sábado, 14 de março de 2015

A Relíquia de Eça de Queirós: entre o Sagrado e o Profano

Nessa semana o Espaço do Leitor apresenta um ensaio de  Welton Pereira Silva, que analisa o romance A Relíquia, de Eça de Queiroz.




A Relíquia de Eça de Queirós: entre o Sagrado e o Profano

A Relíquia, de Eça de Queirós, é um romance que possui a típica denúncia social realista. Nas páginas dessa obra, o autor português narra as peripécias de Teodorico Raposo, um rapaz que passa a viver com uma tia, a Titi, uma senhora muito beata e, principalmente, rica. Para fazer com que a velha senhora lhe tenha em graças e lhe atribua sua herança, Raposão resolve fazer uma viagem à Terra Santa para representar sua tia nas indulgências necessárias a um bom católico para ganhar os Reinos dos Céus. Como Dona Maria do Patrocínio, a Titi, não tinha condições de efetuar por si só a santa viagem, seu sobrinho, muito solícito, resolve fazer a peregrinação em seu nome.


Nesse ponto é interessante observarmos a onomástica, os nomes, dos personagens principais, afinal, Teodorico Raposo, o Raposão, é esperto e oportunista como uma raposa, enquanto sua tia, Maria do Patrocínio, serve justamente para isso: patrocinar a viagem à Terra Santa.
Para que sua tia custeasse a sua viagem, e deixasse para ele sua herança, Raposão se passa por um devoto convicto. O que na verdade era apenas uma fachada, como podemos observar em várias partes da obra, que é narrada pelo protagonista em primeira pessoa. Observe, por exemplo, o trecho no qual Teodorico, enquanto rezava uma Ave Maria, se recorda da bela “inglesa do senhor barão”:

Era a inglesa do senhor barão. No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das seges, eu pensava nela, rezando Ave-Marias. Nunca roçara corpo tão belo, de um perfume tão penetrante; ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas claras... (p. 05)

Durante o ato sagrado da oração dedicada à Virgem Maria, Raposão se vê imerso em uma lembrança pecaminosa que o faz desejar a mulher do próximo. Como se não bastasse, sua falta de atenção à oração faz com que ele passe a dedicar as características que os fieis evocam a respeito da Virgem à inglesa do senhor barão, dedicando a ela os atributos “cheia de graça” e “bendita entre as mulheres”.


Em outra passagem, a libertinagem profana do protagonista se mostra ainda mais saliente, já que a própria imagem do Cristo na cruz evoca em Teodorico mais alguns pensamentos pecaminosos:

À noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor de carne, quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se lascivos anéis de cabelos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos, dous esplêndidos seios de mulher, com um botãozinho de rosa na ponta; e era ela, a minha Adélia, que assim estava no alto da cruz, nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!
Eu não via nisto uma tentação do demônio; antes me parecia uma graça do Senhor. (p. 26)

Acontece, nessa parte, uma verdadeira metamorfose a partir da qual a própria imagem sagrada se converte no objeto de desejo por parte do protagonista. O ápice profano da visão praticamente alucinatória tida por Teodorico é a conclusão à qual ele chega de que aquela cena, que lhe afastava da contemplação sagrada, era uma graça de Deus e não um ardil do Demônio. Dessa forma, o Sagrado e o Profano parecem se mesclar na mente do protagonista, que não vê pecado em seu desejo, mas vê sua alucinação como uma dádiva divina.


O romance prossegue com outras muitas referências sarcásticas em relação ao catolicismo, chegando ao cume quando o protagonista faz com que seu companheiro de viagem, o arqueólogo Topsius, arrancasse alguns galhos de um arbusto espinhoso e entrelaçasse com eles uma coroa de espinhos, alegando que fora daquela árvore que fizeram a coroa com que foi coroado o Cristo. Estava garantida a relíquia sagrada com a qual ele presentearia sua tia rica.
Certamente fora por essas referências profanas àquilo que era, e ainda é, considerado tão sagrado por alguns, que esse romance acabou por entrar na listagem do Index Librorum Prohibitorum, o índice de livros proibidos mantido pelo Vaticano até a data de hoje. Apesar de que, em 1966, a proibição terminou. Hoje esses livros são apenas não recomendados ao bom seguidor das doutrinas católicas.

Referências bibliográficas
QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. São Paulo: Publifolha, 1997.

Site da Asociación Almude de Valencia. Disponível em: . Acesso em: 06/03/2015




Welton Pereira e Silva é mestrando em Letras: Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Viçosa (MG). Cursou Letras: Português e Literatura também na UFV e se licenciou em Português na Universidade de Coimbra, em Portugal. Trabalha com a Análise do Discurso, mas seu lado crítico literário persiste em continuar. 




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