lo com lições para que fosse alfabetizado e conseguisse as- similar pelo menos uma parte do conteúdo escolar desconhecido.
Para o perder a bolsa de estudos, o podia repetir o ano escolar. O padre ofereceu um canto para ele dormina igreja, se fosse coroinha e ajudasse nas missas de domingo de manhã. As intenções do padre, ninguém conhecia, mas a verdade é que o menino era muito bem cuidado pela professora, e ninguém se atreveria a fazer mal àquela criança.  Jusué aos poucos ganhou um pouco de peso, melhorou sua autoestima e perdeu até a cor- cunda, andando orgulhoso de si, sem jamais perder a humildade.
Tinha dez anos quando  isso aconteceu.  Sua mãe, quando soube, não demonstrou surpresa,  nem alegria, nem tristeza. Talvez a apatia fosse por conta dos remédios  para depressão  depois  do último  parto  de feto sem vida. Mas não se opôs.
Achou  até  bom.  Menino  doente   muito  trabalho,  disse quando  entregou  o menino para a professora  que o acompanharia até Viena, depois de três anos de aulas.
E , onde Mozart conheceu o sucesso, Jusué se tornou um grande maestro internacional.  Nas suas primeiras férias, oferece- ram uma viagem a Paris. Mas o menino declinou, já falando um pouco de alemão. Ele queria conhecer Salzburg, o berço de Mo- zart. Queria saber mais da vida daquele homem morto há mais de duzentos anos e que ainda inspirava corações pelo mundo todo.
Em  suas  turnês  internacionais, hoje,  após  quase  trinta anos,  ele às vezes passa pelo Brasil. Vem a o Paulo.  Sua família o é mais caseira de sítio, agora o proprietários de um pequeno sítio em Louveira. Seus irmãos puderam estudar,  apesar de que vários preferiram  o fazê-lo. Jusué aprendeu  a ler e escrever em português, alemão, inglês e mais cinco lín- guas diferentes.  Nunca mais ficou doente.  Sua fraqueza  não era do corpo, era da alma. Sua alma tinha fome de música.
Ele faz palestras  e visita escolas contando  sua história,  em vários países. Provando que cada um faz o seu destino, se tiver coragem de correr atrás de seus sonhos.
E a Rosinha Morena, o que aconteceu  com ela? Sempre que  vinha de férias para o Brasil, ele a encontrava. Foi sua primeira e única namorada. De volta à Europa, eles escreviam cartas apaixonadas.  Quando  ela fez dezoito anos, mudou-se para Viena. Depois, já com o primeiro filho nos braços, o pequeno Mozart  da Silva, mudaram-se para Paris, onde vivem até hoje, com o filho único.  Além de cuidar  do marido  e do filho, Rosinha é poeta. Mesmo depois de trinta anos, ela chora todas as vezes que assiste a seu marido reger uma orquestra.





Simone Pedersen é formada em Direito e hoje dedica-se totalmente à literatura. 
Esse conto faz parte do livro: O tango da vida, publicado em fevereiro de 2012. Em janeiro, publicou "A galinha que botava batatas", em Braille, pela Fundação Dorina Nowill. Antes disso, publicou para adultos: Fragmentos e estilhaços com contos, crônicas e poesias e Colcha de retalhos com poemas. Para crianças, "Vila Felina", "Vila Encantada", "Conde Van Pirado", "Sara e os óculos Mágicos" , "Coleção Fuá", "Coleção Pápum". Tem vários lançamentos programados para 2012.

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