domingo, 23 de abril de 2017

A IDEOLOGIA DAS ÁGUAS BASTARDAS



Reconhecidamente, o debate sobre os sistemas de dominação é marcado por um claro predomínio de matrizes teóricas oriundas da geografia, história, sociologia e ciência política, fato patente nas análises da ideologia.

Contudo, sendo o autor deste texto um antropólogo que agrega a essa condição a de ser orgulhosamente um investigador que seguidamente assume o espaço, o tempo e a materialidade social - vale dizer, a geografia, a história e as ciências sociais - no corpo das análises que desenvolve, seria indispensável anotar o quanto as lacunas e silêncios pertinentes aos motes culturais da dominação são infelizmente notórias e recorrentes.

Trata-se de uma omissão que, ao menos na opinião deste colunista, compromete uma compreensão mais ampla e profunda das relações de poder, que frequentemente recorrem à dimensão da cultura para fazer valer o exercício do mando e da submissão.

Neste sentido, anote-se que as manifestações culturais, respondendo às necessidades objetivas de reprodução dos modelos de dominação, fazem com que as análises tenham por pressuposto não um saber antropológico difuso e abstrato, porém mais precisamente uma antropologia política.

Tal como sabiamente sentenciou o antropólogo Georges Balandier, o poder não se distingue apenas pela apropriação do espaço, sujeição de povos ou grupos étnicos e sociais, mas em igual medida, pela manipulação de signos, símbolos, conceitos e padrões de percepção, alçados, pois à condição de instrumentos voltados à submissão do homem pelo homem.

Na sequência, os fatos do poder, para além pressuporem a subordinação do espaço, a irrupção de clivagens econômicas, de dessimetrias políticas e a estratificação de enquadramentos sociais, enveredam fortemente na modelagem do universo cultural.

No plano da percepção, esta propensão nunca se distancia de um léxico excludente, empossado de declinações contraditórias quanto ao relacionamento com a esfera do natural, por meio do qual são firmadas estacas ontológicas legitimadoras de uma soberania que se impõe à revelia de tudo e de todos.

Assim, as prefigurações culturais podem se tornar um requisito poderoso a pavimentar codificações discriminatórias, nas quais auferem legitimidade heterogêneo conjunto de fabulações, via de regra baseadas em hierarquias biológicas e/ou de fundo racial.

Neste recorte se insere florido repertório de fabulações ideológicas imputando ao natural as mazelas da inferioridade racial inata, empapadas de um regime de estereotipias que afetam, como é o tema declarado deste artigo, a percepção cultural da água, ou melhor, das águas copiosas e abundantes.

Dentre estas figuram teorias atualmente pouco lembradas, dentre as quais as relativas à noção de inferioridade racial dos euro-americanos, postulando que a população de origem europeia secularmente assentada no novo continente teria sido alvo de um abastardamento biológico induzido pelas influências ecológicas presentes na América.

Carimbada de modo mais sofisticado como tese da degenerescência americana, esta inquietante formulação foi fruto das especulações do naturalista francês George Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788).

Para este cientista, a existência na América de um grande capital hídrico, maximizado pela transpiração de prodigiosa cobertura florestal, seria vetor de exalações úmidas nocivas, origem de miasmas que afetariam psicológica, intelectual e moralmente os euro-descendentes, tolhendo-os de empreendedorismo, senso ético e inventividade.

Note-se que esta “teoria hidráulica” firmava-se em crenças muito corriqueiras na mentalidade europeia quanto aos perigos oferecidos pelas paisagens naturais do novo mundo, fundamentando com base num determinismo geográfico as doutrinas de inferioridade racial adquirida das pessoas que viviam em ambientes úmidos.

Isto posto, embora Buffon nunca tenha predicado que a degeneração afetasse os europeus que se deslocaram para a América, outros pensadores, mais notoriamente o religioso francês Guilherme Thomas François Raynal, ou sinteticamente Abade Raynal (Figura 1), passaram a incluir nesta agenda os americanos brancos.


FIGURA 1: Guilherme Thomas François Raynal (1713-1796), em xilogravura do ano de 1780 (https://www.flickr.com/photos/internetarchivebookimages/14777190352/)

De acordo com o sisudo abade, os europeus na América não tinham como escapar da mutilação intelectual provocada pela onipresença da água no novo mundo. Logo, as elites brancas americanas não teriam como prosperar intelectual e economicamente, sendo por tabela, incapazes de autodeterminação.
Sendo assim, nas Américas coexistiriam grupos tidos como intrinsecamente inferiores - índios, afro-descendentes e mestiços -, e populações tornadas racialmente bastardas pela inclemência de um ambiente marcado pela fartura de rios e intensa pluviometria, no caso, os euro-descendentes.


Curiosamente, interessa anotar que este “imaginário ecológico” é desdobramento direto e contraditório de uma vetorialização típica da inculturação hegemônica do ocidente, cujo nexo fundante repousa no prestígio da esfera do racional e da contradição com a natureza.


Sublinhe-se que esta ideação foi a que expurgou, por meio da artificialização do espaço, tudo o que não condizia com a auto-imagem cultivada pela Europa, que apaixonadamente atribuía ao imaginário tradicional a articulação de sociedades que desafiavam pressupostos entendidos como matriciais ao olhar ocidental.


Com base nesta leitura do mundo da tradição, em primeiríssimo lugar a ciência ocidental demoliu no solo europeu todo o percepcionamento espacial medieval, eivado por conotações que passaram a ser catalogadas como arcaicas, ingênuas e supersticiosas.


Por esta via, dentre as acepções condenadas ao ostracismo científico constavam ideações maravilhosas como a explicação ptolomaica do universo, com uma Terra plana alojada em seu centro; o entendimento de que Jerusalém estaria situada no centro do mundo e em decorrência disto, do próprio universo; a crença em toda sorte de bestas e animais aberrantes, importados de uma biologia fantástica e que constavam inclusive nos mapas medievais.


De mais a mais, também foram descartados reinos e continentes oriundos dos mitos nórdicos, celtas, eslavos, gregos e romanos: Thule, Avalon, Baltia, Hiperbórea e Atlântis. Juntamente com estas terras, foram abduzidas criaturas extravagantes como sátiros, serpentes marinhas, grifos, basiliscos, a ave roc, as harpias, o odradec, unicórnios, salamandras e os antílopes de seis patas.


Na esteira desta desmitologização das mentalidades, foram suprimidas concepções mágicas relativas aos ventos, às mares, aos vulcões, terremotos e tufões; a crença de que o espaço habitado coexistiria com o Jardim do Éden ou com reinos imaginários como o de Prestes João, país ficcional que teimava em persistir nos mapas europeus para além da metade do Século XVI, como no famoso Atlas de 1565 confeccionado por Diogo Homem, eminente cartógrafo português.


Todos estes seres e territórios terminaram inapelavelmente empurrados para uma reserva imaginária do natural, pois passaram a ser entendidos como incompatíveis com uma diretriz racionalizante de mundo, adversária do que era julgado como mítico, emotivo e natural.


Todavia, se as mitologias do mundo tradicional foram desprezadas em nome de um saber científico, apegado à transformação radical da natureza e afeito a considerações de ordem prática, crispações de ordem econômica, política e social ensejaram a gestação de uma nova Weltanschauung , tão carregada de superstições quanto os modelos de percepção de mundo das sociedades que o ocidente destruiu e subjugou na sua marcha implacável pela dominação global.


Desta maneira, na Ibero-américa os colonizadores portugueses e espanhóis não hesitaram em apelar para o mesmo fundo não-racional que nunca fora inteiramente desmantelado na mentalidade e no senso comum europeu para recriar uma nova ideologia de dominação, agora “cientificamente” fundamentada nas águas.


Na América Espanhola, a dominação colonial recorreu às quimeras hídricas de Raynal para, por exemplo, justificar a subalternidade da aristocracia rural à corte madrilenha e na mesma ordem de considerações, respaldar o comando metropolitano como sendo a única opção para impedir o triunfo da selvageria e do caos.


No Brasil, embora tais objeções ideológicas não fossem comuns na caracterização das classes dominantes locais, estas se imiscuíram com incisividade na produção intelectual brasileira na aferição do meio ambiente nacional, que como se sabe, reúne a maior reserva de água doce do mundo.


Objeções com esta índole são mais do que evidentes, por exemplo, na obra de Viana Moog, para quem as águas fartas do Rio Amazonas constituiriam um problema, agravado ainda mais em razão do fluxo fluvial “correr errado”. Isto é: ao longo do Equador, acometido por uma perpétua incidência dos raios do Sol, que catalisando intensa evaporação, promovia uma nebulização maléfica carregada dos inevitáveis miasmas debilitantes do vapor d’água.


Esta noção transparece também na famosa expressão Inferno verde, título de livro emblemático do engenheiro e escritor Alberto Rangel (Figura 2), obra carregada de óbices quanto ao ambiente amazônico, observado como uma natureza difícil e aquática, dominado pela lassidão e pela maleita, esmagando o homem e expurgando sua capacidade criativa.

FIGURA 2: Capa original de Inferno Verde: Cenas e Cenários do Amazonas

Retenha-se que este livro foi prefaciado por ninguém menos que o icônico Euclides da Cunha, intelectual que para conferir foi autor de A Margem da História, livro cuja narrativa está calçada na visão de um “império das águas”, uma “esponja molhada” a persistentemente apagar os traços que o homem com muita dificuldade procurava agregar à natureza bruta.


Tudo isso reforça um sentimento de bastardia que a psicóloga Marina Duran, em uma brilhante tese de doutorado observa aguçadamente como elemento reincidente na psicologia nacional brasileira.


Enquanto tal, este recalque fragilizou a formação de uma auto-imagem positivada, marcada que está a ferro em brasa com o estigma da ilegitimidade, por extensão propensa a imitar modelos estrangeiros, incensar conceitos importados e negar os incomparáveis talentos naturais do país.


Contudo, se é verdade que cultura pode se tornar um instrumento a serviço do afazer ideológico sublinhe-se que a liberdade possui do mesmo modo uma geografia, um espaço indevassável que pulsa nos recônditos da cultura.


Que então, com toda determinação possível, façamos uma revisão do que permitiria ao País das Muitas Águas, tal como definiu Pero Vaz de Caminha, a trilhar um novo projeto de país, de uma nação em matrimônio sagrado consigo mesma e com suas primorosas, colossais e promissoras reservas de água.


Um passo importante na construção de uma identidade nacional soberana, orgulhosa de suas potencialidades, que tem na positivação das águas e da natureza um marco fundamental para alicerçar novos projetos de vida.

TÍTULOS DO MESMO AUTOR LANÇADOS EM 2016 PELA EDITORA KOTEV COM TEMÁTICAS RELACIONADAS COM ESTE ARTIGO:


Cartografias do Racismo: Arquétipos, Fantasmas e Espelhos.


Cartografias do Racismo: Imaginário, Espaço e Discriminação Racial.


América latina: A Independência Inacabada


Hegemonia Ocidental: Processo Cultural, Histórico e Social


BIBLIOGRAFIA


BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo (SP): Difusão Européia do Livro (DIFEL) e Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP). 1969;


CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el-rei Dom Manuel sobre o Achamento do Brasil. Lisboa (Portugal): coedição Imprensa Nacional e  Casa da Moeda. 1974;


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CUNHA, Euclides da. À Margem da História. São Paulo (SP): Editora Cultrix. 1975;


DURAN, Marina. O Medo e os Vínculos Sociais no Brasil. 2005. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005;


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GOUREVITCH, Aron Yakovlevich. O Tempo como problema de História Cultural. In: UNESCO. As Culturas e o Tempo. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUSP, 1975;


MOOG, Clodomir Viana. Bandeirantes e Pioneiros: Paralelo entre culturas. 10ª edição. Porto Alegre e Brasília (RS-DF): Editor Globo e Instituto Nacional do Livro (Ministério da Educação e Cultura). 1973;


RANGEL, Alberto. Inferno Verde - Cenas e Cenários do Amazonas. 5ª ed. Manaus (Amazonas): coedição Valer e Governo do Estado do Amazonas. 2001;


TUAN, Yi Fu. Topofilia - Um Estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. São Paulo (SP): Difusão Européia do Livro (DIFEL). 1990;


WALDMAN, Maurício. Cartografias do Racismo: Arquétipos, Fantasmas e Espelhos. Antropologia: Coleção Temas Contemporâneos, nº 2. São Paulo (SP): Editora Kotev. Plataforma Kobo: https://www.kobo.com/br/pt/ebook/cartografias-do-racismo-arquetipos-fantasmas-e-espelhos . 2016a;


__________. Cartografias do Racismo: Imaginário, Espaço e Discriminação Racial. Antropologia: Coleção Temas Contemporâneos, nº. 1. São Paulo (SP): Editora Kotev. Plataforma Kobo: https://www.kobo.com/br/pt/ebook/cartografias-do-racismo-imaginario-discriminacao-racial-e-espaco  . 2016b;


__________. América latina: A Independência Inacabada. História: Coleção Educação Popular - Textos de Apoio nº. 3. São Paulo (SP): Editora Kotev.  Plataforma Kobo: https://www.kobo.com/br/pt/ebook/america-latina-1 . 2016c


__________. Hegemonia Ocidental: Processo Cultural, Histórico e Social. . História: Coleção Educação Popular - Textos de Apoio nº. 4. São Paulo (SP): Editora Kotev.  Plataforma Kobo: https://www.kobo.com/br/pt/ebook/hegemonia-ocidental . 2016d;


__________. Meio Ambiente & Antropologia. Série Meio Ambiente, nº. 6. São Paulo (SP): Editora do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). 2006;


__________. Metamorfoses do Espaço Imaginário: Um ensaio “topo-lógico” relativo ao universo da cultura, do espaço e do imaginário. 1997. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). São Paulo (SP): Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. 1997;


Senac, noite de autógrafos, 2016.

MAURÍCIO WALDMAN é antropólogo, consultor ambiental, jornalista, professor universitário e pesquisador.
















Outros dados sobre o autor:
Waldman é graduado em Sociologia (USP, 1982), mestre em Antropologia (USP, 1997), doutor em Geografia (USP, 2006), pós-doutor em Geociências (UNICAMP, 2011), pós-doutor em Relações Internacionais (USP, 2013) e pós-doutor em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015).


Em 2010, a partir de avaliação de pesquisadores dos EUA, Waldman integrou lista de 96 personalidades brasileiras de origem judaica, publicada em Brazilian Jews (Books LLC, USA: Memphis, Tennessee, 2010).


Maurício Waldman já colaborou com a mídia impressa em diversas modalidades. Foi colunista, articulista e/ou colaborador da Agência Ecumênica de Notícias, do jornal Diário do Grande ABC, Folha de São Paulo (Seção do Grande ABC), revista Tempo & Presença, site da Editora Cortez, boletim Linha Direta, revista Teoria & Debate, revista Ambiente Urbano, site do Prof Assessoria em Educação, site Cultura Verde,  Secretaria de Comunicação de São Bernardo do Campo, jornal O Imparcial e da revista Brasil-África Magazine. 


Maurício Waldman atuou durante dez anos como professor-convidado no Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP) e em muitos cursos de capacitação no temário étnico e racial em secretaria de educação de todo o país.


Trabalha desde os anos 1990 em linhas de pesquisa relacionadas a questões raciais, conceitualmente discutidas no bojo de uma antropologia topológica, vertente da disciplina centrada na percepção cultural do espaço-tempo.


Autor de 17 livros e 600 artigos, papers e pareceres de consultoria, Waldman é autor de Meio Ambiente & Antropologia (Editora SENAC, 2006), obra de referência no campo da antropologia social e ambiental.


MAIS INFORMAÇÕES:


Plataforma Lattes-CNPq: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474


Portal do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br 


Biografia Wikipédia (English): http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman




E-Mail: mw@mw.pro.br


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