Falta de amor? Eu acho que não!


Por Yone Ramos Marques de Oliveira





Eu gosto de falar do século XX e ele aparece em praticamente todos meus artigos. Confesso minha paixão pelo século em que nasci porque acredito que esse século represente o marco da evolução da espécie humana (não que isso seja algo positivo). E é isso que me fascina: saber que se eu tivesse nascido em uma época diferente, eu não seria testemunha de um tempo tão grandioso. Por isso eu vou falar dele outra vez! Não vou falar de um assunto novo, muito pelo contrário: é um assunto que está bombando e todo mundo quer entender!

Talvez não para o mundo "cult", mas existe uma vasta literatura vendendo igual "pão francês" em diversas livrarias do país. E eu, que as vezes recebi essa denominação, não vou julgar ninguém, afinal, também já recorri a esse tipo de literatura após as decepções e ilusões da vida amorosa! Sim, refiro-me aos livros de auto-ajuda sobre as relações conjugais - que na verdade são livros de "ajuda" como ressaltou a personagem "Carlota Joaquina" da Terça Insana. São os mais diversos títulos, desde "Homens gostam de mulheres que gostam de si mesmas" até o científico "Como fazer qualquer pessoa se apaixonar por você" de Leil Lowndes, que comprova cientificamente como conquistar o amor da pessoa amada através de truques que fazem o cérebro liberar feni... (eu sempre preciso consultar esse nominho) feniletilamina, dopamina e a norepinefrina, substâncias do amor! A autora do livro até considera o caso como um verdadeiro ato instintivo de caça! Só vale ressaltar que, apesar de "comprovadamente científico", por vezes a autora do livro confessa sua solteirice durante as páginas, o que coloca em cheque seu argumento! Além desse, vários: "Porque os homens amam as mulheres poderosas?"; "Faça o amor valer a pena"; "Porque as mulheres amam os homens fortes?"; "Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor", enfim... conselhos amorosos não faltam!


Mas para quem está fugindo das liquidações, não apenas nas livrarias: existem autores engajados no assunto também no mundo virtual como é o caso de Martha Medeiros, Arnaldo Jabor e Luís Fernando Veríssimo. Vários textos circulando diariamente na internet falando sobre amor, traição, relacionamento e todo esse papo! E nós, leitores ávidos, sempre encontramos um tempinho para lê-los até o fim! A verdade é que, apesar de toda a mudança na conjectura social a respeito de relacionamentos e as críticas sobre a "banalização do amor", o ser humano é um ser social e é um ser que se relaciona. E relacionamento, sabe bem a Sociologia, não se trata obviamente de relação conjugal, mas de uma gama de aspectos da convivência humana, e esses aspectos são refletores de uma forma de pensar, de uma cultura, um grupo, uma sociedade.

Desde a antiguidade, existem diversos textos que abordam o ser humano como um ser de relações, e com a sistematização da sociologia, temos textos para todos gostos (ainda bem!). Não sou socióloga e nem vou me atrever a permear por esse campo, mas confesso que alguns autores como Marcel Mauss, Clifford Geertz, Leandro Konder e Irving Goffman serviram de guia para meus pensamentos atuais e não só sociólogos, mas também historiadores e filósofos. Pasmem: até Hanna Arendt (que não diz respeito a relações conjugais), em sua exposição sobre a Condição Humana de ser político e ser social, contribuiu para meu entendimento de relacionamento hoje. E daí, ligando os pensamentos, buscando entender o ser humano integral, comecei a entender melhor as mudanças dessa sociedade,até chegar no objetivo desse texto que é abordar panoramicamente as mudanças das relações sociais e principalmente conjugais que aconteceram nos últimos anos.

Desmistificando a idéia de que o amor acabou, que nossa sociedade é fria e robótica, vou recorrer à história para repensar os fatos. O amor não acabou e o sexo não se tornou mais importante! Há sim, culturalmente falando, uma mudança nos padrões de comportamento que vieram junto com a idéia de democratização. Além do sexo, muitas transformações aconteceram na sociedade globalizada a respeito da forma de se relacionar e elas estão envoltas de todas as outras transformações do período: tecnológicas, políticas, econômicas. No século XX o mundo mudou. Porém, não foi o sentimento humano que mudou, mas a cultura de amar, nas mais diversas sociedades.

Se antigamente, os casamentos eram, ou deveriam ser, para a vida toda - isso considerando as sociedades não poligâmicas e que consideravam o matrimônio algo sagrado, pois é claro não há uniformidade e eu não posso abordar toda as sociedades da história em apenas um texto - hoje, "ninguém é de ninguém"! Mas será que se tratando do ser humano é correto afirmar que algo mudou? Meditei muito e cheguei à conclusão de que essa situação do "ficar", que é peculiar do nosso século, especificamente das 2 últimas décadas (uma idéia não tão nova para alguns movimentos dos anos 60), não é algo novo. Na História, tivemos diversas estruturas que permitiam esse tipo de relação e outras que não permitiam, o que não significa que isso não acontecia (textos como a Bíblia, textos sobre os escândalos da nobreza da Idade Média e Moderna, e até Gilberto Freire sobre o Brasil Colonial servem como prova do que estou dizendo, alías, a inquisição que o diga!). Porém, há ainda, tudo que não ficou registrado e que aconteceu por baixo dos panos (literalmente). Mas há algo de importante acontecendo: "o ficar" se tornou um padrão cultural, deixou de ser um paradigma para se tornar uma característica. E vejo que isso é na verdade, a mais plena indicação de liberdade humana e não da falta de amor, e não estou dizendo que isso é necessariamente bom! Antes dessa transformação, se as mulheres eram submissas aos seus maridos e o divórcio, pelo menos nas sociedades influenciadas pela cultura cristã, era tido como pecado, e portanto um estigma: nem sempre as pessoas estavam juntas por amor, mas sim pela coerção social! Então as estatísticas sobre divórcio não pode servir de parâmetro. Se hoje existem poucos relacionamentos duráveis, poucos romances, é porque hoje as pessoas apenas são mais livres e sinceras. Mas uma coisa é fato: senão todos, praticamente todos estão em busca de encontrarem "a outra metade da laranja" e até o mais duro coração (lembrem-se de Hittler), alguma vez na vida já balançou por amor!










Yone Ramos Marques de Oliveira, teóloga e historiadora, escreve aos sábados, quinzenalmente no ContemporARTES.
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“Caso sério” e o trágico amor que teima em (en) lutar


“Caso sério”, peça do ator, diretor e dramaturgo Cláudio Simões é uma peça do seu tempo, um pastiche da dramaturgia de casal tão pródiga no Brasil. Ela é intertextual e, para lê-la, é preciso conhecer outros textos. E outros sons. Estão lá como Vianinha, Leilah Assumpção, Maria Adelaide Amaral, Arnaldo Jabor, Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa e tantos outros.

É do seu tempo, também, porque tenciona revelar as fragmentações pelas quais a sociedade pós-moderna e, especificamente, o individuo passa nesses últimos 30 anos. Sobre Rodrigo e Cecília, as personagens dessa história, não cabem certezas ou centros de segurança, eles começam a experimentar a angústia existencial e viver uma profunda crise numa ruptura definitiva com a possibilidade de uma identidade essencial, coesa, fixa, imaculada, permanente.

“Caso sério” é uma história de amor entre dois amigos que nasce a partir das catástrofes amorosas que cada qual traz à sala de espera de um consultório de psicanálise. Nessa sala, parecem entender que num mundo em que as possibilidades românticas, sob medida para o líquido cenário da vida moderna, surgem e desaparecem numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, importante perceber como o homem contemporâneo, confirmando as palavras de Bauman, consegue extrair a experiência do fato e, mostrar, à luz da pós-modernidade que o amor pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante como a morte.

No livro do theco Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, a personagem Teresa não suportando mais a situação de infidelidade de Tomás, decide partir deixando-lhe um bilhete no qual revela não ser suficientemente forte para aceitar (suportar, sustentar) a leveza do seu (dele) amor.


Amar pesadamente (como Teresa) nos torna fracos, suscetíveis a tudo, frágeis, ficamos à mercê do outro, do que ele faz, do que ele diz, do que ele não faz, não diz. Sempre ele, sempre! Como Barthes, somos raptados, capturados, aprisionados pelo outro, pela sua imagem (a imagem do amor), ainda que sejamos nós (eu), o sujeito que ama, o raptor, o que partiu para a conquista, para a captura. Curiosa inversão: “é o objeto raptado que é o verdadeiro sujeito do rapto; o objeto da captura se torna o sujeito do amor; e o sujeito da conquista passa ao posto de objeto amado” (BARTHES: 1991, 163).

Ao amarmos de forma pesada, transformamos o outro num signo pesado, isto é, pleno (cheio, denso, transbordante) de significados. Qualquer atitude, fala ou gesto seu está prenhe de sentidos, e cabe àquele que ama interpretar ou decifrar. Transformamo-nos, então, em hermeneutas, filólogos, obstinados interpretes! E o pior: todos os signos que o outro emite são, por natureza, signos de incerteza, de ambigüidade, e até mesmo falsos. Por isso, aquele que ama pesadamente é um atormentado, não conhece a paz a não ser momentaneamente, quando acredita (quer dizer: se ilude) ter decifrado alguma coisa ou quando renuncia a toda interpretação (Barthes), aceitando tudo do outro como sendo verdadeiro.

“É curioso o que acontece comigo, te amar assim dessa maneira, desesperado - eu que sempre amei levemente!”. Assim poderia falar um apaixonado (com alguma leitura, pelo visto), reconhecendo em si, no seu amor, a inevitável mutação amorosa, a passagem do leve para o pesado.

Somos pesados quando queremos possuir, reter o outro a qualquer custo, quando somos “donatários de capitanias”, quando não partilhamos, não dividimos; somos leves quando, ao contrário, compartilhamos, dividimos, deixamos o outro voar, partir, fugir, seguir para onde. Seria impossível mesmo crer o amor sem essa dialética, essa tensão permanente entre o denso e o suave?

A partir desta perspectiva, podemos pensar essa tensão dialética, essa relação entre peso e leveza, como duas formas constitutivas de cartografia amorosa, duas maneiras de amar, dois modos de constituir “territórios amorosos”.

A primeira relação, pesada e possessiva, funciona como uma espécie de “máquina simbiótica”. É aquela relação que diz assim: “sem você, meu amor, eu sou ninguém”, “você é minha vida”. A nossa literatura musical, do brega à MPB mais elaborada esteticamente, expressa em demasia este tipo de relação. Vinícius de Moraes, por exemplo. Este tipo de relação constitui territórios amorosos cujas fronteiras são muito bem vigiadas pelo ciúme, guardião do amor, cujas fronteiras não podem ser ultrapassadas sem uma espécie de salvo-conduto do outro, salvo-conduto temporário, que o obriga a voltar novamente, pois “cada volta tua há de apagar o que esta tua ausência me causou”. Este amor nunca pode transitar livremente; há uma espécie de geopolítica amorosa que o limita: o arraigado familiarismo, a tentativa desesperada de constituir família, ou melhor, um tipo de território familiar: o da solidão a dois, a do “inferno entre quatro paredes”, pra usar uma expressão de Sartre. Este tipo de amor não é nem alado nem alante, pois não possui asas, tampouco é capaz de doá-las. Este tipo de amor leva inexoravelmente à morte, pois, aqui, quem ama mata.

A segunda relação, leve e transitiva, funciona como uma espécie de “máquina celibatária”. (Estes dois termos que eu utilizo: “máquinas simbióticas” e “máquinas celibatárias”, são de Félix Guattari e do Gilles Deleuze. Foram criados por eles para designar modos de constituição de territórios do desejo). É aquela relação que diz assim: “nada dura eternamente: o que amo já não amo mais”, “alguém quando parte é porque outro alguém vai chegar”. Este amor, ao contrário do outro, é extremamente livre, transita permanentemente, desterritorializa, é incapaz de constituir territórios amorosos; não quer, não deseja, não pode fazer isto. É o amor da aventura amorosa, sempre passageira. Amor-espaçonave: ora aqui, ora ali, ora alhures. Voa por todos os lugares, mas não se fixa em nenhum. Todos os lugares: nenhum lugar. Livre para voar, voar, mas incapaz de pousar com mais demora, pois, quando pousa, sua tendência é constituir, de novo, um território amoroso e simbiótico. Esta é a sua contradição: se continuar voando, voando, voando, acabará morrendo por exaustão, de cansaço. Se pousar e fixar território nos moldes simbióticos, morrerá do mesmo jeito, sufocado.

E agora? Se as nossas relações amorosas comportam estas duas cartografias, o amor, ao que parece, tende sempre para um irremediável fracasso, para a morte? Assistir a “Caso sério” foi assim, não que tenha gostado inteiramente da peça, não mesmo, mas saí dali assim, mais filósofo, pensando nesse tema, que é tão caro a rodo homem contemporâneo – e comum.


Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.
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À SOMBRA DO IN-UTENSÍLIO


Adeus vã guarda do século passado
Adeus Arte Contemporânea do milênio findo
Benvinda Rettaguarda do milênio vindouro
Uma paradinha nas novidades
para criar alguma coisa nova
Não dá pra ser vanguarda no começo. Vanguarda é pro fim,
agora é a retaguarda que é assim:
A vida camada por camada (layer sobre layer),
pintura pós photoshop, ao vivo.
Paisagem em tamanho natural. Natural size.
Sem linha do horizonte. Caos organizador do espaço profundo.
Organizated caos in a deep space?
Terras sobre telas. Pintura, agora um brinquedo coletivo.
Olhar de uma criança pendurada num galho de árvore,
olhando o chão com paixão.
COMOVER NOSSA TERRA. Arte pé-no-chão.

(Retta Rettamozo)


Resultado de oficinas de arte pelo Brasil e por que não, pelo mundo afora, o coordenador, inventor do método e ministrante Retta Rettamozo, apresenta o resultado de seu trabalho, “À sombra do IN-UTENSÍLIO” no Museu de Arte Contemporânea (MAC) em Curitiba, até o dia 25/04/2010.
Segundo Retta, essas oficinas de artes têm por objetivo envolver os participantes na observação atenta do chão que pisamos e que, na maioria das vezes, não percebemos quão rico ele é.
A partir daí, com a delicadeza deste olhar, os participantes são convidados a transportar para a tela tudo o que foi observado, desde marcas de pneus de bicicleta, folhas, formigas, grama, sombras.
Tudo é visto de cima, mas com um olhar microscópico, quase detalhista.
Como material, além das tintas, colas e telas, é utilizada a terra do local onde se desenvolve o projeto.
É ensinado aos participantes como fazer tinta com terra, através de um método divertido, curioso e criativo.
Depois, são feitas pinturas por camadas sobre a terra pintada na tela, possibilitando a participação coletiva e simultânea na criação das telas.
Afinal, como dizia Paulo Leminski, “a arte é uma constante produção de inutensílios”.

Oficinas já realizadas: Museu Oscar Niemeyer ( do olho). Praia de Xangrilá, Pontal do Paraná, Ibaiti e Lapa. Mural no Colégio Medianeira em Curitiba. Exposições, na Galeria Experimenta nos Jardins em São Paulo, na Unesco em Atenas na Grécia, na prefeitura de Itajaí, no Sesc Agua Verde em Curitiba, no Sesc de Jaraguá do Sul, e atualmente no Museu de Arte Contemporânea do Paraná.





Izabel Liviski, Mestre em Sociologia na linha de Imagem e Conhecimento pela UFPR e consultora da Contemporâneos, escreve quinzenalmente às 5ªs. no ContemporARTES.
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Instituto Moreira Sales-RJ recebe acervo de José Ramos Tinhorão.



por Cícero Barbosa

Meu amigo José Ramos Tinhorão está de lançamento novo (três logo de cara: uma coletânea de artigos antigos inéditos, uma publicação inédita e uma biografia). Recebi esse texto do Jorge, editor do livro "Crítica cheia de graça". No final do mês vai ter uma festa com chorinho e tudo mais na livraria do Marciano, a aconchegante Metido a Sebo. Mostrando que um dos maiores pensadores sobre cultura popular continua na ativa. Tinhorão é bom porque é do povo!!!


Em evento de comemoração, crítico lança dois livros, participa de bate-papo e abre exposição com documentos raros sobre a história da música popular brasileira. Biografia do jornalista é lançada na mesma noite.


O Centro Cultural do ims-rj (r. Marquês de São Vicente, 476, Gávea) realiza, no dia 13 de abril, às 19h30, um evento que marca a chegada do acervo do jornalista e crítico José Ramos Tinhorão à Reserva Técnica Musical no Rio de Janeiro. O acervo, que passava pelo processo de catalogação na sede do imsem São Paulo desde 2001, é composto porcerca de 6,5 mil discos de 76 e 78 rpm, 6 mil discos de 33 rpm, fotos, filmes, scripts de rádio, cartazes, jornais, revistas, rolos de pianola, folhetos de cordel, press releases de gravadoras e uma biblioteca com mais de 14 mil obras especializadas na cultura popular urbana, tema central de toda sua obra. Até o final de 2010, todo o material será disponibilizado para consulta.


Na mesma noite, haverá a abertura de uma exposição com curadoria do próprio Tinhorão que ficará aberta ao público até dia16 de abril. A mostra tem o objetivo de ilustrar o que o jornalista define por acervo temático: um banco de informações documentais, literárias, iconográficas e sonoras capazes de atender à curiosidade ou busca de suporte para a compreensão da cultura popular urbana, a partir do século xvi.

Serão expostos os primeiro jornais e folhetos de modinha que se publicaram no Brasil, uma série de fotos raras e inéditas de compositores e cantores como Baiano, Getúlio Marinho, Pixinguinha, entre outros, além de fotos originais de Noel Rosa feitas em estúdio. Os visitantes também poderão conferir discos de samba anteriores ao famoso “Pelo telefone”, de Donga, o primeiro registro fonográfico de Carmen Miranda, “Não vá s’imbora”, e a mais rara gravação de Francisco Alves, “O pé de anjo”. Um dos destaques da exposição são as peças que mostram as facetas artísticas pouco conhecidas do pintor Di Cavalcanti, que também foi ilustrador de propagandas em revistas, chargista político da RevistaFon Fon, capista de livros de Manuel Bandeira e João do Rio e até letrista da música “Rabo de peixe”, uma parceria com Alcir Pires Vermelho em 1956.


Também será realizado um bate-papo com o jornalista sobre seu acervo, além do lançamento dos seguintes livros: A músicapopular que surge na era da revolução, de José Ramos Tinhorão (Editora 34), Crítica cheia de graça, de José Ramos Tinhorão (Empório do Livro) e Tinhorão, o legendário, de Elizabeth Lorenzotti (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).


Sobre José Ramos Tinhorão

Nasceu em Santos-sp, em 1928, e criou-se no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Em 1968, mudou-se para São Paulo, onde reside até hoje. É autor de uma extensa e diversificada obra sobre temas relacionados à música brasileira. Estudante da primeira turma de jornalismo do país, colaborava desde o primeiro ano, 1951, como repórter free-lancerda revista A Semana (Rio de Janeiro) e da Uairá (Curitiba). Em 1953, ingressou como jornalista profissional no extinto Diário Carioca. Cinco anos depois, passou para o Jornal do Brasil, onde acumulou as funções de redator e colaborador dos suplementos “Estudos Brasileiros” e “Caderno B”. Trabalhou também para os jornais Correio da Manhã, Jornal dos Sports, Última Hora e O Jornal; as revistas Singra, O Cruzeiro,Veja e Nova; e as televisões Excelsior, Globo, tve (rj) e Cultura (sp). Colaborou ainda com O Pasquim e as revistas Senhor, Visãoe Seleções, entre outras.



Saiba mais sobre as publicações:



Crítica cheia de graça – José Ramos Tinhorão (Empório do Livro)

Aos 82 anos, o crítico musical José Ramos Tinhorão revela nesta obra textos que foram proibidos durante a ditadura militar da década de 1970, pequenos estudos – “História da gafieira” – e entrevistas antológicas com personagens que se tornaram referência para a história da música no Brasil, como o sambista João da Baiana ou o produtor Ademar Casé, um dos pioneiros da rádio no nosso país. Só agora, em pleno século xxi, os leitores poderão descobrir a veia irônica – os textos sobre Chico Buarque, Gilberto Gil ou João Gilberto – e o pesquisador perspicaz dos fenômenos musicais brasileiros, além de encontrarem um estilo de falar sobre a música com desenvoltura e conhecimento. É o testemunho singular daquele que é considerado um dos mais importantes historiadores da mpb de todos os tempos.

Crítica cheia de graça

José Ramos Tinhorão

Empório do Livro

160 pp.

14 x 21 cm

9788586848124

R$ 43,00

A música popular que surge na era da revolução – José Ramos Tinhorão (Editora 34)

Foi no século xviii, em meio ao clima libertário da Revolução Francesa, que a música popular urbana eclodiu na França. Se nesse país o sentimento patriótico era fonte de inspiração para os novos gêneros musicais, em Portugal os acordes revolucionários que soavam no país próximo foram recebidos com receio e censura pelos governantes, e seriam as novidades originárias de suas colônias, sobretudo o Brasil, que garantiriam o entretenimento da população.

Dos teatros de feira ao cancan, dos batuques de negros ao lundu e à modinha, José Ramos Tinhorão traça um interessante percurso que evidencia o papel determinante da mescla de culturas – seja entre povo e elite, no caso francês, ou entre metrópole e colônia, no caso de Portugal –, para o florescimento das novas tendências musicais. Partindo como sempre de vasta pesquisa e análise minuciosa, o autor revela, neste A música popular que surge na era da revolução, uma faceta pouco abordada desta passagem crucial da história moderna – a estreita ligação entre a virada revolucionária e o advento da música popular urbana.

A música popular que surge na era da revolução

José Ramos Tinhorão

Editora 34

176 pp.

14 x 21 cm

isbn 978-85-7326-440-1

R$ 32,00



Tinhorão, o legendário – Elizabeth Lorenzotti (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo)

Escrito pela jornalista e escritora Elizabeth Lorenzotti para a coleção Imprensa em Pauta, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, o livro conta a trajetória única do jornalista que foi contratado como estagiário no extinto Diário Carioca, na década de 1950, como exímio escritor de textos-legendas – daí o apelido que lá ganhou –, suas passagens por inúmeras redações –Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Cruzeiro, tv Globo,Veja, entre outras –, sua transformação em crítico polêmico dempb, até seguir carreira como historiador da cultura urbana e se transformar em lenda urbana. O livro retrata os embates com o pessoal da Bossa Nova – que sempre comparou a um carro montado no Brasil, mas de origem norte-americana – de seu método, o materialismo dialético, e de sua persistente dedicação à pesquisa, que nunca recebeu financiamento. Também recorda o clima das antigas redações, povoadas por inesquecíveis nomes do jornalismo, com os quais conviveu. Como acentua Janio de Freitas na contracapa, seu colega e amigo desde oDiário Carioca: “uma pessoa singular, pela inteligência brilhante, pelo humor refinado, a cultura e a audácia intelectual, a coerência e o caráter”.

Tinhorão, o legendário

Elizabeth Lorenzotti

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

280 pp.

Falta tamanho

R$ 20,00


Recepção do acervo no ims-rj, lançamento dos livros, bate-papo e abertura da exposição:

13 de abril de 2010, das 19h30 às 22h.

Exposição: De 13 a 16 de abril de 2010

De quarta a sexta, das 13h às 18h30

Entrada franca.

Classificação livre.

Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro

Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea

Tel.: (0 xx 21) 3284-7400

www.ims.com.br

http://twitter.com/imoreirasalles


Cícero F. Barbosa Jr., mestrando em História pela PUC/SP, bacharelando em Letras pela USP, músico e artista, escreve às quartas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.

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SANDRA, ANTES E DEPOIS



por Carlos Bruni

O temporal acabado de cair fez descer a temperatura, coisa nem tão incomum assim em São Paulo num fim de dezembro, mas suficientemente incômoda para me fazer atravessar a rua até o bar defronte ao escritório, pensando num bom conhaque. Precisava de uma bebida que me compensasse da persistente chuvinha e depois de driblar pedestres apressados e auto-móveis imobilizados entrei, indo me sentar num lugar de onde podia observar através da grande janela a azáfama tragicômica daquelas pessoas na vã tentativa de fugir do ano se esvaindo.

A bebida pouco mexeu com meu estado de espírito, em nada parecido com o movi-mento do lado de fora do vidro ou mesmo ali dentro, onde risadas e conversas do tipo “tudo de bom no ano que vem” indicavam uma festa acontecendo, fazendo com que eu me esforças-se para ficar imune àquela aleivosia mascarada com rodadas infindáveis de chope e porções de fritas, atitude justificável, aliás, para alguém saído há menos de um ano de um casamento que até então se arrastava procurando por uma sobrevida.

Meus pensamentos foram interrompidos quando Sandra entrou no bar, quase sem ser notada em meio daquele bulício. Entre suas virtudes aparentes, incluía-se a de ser discreta em qualquer ambiente onde se apresentasse. Indo direto ao caixa pediu um maço de cigarros e enquanto aguardava pelo troco, correu os olhos ao redor parecendo explorar aquele terreno, contudo num visível cuidado de passar despercebida.

Nossos olhares se cruzaram e ela permitiu-se um leve sorriso, ao qual respondi com outro igual e levantando ligeiramente a taça de conhaque num cumprimento.

Enquanto Sandra guardava o troco em sua bolsa, fiquei a observá-la com um interesse indefinido. Na verdade, sua presença pouco chamava a atenção das pessoas além daquilo que lhe convinha, visto ser a secretária da presidência da empresa, levando-a também a vestir-se sempre de maneira sóbria mas elegante. Ali pelos quarenta, como eu, não obstante bonita e um certo charme, dificilmente passaria por uma femme fatale, daí não ser lá dentro motivo de comentários mais apimentados. Trabalhava um andar acima do meu, e nossos contatos eram marcados por assuntos profissionais; apenas ocasionalmente conversávamos sobre outras coisas, fosse no café dos funcionários no terceiro andar ou no elevador. Ao sair, entretanto, no lugar de seguir pelo caminho mais direto até a porta, enveredou por entre as mesas agora tomadas e parou perto de mim. Olhei-a surpreso e estupidamente calado. Foi ela quem falou primeiro:


— Parece que você está um tanto desanimado neste fim de ano.


Tratei de procurar alguma tranqüilidade e desfazer a impressão de desatenção:

— É verdade. Essas festas pouco me animam. — Sem conseguir raciocinar melhor, disse sem muita convicção: — Parei para um conhaque e passar o tempo. Pelo menos até essa chuvinha diminuir.

Sentindo-me idiota com essa conversa boba, percebi a necessidade de pelo menos dar mostras de educação:

— Não quer sentar-se?

Ela aceitou, não deixando de me surpreender. Até onde eu sabia, ninguém conseguira ou tentara algo induzindo-a a deslizes comprometedores. Talvez por isso, hesitei sobre o que fazer diante dessa situação incomum. Tratei então de oferecer-lhe um conhaque, aproveitando o pretexto do entardecer garoento .

Nova surpresa por aceitar. Chamei o garçom, pedi-lhe a bebida e uma outra para mim.

Abrindo a bolsa, ela pegou do maço de cigarros, abriu-o e colocou um nos lábios. Outra vez fiquei no papel de bobo, pois não tinha como acendê-lo. Sandra aliviou meu embaraço perguntando com delicadeza se me incomodaria por fumar, mas ao mesmo tempo pegando seu isqueiro.

Depois de uma tragada com visível prazer, jogou a cabeça para trás soprando a fumaça, fazendo-a subir em meio a tênue luz do ambiente já perdendo a claridade externa. As bebidas chegaram, ela pegou a sua e provou-a de olhos fechados como se estivesse experimentando do néctar dos deuses. No momento seguinte, voltou ao mundo terreno:

— Que estranha maneira de fechar o ano. A não ser que eu me engane, você está realmente desanimado.

Concordei, balançando a cabeça:

— Se não a conhecesse como secretária, diria que é psicóloga. Ou vidente. Matou a charada só de olhar para mim.

— Nem uma coisa, nem outra, sorriu levemente. Uma dedução, apenas.

— Você está certa, disse-lhe antes de tomar um pouco da bebida. — Tenho pouca vontade de festejar seja lá o que for. O ano está indo embora, mas o que irá mudar além de alguns dígitos no calendário? Dê uma olhada ao nosso redor, aqui dentro ou lá fora: na semana que vem, e na outra, e na outra, tudo continuará do mesmo jeito. Inclusive nós mesmos, concluí fazendo uma apologia do desânimo.

Outra vez o sorriso suave, mostrando-se compreensiva:

— Por experiência própria, devo concordar com você. Ainda assim, não há ninguém com quem repartir isso? Quero dizer, esse estado de espírito sendo dividido com alguém...

Tive de devolver-lhe o sorriso. Mesmo eu sendo pouco cavalheiro, Sandra conseguia me mostrar como as pessoas são surpreendentes. Pelo que conhecia dela, de ver ou ouvir falar, nunca esperaria uma conversa tomando esse rumo, até porque minha vida não era um segredo guardado a sete chaves. Por outro lado, sabia ser precipitado tirar qualquer ilação daquela pergunta jogada de forma quase displicente no ar, pois salvo engano maior, percebia-lhe a necessidade de conversar com alguém e, como eu, ainda tateava à procura das palavras certas. Assim pensando, conclui mal não haver em falar-lhe sobre meu visível desânimo, contar coisas de uma vida dissolvida num casamento medíocre, acabando por me levar até alguma mesa de bar de quando em vez.

Com os braços cruzados sobre a mesa permaneceu ouvindo e, eu diria, com interesse. Depois, pegou novamente da taça e após molhar os lábios com o líquido, ficou a olhá-lo. Seus olhos castanhos pareciam refletir a cor da bebida.

— Eu também tenho pouco para comemorar, comentou sem poder esconder alguma tristeza na voz. Você não estava de todo errado quando me julgou psicóloga. Contra a vonta-de de meu pai, vim para São Paulo tentar a USP e por quase dois anos fiz das tripas coração em trabalhinhos aqui e ali para manter meus sonhos. No fim, desisti e acabei indo parar nessa empresa. Felizmente, consegui me dar bem, mas... o mundo perdeu uma doutora. Como compensação, completou sorrindo agora de um jeito irônico, ganhou uma eficientíssima se-cretária executiva.

Devagar, tomou outro tantinho do conhaque e permaneceu balançando o líquido em seu recipiente. Fiquei olhando com um misto de curiosidade e carinho, aquela mulher ali à minha frente, em muito parecida comigo. Duas pessoas quebrando a cara no mundo e espe-rando acontecer algo para aquecê-las da garoa das ruas, daí ficarmos ainda algum tempo conversando sobre nossas vidas, experiências, como se fôssemos velhos amigos. Tínhamos várias coisas em comum, nos deixando à vontade e levar-me num ímpeto, talvez incentivado pelo conhaque, a perguntar-lhe:

— O que diria de passar a noite de Ano Novo comigo?

Tendo voltado a girar a taça no ar, Sandra parou esse movimento aí mesmo. Seus olhos adquiriram tal brilho, como se o conhaque estivesse sendo flambado. Pareceu enrubescer e não me surpreenderia se o jogasse em mim, ou simplesmente se levantasse e fosse embora. No entanto, era uma mulher cheia de surpresas e eu descobria isso aos poucos. Colocou devagar o recipiente sobre a mesa e fitou-me nos olhos de forma tão intensa, desarmando-me a ponto de não conseguir antever sua reação a partir daquela pergunta.

— Você disse que quer passar a noite comigo?

— Eu disse que quero passar a noite de Ano Novo com você.

Nesse momento, eu a senti hesitar diante desse jogo de palavras, o que me animou a levar a proposta adiante.

— Certamente, já notou sermos duas pessoas sem alguém com quem repartirmos nos-sas tristezas, mão tocando mão... Enfim, nenhum ombro a servir de apoio. O que proponho é ficarmos juntos na passagem do ano, estourarmos um champanhe à meia-noite e depois continuarmos nossas vidas.

— Tudo platonicamente?

— Tudo platonicamente.

Ela cruzou os braços sobre a mesa e ficou a me olhar com uma expressão que não se definia entre a mera surpresa, indignação ou se estava divertindo-se com aquilo tudo. Não demorou, contudo, a chegar a uma conclusão:

— Para quem não quer festejar coisa alguma, você está sendo bastante contraditório, mas... a idéia me agrada. Em seguida riu baixinho, comentando: — Devo estar maluca. Meu pai teria um enfarte se ouvisse isso.

Sorri, sem nada dizer. Ela prosseguiu:

— Eu tinha idade e juízo suficientes para sair de casa; penso ter também agora para aceitar sua proposta. Calou-se por instantes e depois completou:

— Muito bem. Nesse caso, gostaria que fosse em meu apartamento, se não tiver nada contra. Respirou fundo, como querendo reforçar sua decisão: — Talvez eu esteja mesmo precisando esquecer mais um ano se acabando e comemorar a chegada do Ano Novo como as pessoas... hum... normais.

Tomei outro gole maior do conhaque procurando reafirmar meu autocontrole, por ins-tantes parecendo balançar:

— Não tenho nada contra. Nem mesmo de nos portarmos como pessoas normais. E aproveitei para emendar: — Eu levo o champanhe.

Ela tomou o restante da bebida antes de concluir:

— Eu o esperarei às nove. Farei uma comidinha gostosa, conversaremos ou, se preferir, analisaremos nossas frustrações, e esperaremos pelo Ano Novo.

Concordando, tomei o restante do conhaque e enquanto esperava pela conta peguei-lhe o endereço. Despedimo-nos com um beijo no rosto e a acompanhei até a porta. Fiquei vendo-a atravessar a rua em direção ao estacionamento e pensando no que estava fazendo a ela. Ou seria o contrário?

Iria descobrir logo, pois faltavam apenas duas noites para se fechar o ano. E, o óbvio, começar outro. Só não imaginava como seria.

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Pontualidade não está entre minhas parcas virtudes, pois só fui tocar a campainha do apartamento de Sandra depois das nove e meia. Ao contrário da noite anterior, esta recuperara o calor habitual de qualquer fim de dezembro e havia o prenúncio de chuvas.

Ela abriu a porta junto com o sorriso de quem nem de longe ameaçava uma censura pelo meu atraso. Vestia um conjunto de saia e blusa, apropriadamente brancas, diferindo em muito dos trajes formais do escritório e deixando-a bem mais jovial, diferente daquela secretá-ria circunspeta.

— Flores! — exclamou surpresa. — Pensava não existirem mais homens que ainda fizessem dessas coisas, disse enquanto apanhava o maço de rosas vermelhas que eu lhe oferecia:

— Meio convencional, penso. Mas achei que iria gostar.

Após guardar o champanhe na geladeira, tratou de ajeitar as rosas no vaso sobre um móvel, enquanto eu examinava o ambiente. Sala razoavelmente grande; um confortável sofá, uma estante com livros diversos e um inesperado piano de armário.

— Não sabia que gostava de música, comentei embora soubesse também não conhecer quase nada sobre ela.

— Ajuda a passar o tempo e a esquecer algumas coisas, disse-me num tom enigmático ao qual não dei muita importância. — Fique à vontade; o jantar está quase pronto.

Em pouco tempo estávamos à mesa saboreando o jantar sem maiores requintes, mas delicioso, lembrando-me um ar caseiro num passado perdido e do qual eu procurava escapar. Mesmo pensando em caminhar noutra direção, não tinha a certeza do que realmente queria. “Tudo platonicamente”, tentei acreditar. “Tudo platonicamente”, repeti a mim mesmo.

Sandra colocava o garfo na boca com delicadeza e, a cada movimento para apanhar algo sobre a mesa, a blusa, que normalmente se permitiria dois botões abertos, tinha um terceiro, fazendo nesses movimentos deixar aparecer ligeiramente a junção dos seios roliços e instigantes. Entretanto, fazia isso com tal naturalidade e não me deixava pensar serem gestos premeditados. Não conseguia vê-la ardilosa.

Findo o jantar, ela pôs à mesa a fruteira de onde retirou um cacho de uvas. Enquanto conversávamos, ela pegava os grãos e um a um levava-os à boca, distraidamente, pousando-os com delicadeza nos lábios carnudos e deles retirando sua polpa de forma lenta e decididamen-te sensual. Ainda assim, os belos olhos castanhos nada deixavam transparecer e se estivesse fazendo uma espécie de jogo sabia estar guardando seus trunfos para a hora certa.

Na verdade, estaria mesmo ou seria eu que estava querendo me convencer disso?

Mais tarde e já retirada a mesa fui sentar-me no sofá. Sandra dirigiu-se ao aparador e em uma bandeja de prata onde havia uma garrafa de licor e alguns cálices, colocou da bebida em dois deles e veio sentar-se perto de mim. Ofereceu-me a minha, fizemos um discreto brinde e provamos de seu gosto. Como se isso fosse hábito arraigado nela, o fez de olhos fechados parecendo aproveitar de toda sua essência.

Eu a observava fascinado. Seus gestos lembravam um ritual ao qual ela se entregava de corpo e alma. Sentado à curta distância, parecia-me sentir o mesmo êxtase que a dominava. O corte na lateral da saia, deixava à mostra pouco mais que palmo e meio da coxa cruzada sobre a outra perna e novamente ocorreu-me a idéia de um jogo, no qual os contendores procuravam ter domínio mútuo total. Como por instinto, eu tentava fechar minhas defesas. Só não sabia contra o quê.

A conversa continuou fluindo, descompromissada. Voltamos novamente a nossos passados, levados à baila em conta-gotas como se quiséssemos nos poupar. Porém, era evidente o assunto servir apenas de pretexto para que cada qual estudasse o outro, planejando o próximo lance. Era esta a impressão reinante e eu com a nítida sensação de estar me deixando tomar por uma paranóia inexplicável, se é que paranóicos sabem que o são.

Sandra levantou-se, pegou meu cálice vazio e colocou-o juntamente com o seu na bandeja, indo em seguida até o piano e sentando-se na banqueta. Como se fosse uma criança, a fez dar duas voltas, o que em outras circunstâncias, não nesta noite, talvez me surpreendes-se. Sorrindo, olhou para mim parecendo pedir desculpas por uma travessura. Eu não só a desculpava, como achava tudo aquilo delicioso. Invadia-me uma sensação agradável em vê-la assim descontraída, mas não me escapava o detalhe de ela ter um perfeito controle de seu savoir-faire.

Voltando-se para o piano, levantou a tampa do teclado. Olhou-o como um duelista escolhendo suas armas e dedilhou algumas notas, de imediato fazendo-me lembrar a Sonata Kreutzer.

Embora suas atitudes sugerissem descontração, imaginava-a uma habilíssima enxa-drista, astuciosa no movimento de suas peças mesmo eu entendendo naquela obra caber ao violino propor o desafio.

Estava ali o nó da questão. Nessa aparente inversão de papeis, cabia-me aceitar o repto e enfrentá-la em seu terreno, aceitando os termos. Tornava-se impensável recuar, pois cada movimento seu sempre se antecipava aos meus. Em breves segundos, tentei recompor os acontecimentos. O que, então, deveria esperar desde aquela noite no bar? Numa fração de tempo me vi possuído de inominável ridículo. Como podia ter pensado que nosso encontro se resumiria a um jantar, um espocar da garrafa de champanhe e um até breve? Na verdade, ela era quase uma desconhecida quando a convidei para o conhaque, mas agora ficava claro ter sido disparado um processo emocional, cujas conseqüências eu ainda não conseguia medir.

O tempo tornou-se meu aliado. Mostrei-lhe o relógio dizendo faltar pouco para a meia-noite. Ela sorriu e foi buscar o champanhe e duas taças. Fomos até o terraço tendo pela frente a bela vista da região destacada pela beleza dos fogos de artifício explodindo em mil cores, indiferentes à chuva contrapondo-se àquele colorido. Fiz saltar a rolha que voou para o asfalto molhado, lá embaixo.

Servimo-nos da bebida, erguendo as taças num brinde cheio de presságios.

— Feliz Ano Novo, disse-lhe. Ato contínuo, depositei um curto e suave beijo em seus lábios.

Seu sorriso não revelou surpresa e complementando o reflexo do colorido da noite nos olhos, abriu caminho a palavras ditas com doçura:

— O mesmo para você.

Alguém impensadamente disparou um artefato lá da rua e, subindo por entre os prédios, veio estourar perto da sacada onde nos encontrávamos. Sandra deu um gritinho de susto agarrando-se instintivamente em meu braço, assim permaneceu enquanto assistíamos, calados, ao espetáculo de cores e sons. Agradava-me sentir o toque da mão cálida, ainda trêmula, e poderia jurar estar mesmo sentindo o pulsar de seu sangue no ritmo das explosões.

A barulheira foi arrefecendo e voltamos para a sala. Ela serviu mais um pouco da bebida e inesperadamente disse:

— Não vá.

Olhei-a, calado a princípio, pois tal como no jogo, surpreendia-me colocando meu rei em xeque e levando-me a procurar a defesa:

— Estamos fugindo ao nosso trato, disse-lhe como numa defesa mal planejada.

Em momento algum ela sentiu-se acuada e sua proposta surpreendeu-me:

— Ficaria mais tranqüila se dormisse aqui. Seja sensato: é noite de Ano Novo. Chove. Muitas pessoas beberão além da conta e sairão dirigindo pelas ruas pondo em risco suas vidas e a de outros. Há um quarto de hóspedes onde você poderá ficar à vontade. E comple-tou com pinceladas de malícia: — A menos que tenha algo contra.

Sorri, sem dizer nada, mas nesse momento a proposta se mostrava irrecusável. Não me passava pela cabeça, absolutamente, questionar o trato desfeito.

Depois de ajudá-la a pôr alguma ordem na sala e na cozinha, ainda conversamos um pouco mais, tudo com aquela naturalidade típica de uma rotina de anos; um perfeito clima platônico.

Ela ajeitou com presteza o quarto de hóspedes, deixando que me instalasse realmente como hóspede. Fechei a porta e sentei-me na beira da cama, estudando o pequeno ambiente: um armário, uma mesinha de cabeceira, uma escrivaninha com um microcomputador (que segredos haveria em sua memória?), um pequeno televisor e poucas coisas mais.

Tirei a roupa e deitei-me sobre o lençol macio, recendendo a novo. Deixei apenas a luz do abajur iluminando o ambiente e ali fiquei, estático, mãos cruzadas sob a nuca, pensando no inusitado da situação, quase surreal. Por mais que quisesse pensar o contrário, via naquilo tudo mais outro lance do jogo e, a exemplo de qualquer jogo, deveria haver a defesa ou o contra-ataque. Eu simplesmente não sabia qual seria a jogada seguinte.

Quase duas da manhã apaguei a luz mas, conciliar o sono, quem conseguiria? Percebi que Sandra fora para seu quarto, ao lado. Na noite agora silenciosa, eu podia imaginar cada movimento; uma porta de armário se abrindo, sapatos sendo jogados a um canto, um cabide caindo ao chão. Visualizei-a despindo-se: a blusa sendo largada sobre uma cadeira, a saia colocada num cabide e dependurada no móvel. Fechei os olhos e tentei vê-la em suas roupas íntimas. Brancas, provavelmente. Depois, em gestos lentos desabotoando o sutiã, jogando-o sobre a cama e, finalmente, a derradeira peça de roupa descartada. Pensei em sua nudez, ela sempre tão recatada e jamais dando ensejo a especulações e desejos mal resolvidos.

A mesma silenciosa noite me deixou entender que ela se deitava. Podia perceber o amassar do colchão e um ligeiro rangido da madeira da cama logo aquietada.

Eu estava sem sono e poderia apostar que do outro lado da parede o mesmo ocorria. O mostrador luminoso do relógio revelou-me o tempo terrivelmente lento: duas e quarenta. Do quarto contíguo vinha o ruído abafado do corpo se revirando, insone, na cama delatora. Em que estaria pensando? Voltou-me ao pensamento a idéia da Sonata e, era forçoso reconhecer, desagradou-me imaginar que se ela a executava bem, é porque haveria — ou teria havido — alguém a fazer-lhe contraponto.

Três e cinco, ouvi-a abrindo a porta do quarto. Alguns segundos de silêncio e depois o clique-clique do isqueiro. Notei seu caminhar, mesmo descalça, pela sala. Depois, a porta do terraço aberta com cuidado e logo fechada, talvez por causa do frio vindo com a madrugada úmida exigindo calor para todos os corpos.

Eu estava tenso. Imaginei-me levantando, um pretexto qualquer, e encontrando-a sentada no sofá, e a surpresa descaradamente fingida de parte a parte. E depois, tudo acontecendo naturalmente.

A porta de seu quarto fechou-se novamente, com o cuidado de tentar não deixar isso transparecer. Fiquei olhando através do escuro, como se elaborasse um lance para jogar naquele negrume, na incerteza se deveria ser uma tática defensiva ou de ataque. Uma indecisão que me atormentava.

Acordei com a claridade do sol querendo invadir o ambiente. Num primeiro momento, fiquei sem entender nada até me localizar no tempo e espaço. Espreguicei-me e enquanto esfregava os olhos, tudo foi repassado por minha cabeça vindo feito um vagalhão de encontro à minha memória.

Vesti-me e saí para a sala. Ao abrir a porta, o cheiro forte de café despertou todos os meus sentidos. Encontrei Sandra na cozinha; calça de moleton e uma camiseta, fresca e linda como eu jamais a vira em todos esses anos, tão perto de mim e ao mesmo tempo tão distante.

— Dormiu bem? perguntou.

— Feito um anjo, brinquei.

— Como eu, sorriu numa deliciosa mentira.

Sentamo-nos para o café, misturado com frases soltas na mesa entre biscoitos e croissants e, como se houvesse um acordo tácito, sem menções à noite anterior. Servi-me da be-bida quente, adicionei leite e açúcar e enquanto brincava com a colherinha, fiquei observando-a passar manteiga no pão tostado que a fez derreter-se. Sandra levou a fatia à boca e mordeu-a com delicadeza para, em seguida, apertar os lábios como querendo tirar deles o excesso do creme.

Nesse instante, mergulhei fundo naqueles olhos cor de mel, com a certeza de o xeque-mate ter sido dado e de que ela sabia que o faria, desde aquela noite no bar quando decidiu aceitar o desafio e mover suas pedras, para deixar num outro tempo duas obscuras histórias de vida.




Carlos Bruni é nosso convidado dessa semana. Esse conto foi vencedor em primeiro lugar no conceituado Concurso Literário da Secretaria da Cultura do Paraná, em 2003.

Administrador de empresas aposentado, resolveu tirar das gavetas seus escritos feitos nas suas (poucas) horas de lazer e dar-lhes vida, agora com mais calma. Como resultado, conquistou vários prêmios em concursos literários, no Brasil e em Portugal.
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