Um leitura da Odisséia
Queridos leitores, quando lemos uma obra, temos as nossas chamadas impressões de leitura. Nesta postagem, apresentarei a vocês um ponto que deteve a minha atenção na leitura que fiz da Odisséia de Homero. Seria ótimo se algum de vocês, estimulado por essa minha simples impressão de leitura, começasse a ler esta obra tão instigante, interessante.
Após lerem Odisséia, tenho certeza de que entenderão o porquê de ela ser um clássico da literatura. É interessante notarmos que uma obra que estipula-se que foi escrita no fim do século VIII a. c (antes de Cristo) continua a ser lida e a levantar tantas importantes reflexões. Além do mais, esta obra, juntamente com a Ilíada, é considerada como o primeiro marco histórico-literário da cultura ocidental.
Passemos à exploração da minha leitura:
Diante das poucas escolhas que pode fazer, Ulisses (ou Odisseu) afirmou que preferiria morrer como homem a se tornar um imortal. Para o leitor, essa afirmação pode parecer contraditória, considerando-se algumas passagens da Odisséia em que observamos o herói da narrativa a desfrutar as graças que os deuses podem oferecer a ele.
Para refletir sobre as contradições do herói devemos retornar ao início da narrativa, que o apresenta como alguém que deseja volver à sua terra. Contudo, inicialmente, algo se sobrepõe a esse retorno, que é a passagem em várias ilhas com intuito de conseguir riquezas e levá-las para Ítaca. Esses “assaltos” revelam a avareza, ambição, vaidade que perpassam a Ulisses, como também aos tripulantes de sua nau e, de certa forma, este sentimento acarreta outros, que juntos ultrapassam o senso de medida grego, reinando assim a hybris. Isso ocasiona, por sua vez, a perda do caminho para casa.
Durante os anos que Ulisses buscava o caminho de volta para Ítaca, os deuses reuniam-se e decidiam o destino dele e dos demais tripulantes de sua nau. O que mais nos interessa nesse ponto é a atitude dos deuses perante este herói grego. Atitude de retardar a volta para casa, mas protegê-lo do caminho ao Hades e devolvê-lo com glórias à sua terra. Essa proteção implica, em alguns casos, com contato real, acolhimento e, no caso de Circe e Calipso, o desejo, a volúpia.
A relação de Ulisses com Circe é a primeira a revelar como os deuses lhe favorecem e como ele se aproveita de tais situações. Circe, após transformar os companheiros de Ulisses em porcos, o recebe em sua casa com intuito de fazer o mesmo com ele. Entretanto, Atena (a grande protetora do herói durante toda a epopéia) já havia lhe avisado dos truques de Circe. O herói não se subjuga à deusa, uma vez que bebe o que o transformaria em um suíno, mas habilmente se safa deste destino. Circe traz os companheiros de Ulisses de volta à forma humana, oferece a todos banquetes e ao herói proporciona os prazeres da carne. Ele aproveita dos encantos da deusa, do corpo divino e se entrega à volúpia.
Somente após um bom tempo desfrutando dos prazeres da mesa e da carne, o herói homérico retoma a consciência da busca pelo caminho que o levaria a Ítaca. Vale ressaltar que tal retomada não ocorre por vontade dele, mas pelo fato de seus amigos se aperceberem de que precisavam partir e de que se continuassem a viver na casa de Circe, a fazer companhia à deusa solitária, esqueceriam de vez de seus anseios. A deusa aceita a partida e, de certa forma, cede aos encantamentos humanos. Como consequencia disso surge nela a preocupação com o bem estar de Ulisses, o que faz com que lhe ensine o caminho que deve seguir até o mundo de Hades e a forma que faria para perguntar ao sábio Tirésias sobre o volver à terra natal.
Após encontrar o sábio e descobrir o que deveria fazer para atingir seu objetivo, Ulisses volta à ilha de Circe para sepultar um amigo. A deusa o espera e, ao herói partir definitivamente, ela novamente lhe dá conselhos de como desviar-se, driblar os perigos com os quais se defrontaria, como é o caso de ultrapassar o local onde viviam as Sereias sem serem atraídos por elas ao caminho sem volta, ou seja, ao fundo do mar.
O próximo ponto de destaque nessa nossa explanação é a chegada de Ulisses à ilha de Calipso. Neste local, ele aporta sozinho, já que seus companheiros haviam sucumbido devido aos desígnios das divindades. Calipso, um ser divino, o acolhe quase maternalmente, porém, o herói não resiste aos encantos dela. A partir deste ponto, eles passam a explorar os prazeres que o corpo do outro pode suscitar.
Quanto mais tempo Ulisses permanecesse na ilha da deusa, menos se recordaria da sua vida antes de chegar até ali. Calipso, maliciosa, deseja que o homem continue a viver ali com ela por toda a eternidade, uma vez que ela ofereceu a ele a imortalidade. Ele disse que prefereria morrer como homem ao lado de Penélope, a se tornar um ser imortal. Porém, Ulisses, como aponta o narrador da epopéia, também buscou prazer no corpo da deusa, com ela viveu, dormiu e dela desfrutou.
Calipso demonstra, durante a narrativa, que se submeteu ao homem, uma vez que por ele nutre um sentimento, que se não for amor, é muito próximo. Isso não só pelo fato de entregar seu corpo a ele, buscar prazer com o corpo humano, mas também por oferecer a Ulisses um lugar a seu lado pela eternidade. Mesmo contra a vontade dele, a deusa não o deixa partir e o retém em sua ilha até a intervenção de outros deuses.
Somente após Hermes dizer a Calipso que Zeus manda deixar Ulisses partir, a deusa o deixa. Ressentida, ela volta para sua caverna e passar a ruminar aquele amor não correspondido.
Outra deusa que também possui uma certa relação com o herói homérico é Atena. Entretanto, ela não chega a relacionar-se com ele sexualmente. Isso não significa que afetivamente ele não seja seu escolhido, ou melhor, o seu preferido.
Desde de o início de Odisséia, notamos que Palas Atena intervém a favor de Ulisses, seja protegendo seu lar, seu filho, Telêmaco, e sua esposa, Penélope, seja ajudando-o durante seu percurso. Por um lado, a deusa prepara Ítaca para o retorno de seu rei, protege seu filho dos pretendentes de Penélope que desejavam matá-lo, incita Telêmaco a ser mais ativo diante das mazelas e abusos que os pretendentes faziam em sua casa, viaja com ele em busca de notícias do pai. Por outro lado, ela vai até Zeus pedir por seu preferido, solicita ao deus que deixe Ulisses retornar a Ítaca e não seja morto pela fúria de Poseidon.
Atena acompanha Ulisses durante a maior parte do tempo. Ela quem o ajuda a chegar na terra dos Feáceos. Lá, ela o protege que chegue ao rei daquele povo, já que sabia que ele poderia ser mal recebido pelos demais viventes daquela ilha. Os Feáceos são os que ajudam o herói a retornar para Ítaca. Quando encontra-se em suas terras, Ulisses esconde, com a ajuda de Palas Atena, os presentes que recebeu. Ela o envelhece, para que ele não seja reconhecido, volte a seu palácio, veja como está sendo ultrajado pelos pretendentes de Penélope e reconquiste o que é seu. Essa afirmação é endossada com a seguinte passagem de Auerbach (1998, p. 12), “[...] no caso do próprio Ulisses, o envelhecimento meramente físico é velado pelas repetidas intervenções Atenéia, que o faz parecer velho, ou jovem, segundo o requer cada situação”. Atena é quem protege Ulisses de ser atacado pelos parentes daqueles que foram mortos por ele. A voz da deusa ressoa e os demais homens percebem que ao lado do herói de Homero estão também as divindades do Olimpo.
Percebemos, através da narração da relação entre Ulisses e as deusas Circe, Calipso e Atena, o quanto o herói desfruta daquilo que elas podem oferecer. No caso de Circe e Calipso, ele desfruta da cama, do corpo e, de certa forma, da alma das deusas uma vez que elas se mostram rendidas por amor a esse humano. Em relação a Palas Atena, Ulisses também aproveita daquilo que a deusa pode lhe proporcionar, ajuda para retornar a Ítaca, proteção e também um forte amor. Não podemos afirmar que é um amor que envolve desejo de união carnal, mas nos apresenta muito mais como o amor de uma mãe que quer bem a seus filhos e descendentes.
Ulisses, como apontado anteriormente, diz preferir morrer como um humano, todavia, ele passa grande parte da Odisséia como um verdadeiro deus. Ele consegue proezas que nenhum mortal tinha conseguido até então. Além do mais, Ulisses subverte a ordem que estabelece o poder dos deuses sobre o homem. Tal afirmação é corroborada por haver durante a narrativa um destaque ao elemento humano pelo fato de os deuses, mesmo que não imediatamente, fazerem o que ele desejava, por ele influenciar a todo momento na vida das divindades e também por fazer com deusas, seres altamente superiores, por ele se apaixonem. Elas deixam a distância existente entre deuses e homens e são domadas pelo amor por um homem, que por sua vez é-lhes indiferente.
Há, desta forma, uma aproximação, senão uma dessacralização das figuras superiores (deuses), uma vez que o elemento humano as seduz. O destino dos homens não lhes é indiferente, ao contrário, é algo que, de alguma maneira, rege suas vidas. Como nos diz Bakhthin (1993, p. 424) “Nem mesmo os deuses estão separados dos humanos por alguma “verdade” particular: eles têm a mesma língua, a mesma concepção de mundo, o mesmo destino, a mesma extroversão ininterrupta”. Na épica, o homem aproxima-se das divindades e é transportado para uma zona de contato com elas que os torna miscíveis.
Referências bibliográficas:
AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses. In: Mímesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 1-20.
BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance. In: Questões de literatura e estética – A teoria do romance. São Paulo: UNESP – HUCITEC, 1993, p. 397 – 428.
HOMERO. Odisséia. Trad. Introdução e análise Donald Schuler. Porto Alegre: L&PM, 2003.
Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras , com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa.