Como em todos os outros dias, ela acordou às seis da manhã com os primeiros raios do preguiçoso sol despertante que vinha do alto da serra. Os passarinhos não cantavam: berravam! Ah se ela pudesse estrangulá-los! Não os passarinhos soltos, com esses ela não se irritava. Mas aqueles ao lado, no vizinho, mais de cinquenta, presos em gaiolas e viveiros de tamanhos variados.
Não, ela não era defensora do meio ambiente, nem dessas coisas todas, mas a raiva que tem do vizinho criador de pássaros é tão grande, tão grande, mas tão grande mesmo, que ela poderia..., bom deixa isso pra lá. Voltemos ao rito. Colocou para ferver a água com açúcar, trouxe da área um suporte de madeira antigo e encaixou-lhe o coador de pano de idade visivelmente avançada. Colocou no coador o pó: apenas 1 colher cheia de café de uma marca inferior para 1 litro d’água. Adorava café água de batata. Jogou por cima do pó a água adoçada já fervida. O café caía do coador em um copo de alumínio que deveria ter tido um cabo alguma vez na vida, mas que dele só restavam os parafusos. Quando faltava pouco para a água com açúcar e pó terminar de escorrer, tirava correndo o copo de alumínio sem cabo e colocava no lugar sua caneca esmaltada (só sua mesmo). Aí ela virava o café que estava no copo de alumínio sem cabo dentro da garrafa térmica enquanto o resto da mistura ia caindo dentro de sua caneca, quase sem pó nenhum: água de batata! Ah! Como era bom o café assim!
Agora que o sol já exibia todo seu clarão, ela ia comprar o jornal de 25 centavos. Lia as reportagens principais. Nossa!, não podia acreditar que um irmão havia matado o outro por causa de um desodorante! Que absurdo! O mundo só pode estar para acabar mesmo. Nada de muito especial no resumo das novelas. Já são sete horas. Precisa lavar o banheiro. Do mesmo jeito de sempre ela pega a vassoura, pega o jarro de plástico velho, pega o detergente, o pano, o rodo, a sacolinha do Supermercado Santo Antônio e o desinfetante. Tira o lixo do cesto e coloca a sacolinha nova, empurra com o pé o cesto pra fora do banheiro, enche o jarro de água, joga o detergente no chão, joga a água do jarro no chão, surra com a vassoura, enche outro jarro de água, joga a água no chão e no vaso, joga detergente no vaso, surra o vaso com a vassoura, joga água no vaso e o que sobra no chão, puxa a água com o rodo, seca com o pano, volta o lixo pro lugar e joga um pouco de desinfetante no vaso pra ficar cheirando. Pronto. Ixi! Esqueceu do lavabo. Agora fica pra amanhã. Ainda tem que lavar as vasilhas da janta de ontem, varrer a casa e colocar as roupas para bater. Mas antes dá tempo de tomar uma coquinha. Pega seu copo de alumínio, que chama de taça. Um copo que vai afinando aos poucos e termina em um suporte em círculo onde aparece marcado no fundo a inicial de seu nome em esmalte vermelho, acho que da cor Gabriela. Enche o copo de coca-cola e a toma em três goladas intensas. Mais um copo, dessa vez foram necessárias quatro goladas. Argh! Geladinha! Lava a roupa, lava as vasilhas, varre a casa e pega o mamão verde. Acha que tá verdinho, tá bom demais prum refogado. Pega também uma faca, uma bacia de alumínio e vai pra frente da televisão assistir às notícias das últimas enchentes. Nossa, quanta gente morreu, parece que ainda morreram mais de ontem pra hoje, precisava ver logo. Descasca o mamão e tira a semente. Deixa a poupa no sofá enquanto vai lá na cozinha correndo jogar a casca e a semente fora. Volta num galope, parece que acharam mais vítimas soterradas, não pode perder a notícia. Pica o mamão verde em quadradinhos, mas sem olhar pra ele. Mais 23 pessoas foram encontradas mortas vítimas da enchente que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro. Agora já são pelo menos seiscentas pessoas; diz mais ou menos isso o jornalista na televisão. Pena, são nove e meia, precisa fazer o almoço, não poderá terminar de ver o noticiário. Mas é melhor deixar a televisão ligada, aí dá pra dar uma corridinha na sala caso apareça outro corpo soterrado. Vai pra cozinha, torra o arroz, refoga a carne moída, pica o quiabo, coloca água no arroz, bota o angu pra cozinhar, bate o feijão no liquidificador, refoga o mamão, coloca urucum e quiabo na carne moída, põe a última água no arroz, refoga o feijão batido, vira o angu na bacia de plástico que veio com sorvete, ihh!, faltou uma taioba. Corre na vizinha e busca sete folhas, lava e pica a taioba, desliga o arroz, bota mais um pingo de água no mamão, refoga a taioba, desliga a carne, desliga o feijão, desliga a taioba, desliga o mamão.
Tá pronto! Grita. São dez e trinta e cinco. Faz seu prato: 3 conchas de feijão, 5 colheres de servir de arroz, 3 colheres de carne moída com quiabo, 2 colheres de servir de mamão, 1 colher de servir de taioba e outra de angu. Enche sua taça de alumínio de coca-cola. Vai para o seu quarto, liga a televisão e senta-se na cama que fica encostada debaixo da janela. Agora o sol já está mais próximo a ela. Enquanto almoça fica vigiando a rua e as vítimas da enchente. Termina de comer em seis minutos e volta pra repetir. A quantidade é a mesma, com exceção da taioba, que acabou. Volta pra perto da janela. Termina agora em onze minutos, pois se distraiu com uma moça que ela não conhece e que ficou gritando na porta da casa da vizinha da frente do lado direito. Quem será? A moça era bonita, do cabelo vermelho, nunca tinha visto ela antes. Quem será, gente? Vai saber. Volta pra cozinha, toma mais uma taça de coca-cola e vai lavar as vasilhas, limpar o fogão e o chão e colocar o lixo pra fora. Termina às onze e cinquenta e um. Ah! Até que enfim! Deita um pouco na cama pra ver as vítimas da enchente, as fofocas dos famosos, as pegadinhas da tarde, os casos de família, e tudo mais que a televisão lhe oferecer. O sol agora está exatamente em frente a sua janela. Cochila uns trinta minutos. Acorda pingando suor. Volta pra debaixo da janela e fica até às quatro da tarde, hora em que o sol já está mais afastado, mas, como está no horário de verão, ainda está queimando feito brasa. Nada de interessante acontece na rua fora a moça esquisita de hoje cedo. Ô moça mais esquisita, credo! Quem será ela? Liga na padaria e pergunta se tem pão doce novo. Tem. Vai lá buscar. Chega em casa com doze pães doce. Come oito acompanhados de duas taças de coca-cola. Senta debaixo da janela de novo e espera pela novela das seis. Hum! Comeria pelo menos mais dois pães, mas a sobrinha tinha comidos os outros e ela estava com muita preguiça de voltar à padaria. Deixa pra lá. No intervalo da novela das seis com a das sete, toma banho. Assiste à novela das sete. Vai buscar seus dois superlitros de coca-cola. Chega, toma mais uma taça, requenta o que sobrou do almoço. Janta assistindo à última parte do Jornal Nacional e tomando mais uma taça de coca. Termina e volta pra debaixo da janela – à noite sempre tem mais movimento na rua – enquanto aguarda a novela das oito, que começa às nove e quinze, e está pegando fogo. Que calor! Mas já não há nem sinal do sol, a não ser o calor que ele deixou acumulado no quarto e que não foi embora junto com ele. Fim do capítulo da novela das oito; grita sua sobrinha pra saber se ela vai dormir em casa. Coitada!, desde que a mãe desapareceu o pai a deixa largada pra rua afora. Ah se não fosse ela!, desabafa. Deita em sua cama e fica vendo o que tem na televisão até adormecer. Dormirá profundamente até que o sol, seu maior companheiro, a desperte às seis da manhã do dia seguinte.
Ana Luíza Duarte de B. Drummond nasceu em Ferros, Minas Gerais, Brasil, em 1988. É mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, Licenciada em Língua Portuguesa e Bacharel em Estudos Literários pela Universidade Federal de Ouro Preto. Publicou recentemente o conto “O pio da coã”, na antologia de contos Fantasiando, além de crônicas e artigos na área de Literatura e Educação.
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