Ainda se ensina literatura?
Essa pergunta é importante para refletirmos sobre o ensino de literatura nas escolas em geral. Sei que temos uma certa tendência saudosista de ver o passado com um olhar idealizado. Não desejamos retornar ao vivido, ao já feito. Podemos, algumas vezes, inspirar-nos no passado, a fim de resgatar experiências que obtiveram um resultado positivo, que de alguma forma contribuíram para a nossa melhora e da sociedade em geral. As comparações entre presente e passado podem ser proveitosas, porém, temos que ter em mente que os tempos são diferentes, contextos completamente distintos histórica-culturalmente. Não há melhor ou pior, na verdade, há o que é, o que foi e o que poderá ser enquanto possibilidade de melhora.
No tempo em que vivemos, observamos muitas discussões sobre o retorno da Arte às escolas. A literatura, como uma das disciplinas artísticas, perdeu certo espaço na escola, devido, principalmente, à exigência por parte da sociedade contemporânea de um pragmatismo. Isso culminou na perda de espaço da literatura em detrimento do ensino de língua e de gramática, por exemplo. As principais causas deste ensino pragmático de literatura são: ensino da história da literatura, utilização de fragmentos e resumos de textos, o que culminou na perda de lugar do texto literário, do livro.
Duas causas podem ser apontadas para essa perda de espaço do livro nas aulas de literatura: por um lado, as pessoas não perceberam os saberes que os textos literários carregam em si e proporcionam a seus leitores, e, por outro lado, a capacidade que a literatura tem de humanizar, ou seja, de possibilitar o leitor a identificar-se com o texto, colocar-se no lugar de um Outro e expandir suas percepções de mundo reduzidas a seu espaço geográfico-cultural. A humanização pode proporcionar algo que muitas vezes falta ao homem, que é a capacidade de respeitar o Outro e sua alteridade.
A literatura, enquanto meio de humanização, pode: “tornar as coisas mais acessíveis ao escrutínio crítico como o produto do trabalho humano, as energias humanas para a emancipação e o esclarecimento” (SAID, 2007, p. 42); ou ainda “[...] a experiência da leitura literária nos torna mais humanos, desenvolvendo nossa solidariedade, nossa capacidade de admitir a existência de outros pontos de vista além do nosso, nosso discernimento acerca da realidade social e humana” (ABREU, 2006, p. 81).
A leitura literária pode contribuir também para que aquele que dela usufrui se expresse melhor na fala e na escrita, adquira mais vocabulário, conheça as diversas fases pelas quais seu país passou, uma vez que as obras literárias são também registros dos modos de viver e pensar de uma determinada época. Um bom exemplo das mudanças de percepções que encontraremos na sociedade está em obras de dois autores de que confeccionaram suas obras em tempos distintos: Gonçalves Dias e Mário de Andrade. Nos poemas de Gonçalves dias, nos depararemos com uma busca de implantação de uma cultura literária brasileira, distinta da portuguesa, enquanto nos poemas de Mário de Andrade, observaremos a modernização da sociedade brasileira, apresentada através de poemas que revelam a chegada ao Brasil de fábricas, da modificação do espaço brasileira que inicia sua fase mais centrada na cidade e não no campo.
Após tantos anos de rechaçamento da literatura a um lugar desprivilegiado, juntamente com as demais Artes, parece que o Estado chegou à percepção de que não é só necessário ensinar ao homem a trabalhar, cumprir seus afazeres práticos, como também incitá-lo a pensar, a querer descobrir novos mundos, percepções distintas. Isso culminou na volta da música às salas de aula, além de dar à literatura um pouco mais de espaço nas escolas e, consequentemente, na sociedade, com programas de incentivo à leitura, doação de livros, por exemplo. Não cabe a nós contentarmos com algo ainda ínfimo perto da necessidade que há de expandir: levar o homem a ter um livro em mãos e apreciá-lo.
Ensinar literatura, efetivamente, só será possível em uma sociedade que vivencia a leitura, que a torna prática social, na qual observa-se que as pessoas trocam experiências de leitura – o que hoje, infelizmente, quase nunca é possível observar.
Retomando o paralelo estabelecido no início deste ensaio entre passado e presente, pensamos que uma das mais importantes práticas que temos que resgatar é a leitura, uma vez que, aproximadamente, até meados do século XX as pessoas possuíam o hábito de ler obras literárias. Obviamente, nem todas as classes sociais tinham acesso ao livro, mas a leitura era uma prática social entre aqueles que tinham condições monetárias de adquirir uma obra.
Ironicamente, a partir da modernização da sociedade, de certa democratização do acesso ao livro, este passou a ser relegado a um segundo plano. Hoje, no Brasil, encontramos livros novos por dez reais ou menos. O que falta nas pessoas é interesse, desejo de ler.
Muitos professores de literatura tentam fazer de seus alunos verdadeiros leitores, não meros reprodutores do que as escolas literárias possuíam como características. Infelizmente, isso nem sempre é possível. Há algumas explicações, que para nós não passam de desculpas infundadas, como falta de dinheiro e/ou de tempo. Isso não configura-se como uma justificativa aceitável, uma vez que a grande maioria das pessoas encontra tempo para navegar na internet, dinheiro para comprar celulares e computadores moderníssimos, que quase falam por você.
As pessoas em geral não gastam dez reais em um livro de Machado de Assis, Eça de Queirós, Raul Pompéia, Monteiro Lobato, Almeida Garrett, Gustave Flaubert, entre outros tantos, que são facilmente encontrados em edições mais baratas. Elas preferem adquirir um celular de, no mínimo, trezentos reais, com tantas funções que muitas vezes nem sabemos usá-las.
O que falta nas pessoas é perceber a relevância da Arte para o conhecimento humano, para a humanização, perceber que a partir do livro o homem pode viajar no tempo e espaço, expressar seus anseios e angústias perante o mundo, além de lutar por seus direitos.
Hoje, muitas pessoas reduzem a literatura a mero discurso de entretenimento, mas essa visão é extremamente limitada. O texto literário é de natureza evasiva, no entanto, ele não é uma forma de distração. A obra literária tenta agir sobre o sujeito simultaneamente consolidando-o e desconstruindo-o de maneira desconfortável. Essa perturbação é ansiada pela literatura, uma vez que esse desconforto exigirá nos seres humanos um redimensionamento de mundo, uma possibilidade de expansão de seus conhecimentos, de sua visão, de reconhecimento do Outro (FREADMAN; MILLER, 1994). Observamos isso após a leitura de muitos romances, com destaque pra as obras escritas por António Lobo Antunes, que mostram a degradação, a decadência do ser humano e da sociedade na qual vivemos.
Para ensinar literatura, temos que, primeiramente, formar leitores, depois devemos ensiná-los a ler de maneira crítica e reflexiva, fazê-los mudar essa recepção passiva que existe hoje de música, pintura, filmes, literatura, entre outras coisas. Um leitor crítico questiona o que recebe, o que está a sua volta e observa atentamente cada elemento que constitui as produções a que tem acesso.
Incito os leitores desse ensaio a fazerem uma experiência: leiam, dêem livros, que com certeza verão a importância da literatura para a vida de vocês e tornarão a leitura uma prática. Não guardem aquilo que leram, que viram e gostaram somente para vocês, façam como um riacho, que por onde passa dissemina um pouco da água que lhe constitui.
Referências bibliográficas:
ABREU, Márcia. Cultura Letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
FREADMAN, Richard; MILLER, Seumas. Os poderes e limites da teoria. In: Re-pensando a tória. Uma crítica da teoria literária contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 1994, p. 245 – 319.
SAID, Edward W. Humanismo e Crítica democratica. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa.