sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Performance e Humor Subversivo

           

Raid das Moças e a Cultura da depressão: performance e humor subversivo ou quando Foucault visita as chanchadas da Atlântida



      Durante a ditadura militar no Brasil, a resistência artística não se deu exclusivamente através do engajamento de esquerda. Houve uma tendência cultural, detectada por Renato Ortiz (Ortiz, 1988) no ensaio “O popular e o nacional / Do popular nacional ao internacional popular”, que o autor nomeia de “Cultura de Depressão”. Diz o autor que:

Cultura de Depressão com variações no irracionalismo, no misticismo, no escapismo, e sob o signo da ameaça, eis os traços essenciais que acompanham alguns setores da produção cultural brasileira a partir de 1969. (...) Declara-se espúria ou careta a esfera do político e, através de um argumento equivocado do perigo da recuperação via indústria cultural ou pelo establishment, faz-se a profissão de fé do silêncio teórico, isto é, a recusa apologética do discurso conceptualizado sobre a produção artística, sobretudo a musical. Isto tudo mesclado a um culto modernoso do nonsense, a um repúdio à pontilhação racional do discurso. Portanto, ênfase no sujeito “alienado”, que busca na droga, no misticismo ou na psicanálise, a forma de expressar sua individualidade; desarticulação do discurso, reificação da linguagem, o que equivaleria a uma desvalorização do conhecimento racional; recusa em se encarar o elemento político (Ortiz,1988:158).

      O presente trabalho apresentará um fenômeno cênico que, advindo da contracultura dos anos setenta viria a ser, na década de noventa e depois, alvo de fervorosas discussões e responsável por uma renovação da platéia brasileira. Híbrido por natureza e essência, o Raid das Moças em sua proposta estética apresenta em cena o pastiche, o nonsense costurado por canções consideradas brega e/ou cafona da música popular brasileira destinada às consideradas camadas populares. Com uma sonoridade que apresenta síntese da música eletrônica com baladas de cunho romântico cujos conteúdos refletem desilusões amorosas e a chamada “dor de cotovelo” alicerçada por interpretações exageradas e melodramáticas, coreografias retiradas de filmes das sessões da tarde e de dançarinas de programas de auditório, respaldada por um figurino que passeia pelo kitsch, pelos cabarés e boites gays; o grupo se debruça neste espetáculo a mapear a partir de uma linha de tempo histórico com inicio na década de sessenta até a atualidade a re/apresentar cada bloco como pequenos esquetes que não privilegia apenas o lado musical, mas traz ainda um forte apelo de teatralidade e humor que resulta num espetáculo cênico lúdico e interativo.
      Teatro Besteirol designa montagens de humor não muito exigentes que buscam antes de tudo cumplicidade com a platéia por debochar de temas cotidianos, contando com atores que não hesitam em assumir a paródia até o mais infame cabotinismo. Se a isso se incorporar temas escatológicos e uma estética voluntariamente de mal gosto e mal-acabada, estamos no caminho certo para esse começo de conversa.
      Linda Hutcheon, em Uma teoria da paródia (Hutcheon, 1986)assim define a paródia: ‘A paródia é pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo’ (Hutcheon, 1986:54). Versões irônicas de transcontextualização e inversão são os seus principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso a homenagem reverencial.
     Flávio Marinho comenta que o espectador para usufruir do humor do espetáculo necessita de uma certa formação cultural:

O humor do espetáculo, no entanto requer uma certa informação cultural do espectador e, especialmente, algum conhecimento (ou vivência) teatral para melhor curtí-lo. De outra forma, corre o risco de perder grande parte dos achados cômicos. Seja como for, trata-se de espetáculo altamente recomendável que, devido ao seu caráter meio marginal, talvez estivesse melhor abrigado – e com maiores chances de sucesso em sessões de meia-noite do Cândido Mendes do que no horário vespertino do Teatro dos Quatro (Marinho, 1983: Jornal ‘O Globo’).

      Essa idéia esboçada por ele – a de que o espectador da peça precisa de uma certa formação teatral para melhor usufruí-la – vem ao encontro do que Affonso Romano de Sant’Anna diz a respeito da assimilação da paródia, paráfrase e estilização:

Os conceitos de paródia, paráfrase e estilização são relativos ao leitor. Isto é: depende do receptor (...) Isto equivale a dizer, em outros termos: estilização, paráfrase e paródia (e a apropriação, que veremos proximamente) são recursos percebidos por um leitor mais informado. É preciso um repertório ou memória cultural e literária para decodificar os textos superpostos (Sant’Anna, 2006: 26).

      Citamos, à guisa de exemplo, o texto que a atriz Kátia Leal fala entre a primeira parte do primeiro bloco e a segunda:

Nesse verão nós decidimos reviver e recontar uma história de sucesso, decidimos ficar em Salvador, na Varanda do SESI tomando nossos bons drink (sic) nesse verão maravilhoso da Bahia e dividindo com vocês esses momentos nossos. E teve boatos que nós ainda estávamos na pior, se isso é tá na pior, poonrra! O que é dizer estar bem, né?” (THÜRLER, 2011: original em cópia).

      Esse texto, responsável em si, por boa parte do riso do espetáculo só faz sentido para quem conhece o famoso vídeo da travesti brasileira radicada na Itália, Luiza Marilac:



      Outro momento importante é o que a atriz Kátia Leal assume o papel da Psicopedagoga especialista em linguagem de libras e traduz a música Fico assim sem você, de Claudinho e Buchecha. Guardando algumas mudanças, inserções e releituras, o que fazemos é um processo intertextual e tropicalista coma versão que o ator Raul Franco fez para a mesma música em seu espetáculo solo "Saída de emergência”, que ficou em cartaz no teatro Vanucci, no Rio de Janeiro.


      Ainda mais radical é a cena da diversidade, em que a cantora e atriz Marilda Santanna interpreta, invocando a musa Nara Leão, uma típica Bossa Nova. Até aí, nada de muito especial se não fosse esse número uma apropriação da versão escatológica de Mc  Grizante para o clássico pop "I Will Survive" de Gloria Gaynor.


      Foi comum durante os dias de espetáculo e frente à divulgação maciça na imprensa brasileira a dúvida sobre a identidade sexual das performers Claudia Sisan, Kátia Leal e Marilda Santanna. A provocação intencional teve origem através do conceito de camp, que para nós, pode ser entendido a partir das palavras Halperin (Halperin, 2007), como uma forma de resistência cultural que repousa sobre a consciência compartilhada de estar situado dentro de um poderoso sistema de significações sociais e sexuais. O camp, segundo o autor, resiste ao poder desse sistema de dentro dele por meio da paródia, do exagero, da amplificação, da teatralização e da explicitação de códigos tácitos de conduta – códigos cuja autoridade provém de seu privilégio de nunca ser enunciado explicitamente e, por conseguinte, de sua imunidade à crítica.


      Contrastando com outras posturas, a estética camp equivale, de alguma forma, à estética gay, o aspecto camp mais marcante no espetáculo Cultura da Depressão, aliás, é importante lembrar que, muitas vezes, as representações estereotipadas com personagens afeminados e com uma estética camp, que, de acordo com Sontag (1987), pode ser caracterizada pela “predileção pelo inatural, pelo artifício e pelo exagero” (p.318) ou como “um certo tipo de esteticismo (...) uma maneira de ver o mundo como fenômeno estético” (p.327).
     O camp é arte que se propõe a si mesmo como séria, mas que exige, para sua recepção, uma atitude de valorização de seu artifício e exagero, sua incorporação nostálgica e intelectual do mau gosto. “Cultura da depressão” deve ser vista a partir das referências culturais a gêneros considerados inferiores na Arte que nos permite visualizar o tema da memória, a cultura de massa e uma postura kitsch frente aos objetos sobrecarregados mediante um discurso sentimental, só assim foi possível que o Raid das moças inserisse uma marca pessoal na experimentação autoral com modelos populares.



Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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