quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Crítica e psicose



Crítica: ação intelectual de juízo ou discernimento sobre algo.

Psicose: segundo as Ciências Psi é um estado onde se observa a perda de contato com a realidade. 

Deve-se ter um olhar crítico sobre as coisas. A formação crítica é fundamental para tratar os problemas contemporâneos. A crítica considerou a obra uma das maravilhas criadas pelo ser humano. Especialistas criticam as ações do governo ... Sim, a crítica está em alta. Por todos os lados @s crític@s se multiplicam e passam a palpitar em todas as esferas da vida humana. Cultura, política, sociedade, não importa qual o tema, antes mesmo de ser colocado na arena pública para o debate, uma centena de crític@s, especialistas ou não, se enfileram e começam a se preparar para o zeloso ofício de traduzir as "questões de nosso tempo, de nossa realidade" para nós, pobres mortais que "não estão entendendo". 

Deixando de lado a arrogância e a prepotência intelectual de quem atua na "crítica", gostaria de fazer uma pergunta que não quer calar: o que é a crítica? Também deixando de lado o uso vulgar da palavra e me atendo apenas a definição de ajuizar ou discernir sobre algo, não posso deixar de questionar o estatuto de juíz d@ crític@. Em minhas observações empíricas tenho ficado cada vez mais assustada com o comportamento das pessoas nos diálogos mais banais. Seja um texto, ou mera situação da vida ordinária, mal foi colocado um problema, elas correm para exprimir suas "leituras", "opiniões" e "críticas". Há quem ouse já definir o problema e antes de mesmo de acabar de citá-lo já propõe uma solução, uma resposta. Não sei se fruto da redução do tempo e espaço do século XXI e/ou fruto de nossa debilidade intelectual crescente em tratar dos problemas, o que sei é que estamos gerando uma geração de crític@s de tudo e conhecedor@s de nada. 

O mínimo esforço de se tentar recolocar um problema ou mesmo solicitar as bases de uma afirmação, não é só tratada como ofensa, mas também como incapacidade intelectual d@ questionador@. Se o tema está "claro" e sendo "entendido" por um número maior de pessoas, sendo @ pobre questionador@ criatura solitária, não resta alternativa para @ mesm@ além de se silenciar, sobre o risco de ser tachad@ de psicótic@, de ser considerada como alguém que possui problemas pessoais graves ou mesmo de alguém que não consegue se "integrar" à sua comunidade. 

Neste triste cenário, palavras como prática, realidade, sensibilização, tolerância, libertação, participação,  inclusão, oprimid@ e "diálogo", são usadas extensivamente, sem em nenhum momento haver uma definição clara, do que realmente está se falando. O foco pedagógico na formação cidadã e crítica, fazendo uso de técnicas de "sensibilização" acabou por tornar as pessoas profundamente sensíveis, delicadas, frágeis, e qualquer questionamento que possa trazer um pressuposto oculto à luz ou mesmo balançar as bases de um discurso, gera ira e revolta por parte das pessoas. Não, não estou falando de violências e xingamentos. Estou falando de um sutil mecanismo de opressão e controle sobre as ideias, operado justamente por pessoas que se colocam como defensoras das vítimas sociais. 

De tão sutil e generalizado, poucas pessoas se dão conta do que se passa, tamanho o poder sedante que as novas formas de opressão possuem. Sedante que é constituído por uma fala doce e amiga, face-a-face, dita por pessoas que propõem nos incluir mas ficam profundamente incomodadas quando questionadas sobre tamanha caridade e bondade para conosco, seres que operam para além do bem e do mal. A lógica da infantilização, do paternalismo e da "democracia participativa obrigatória", me parece ser só uma, colocar as pessoas para executarem projetos e ideias sobre os quais nem mesmo o "crític@" parou para pensar de forma rigorosa. É claro que não se pode deixar de lado o velho jargão das "demandas de nosso tempo". Gostaria de ter o prazer de conhecer quem formulou essas demandas, uma vez que eu já conheço as pessoas que as colocaram na agenda pública.

Quando converso com gente simples, que não teve acesso ao mundo erudito, que não está "incluída" e que vive a vida de acordo com as restritivas condições da província pau-brasil tenho uma grata surpresa. Muitas delas não se interessam pelos temas da agenda pública, outras não acreditam nos sistemas políticas, ainda outras, estão pouco se lixando para toda a crítica social produzida pel@s especialistas. Há a jovem estudante de escola pública que quer se "formar" para conseguir um emprego e não aguenta mais a falta de professor@s e a péssima qualidade do ensino que lhe é ministrado, a esteticista que quer cuidar da beleza dos outros sem ter que passar fome, a aposentada que comenta sobre a corrupção no país enquanto prepara a janta. Gente que apenas quer cuidar de suas vidas e ter um pouco de dignidade. Quando se fazem perguntas sobre os "problemas de nosso mundo", elas fazem seus palpites, com base em suas trajetórias de vida e com a reprodução de falas do que ouviram na mídia.

Para este povo, a crítica tem um papel muito relevante, o de colocar problemas e dirigir a atenção das pessoas, fazendo julgamentos sobre o que é bom e o que é mal e influenciando as ações e sentimentos humanos. São as técnicas de propaganda e persuasão que se tornam as ferramentas d@s especialistas. Debate? Torna-se mero ornamento para esconder o que realmente está ocorrendo.

Em tudo isso, me parece estar claro o alto grau de psicose no qual estão imers@s @s crític@s e suas consumidor@s. A realidade e seus problemas se tornam trama ficcional, @s "debatedor@s" executor@s do script binário. Fala-se tudo sobre tudo, se reproduz, consome, digeri, regurgita, e quando se buscam as substâncias, os nutrientes, não se encontra nada além do lixo programado.

Na academia em especial, lugar privilegiado de formação de crític@s, a leitura, o estudo lento e rigoroso das questões, o exercício argumentativo, a exposição de ideais e outras coisas de um tempo que passou, abandonam a cena, emerge a prática de julgamento sistemático de tudo e de tod@s. A vigilância sobre as "intenções", "objetivos" e "compromissos ideológicos" se torna a preocupação central. No lugar de debates, a universidade vira arena política, campo de doutrinação e controle, não se quer mais buscar entender o que @ outr@ diz ou escreve, apenas com quem está aliad@ nos projetos de poder. A politização de todos as ações humanas, acaba por esconder a complexidade e diversidade dos impulsos e comportamentos humanos, tudo se resume à política. 

Assim, falece uma das poucas instituições que promoveu tantos saberes, avanços tecnológicos e discussões sobre a condição humana. Emerge a fábrica de crític@s, nov@s operárias da ditadura sutil e democrática do século XXI. A realidade se torna ficção delirante, o questionamento patologia de gente ansiosa e antisocial a ser expurgada de um ambiente saudável e tolerante. E o mundo, sim, lá depois das torres de marfim, se torna mero laboratório de experimentação, é de onde se sugam os recursos que alimentam as fábricas do saber e onde se jogam os dejetos produzidos pel@s crític@s. 

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do ABC. Participa do DEFILOTRANS - Grupo de Debates Filosóficos Transdisciplinares Para Além da Academia.

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