Nessa semana o Espaço do Leitor apresenta um ensaio de Welton Pereira Silva, que analisa o romance A Relíquia, de Eça de Queiroz.
A
Relíquia de Eça de Queirós: entre o Sagrado e o Profano
A
Relíquia, de Eça de Queirós, é um romance que possui a típica denúncia social
realista. Nas páginas dessa obra, o autor português narra as peripécias de
Teodorico Raposo, um rapaz que passa a viver com uma tia, a Titi, uma senhora
muito beata e, principalmente, rica. Para fazer com que a velha senhora lhe
tenha em graças e lhe atribua sua herança, Raposão resolve fazer uma viagem à
Terra Santa para representar sua tia nas indulgências necessárias a um bom
católico para ganhar os Reinos dos Céus. Como Dona Maria do Patrocínio, a Titi,
não tinha condições de efetuar por si só a santa viagem, seu sobrinho, muito solícito,
resolve fazer a peregrinação em seu nome.
Nesse
ponto é interessante observarmos a onomástica, os nomes, dos personagens
principais, afinal, Teodorico Raposo, o Raposão, é esperto e oportunista como
uma raposa, enquanto sua tia, Maria do Patrocínio, serve justamente para isso:
patrocinar a viagem à Terra Santa.
Para
que sua tia custeasse a sua viagem, e deixasse para ele sua herança, Raposão se
passa por um devoto convicto. O que na verdade era apenas uma fachada, como
podemos observar em várias partes da obra, que é narrada pelo protagonista em
primeira pessoa. Observe, por exemplo, o trecho no qual Teodorico, enquanto
rezava uma Ave Maria, se recorda da bela “inglesa do senhor barão”:
Era a inglesa do
senhor barão. No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu
pensava nela, rezando Ave-Marias. Nunca roçara corpo tão belo, de um perfume
tão penetrante; ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e passava,
bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas claras... (p. 05)
Durante
o ato sagrado da oração dedicada à Virgem Maria, Raposão se vê imerso em uma
lembrança pecaminosa que o faz desejar a mulher do próximo. Como se não
bastasse, sua falta de atenção à oração faz com que ele passe a dedicar as
características que os fieis evocam a respeito da Virgem à inglesa do senhor
barão, dedicando a ela os atributos “cheia de graça” e “bendita entre as
mulheres”.
Em
outra passagem, a libertinagem profana do protagonista se mostra ainda mais
saliente, já que a própria imagem do Cristo na cruz evoca em Teodorico mais
alguns pensamentos pecaminosos:
À noite, depois do chá, refugiava-me no
oratório, como numa fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de
ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo
do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor de carne,
quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se
em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos,
desenrolavam-se lascivos anéis de cabelos crespos e negros; no peito, sobre as
duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos, dous esplêndidos seios de mulher,
com um botãozinho de rosa na ponta; e era ela, a minha Adélia, que assim estava
no alto da cruz, nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os
braços abertos para mim!
Eu não via nisto uma tentação do
demônio; antes me parecia uma graça do Senhor. (p. 26)
Acontece,
nessa parte, uma verdadeira metamorfose a partir da qual a própria imagem
sagrada se converte no objeto de desejo por parte do protagonista. O ápice
profano da visão praticamente alucinatória tida por Teodorico é a conclusão à
qual ele chega de que aquela cena, que lhe afastava da contemplação sagrada,
era uma graça de Deus e não um ardil do Demônio. Dessa forma, o Sagrado e o
Profano parecem se mesclar na mente do protagonista, que não vê pecado em seu
desejo, mas vê sua alucinação como uma dádiva divina.
O
romance prossegue com outras muitas referências sarcásticas em relação ao
catolicismo, chegando ao cume quando o protagonista faz com que seu companheiro
de viagem, o arqueólogo Topsius, arrancasse alguns galhos de um arbusto
espinhoso e entrelaçasse com eles uma coroa de espinhos, alegando que fora
daquela árvore que fizeram a coroa com que foi coroado o Cristo. Estava
garantida a relíquia sagrada com a qual ele presentearia sua tia rica.
Certamente
fora por essas referências profanas àquilo que era, e ainda é, considerado tão
sagrado por alguns, que esse romance acabou por entrar na listagem do Index
Librorum Prohibitorum, o índice de livros proibidos mantido pelo Vaticano até a
data de hoje. Apesar de que, em 1966, a proibição terminou. Hoje esses livros
são apenas não recomendados ao bom seguidor das doutrinas católicas.
Referências bibliográficas
QUEIRÓS, Eça de.
A Relíquia. São Paulo: Publifolha, 1997.
Site da Asociación
Almude de Valencia. Disponível em: . Acesso em:
06/03/2015
Welton Pereira e Silva é
mestrando em Letras: Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Viçosa
(MG). Cursou Letras: Português e Literatura também na UFV e se licenciou em
Português na Universidade de Coimbra, em Portugal. Trabalha com a Análise do
Discurso, mas seu lado crítico literário persiste em continuar.
0 comentários:
Postar um comentário
Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.