terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Menos muros, mais pontes


Estados Unidos, 1957. As bruxas da Guerra Fria todas soltas. Enquanto os americanos temem um ataque nuclear no quintal de casa e a possibilidade de suas crianças virarem comida de comunista, o advogado especializado em seguros James B. Donovan (Tom Hanks) é convocado por Washington para defender – pró-forma – o espião russo recém-capturado Rudolf Abel (Mark Rylance).

Essa é a história real que Steven Spielberg resgata em Ponte dos espiões – um filme em que o cineasta expõe não só a hipocrisia de uma nação que se diz democrática (e é capaz de promover um julgamento apenas para manter as aparências), mas também a estupidez de um governo que não percebe que executar seu prisioneiro significa desperdiçar uma valiosa moeda de troca.

Pena que a coragem temática do diretor resvale na sua eventual falta de sutileza: o momento em que Donovan discursa na Suprema Corte não carecia de tanta música e montagem – a interpolação entre a fala do advogado e a decolagem do piloto Francis Gary Powers (Austin Stowell) rumo à sua missão na União Soviética é usada tão somente para reiterar aos berros o heroísmo do primeiro.

Pa-ra-quê? Pa-ra-quem? Que espectador ainda não tinha reparado o quão capitão-américa era aquele homem comum que enfrentava o Sistema?

Sutileza, porém, não falta à atuação de Rylance. O ator interpreta Abel ciente de que a discrição deve ser o principal talento de qualquer espião. É especialmente simbólica a sequência, ainda no início do longa, em que ele desvia a atenção dos agentes do FBI – para uma dentadura inclusive – enquanto literalmente apaga um arquivo importante. Certeza de que outro James (não o Donovan) o aplaudiria de pé.

Merece aplausos também o humor com que os irmãos Coen adoçam o roteiro: o Nescafé com dois torrões de açúcar e creme, oferecido ao personagem de Hanks assim que o advogado põe as digitais na CIA, é uma forma divertida e elegante de mostrar que a agência sabe tudo sobre ele. Outra piada bastante eficaz é a que brinca com os nomes enooooormes das nações socialistas.

Mais do que eficazes – inspiradíssimas – são algumas transições entre cenas, como a passagem que começa no tribunal (com o juiz pedindo que o público fique de pé) e termina na escola (com as crianças levantando para um juramento à pátria), ou a que se inicia no hangar onde os pilotos conhecem certo avião e acaba na mesa onde estão os objetos apreendidos no apartamento de Abel.

Esses links (os raccords, como me ensinou Pablo Villaça) reverberam ainda mais numa história em que pontes superam muros, seja o de Berlim – que Donovan é obrigado a atravessar para negociar a troca entre Abel e Powers, detido pelos russos –, seja o do ódio – erguido pelos americanos ao constatarem que o advogado faria o que estivesse ao alcance da lei para defender seu cliente.

Um dos raros seres pensantes do lado ianque (justamente por se manter imune à paranoia inoculada em seus compatriotas), o protagonista se converte na ponte a que o título se refere. Tal metáfora ganha forma na última tela que Abel pinta e com a qual presenteia Donovan – uma tela que rima à perfeição com a da ponte do Brooklyn, retocada pelo espião ainda nos primeiros minutos do filme.

Em tempos de fronteiras ainda mais fechadas – e não falo apenas das cercas construídas por aqueles países avessos a refugiados ou imigrantes, mas em especial dos tapumes que tantos têm colocado nas próprias mentes –, nada mais oportuno do que recuperar a aventura de um sujeito que usou a inteligência e o diálogo como as únicas armas possíveis contra a ignorância e o medo.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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