sábado, 3 de outubro de 2015

Um dia



Como em todos os outros dias, ela acordou às seis da manhã com os primeiros raios do preguiçoso sol despertante que vinha do alto da serra. Os passarinhos não cantavam: berravam! Ah se ela pudesse estrangulá-los! Não os passarinhos soltos, com esses ela não se irritava. Mas aqueles ao lado, no vizinho, mais de cinquenta, presos em gaiolas e viveiros de tamanhos variados.
Não, ela não era defensora do meio ambiente, nem dessas coisas todas, mas a raiva que tem do vizinho criador de pássaros é tão grande, tão grande, mas tão grande mesmo, que ela poderia..., bom deixa isso pra lá. Voltemos ao rito. Colocou para ferver a água com açúcar, trouxe da área um suporte de madeira antigo e encaixou-lhe o coador de pano de idade visivelmente avançada. Colocou no coador o pó: apenas 1 colher cheia de café de uma marca inferior para 1 litro d’água. Adorava café água de batata. Jogou por cima do pó a água adoçada já fervida. O café caía do coador em um copo de alumínio que deveria ter tido um cabo alguma vez na vida, mas que dele só restavam os parafusos. Quando faltava pouco para a água com açúcar e pó terminar de escorrer, tirava correndo o copo de alumínio sem cabo e colocava no lugar sua caneca esmaltada (só sua mesmo). Aí ela virava o café que estava no copo de alumínio sem cabo dentro da garrafa térmica enquanto o resto da mistura ia caindo dentro de sua caneca, quase sem pó nenhum: água de batata! Ah! Como era bom o café assim!
Agora que o sol já exibia todo seu clarão, ela ia comprar o jornal de 25 centavos. Lia as reportagens principais. Nossa!, não podia acreditar que um irmão havia matado o outro por causa de um desodorante! Que absurdo! O mundo só pode estar para acabar mesmo. Nada de muito especial no resumo das novelas. Já são sete horas. Precisa lavar o banheiro. Do mesmo jeito de sempre ela pega a vassoura, pega o jarro de plástico velho, pega o detergente, o pano, o rodo, a sacolinha do Supermercado Santo Antônio e o desinfetante. Tira o lixo do cesto e coloca a sacolinha nova, empurra com o pé o cesto pra fora do banheiro, enche o jarro de água, joga o detergente no chão, joga a água do jarro no chão, surra com a vassoura, enche outro jarro de água, joga a água no chão e no vaso, joga detergente no vaso, surra o vaso com a vassoura, joga água no vaso e o que sobra no chão, puxa a água com o rodo, seca com o pano, volta o lixo pro lugar e joga um pouco de desinfetante no vaso pra ficar cheirando. Pronto. Ixi! Esqueceu do lavabo. Agora fica pra amanhã. Ainda tem que lavar as vasilhas da janta de ontem, varrer a casa e colocar as roupas para bater. Mas antes dá tempo de tomar uma coquinha. Pega seu copo de alumínio, que chama de taça. Um copo que vai afinando aos poucos e termina em um suporte em círculo onde aparece marcado no fundo a inicial de seu nome em esmalte vermelho, acho que da cor Gabriela. Enche o copo de coca-cola e a toma em três goladas intensas. Mais um copo, dessa vez foram necessárias quatro goladas. Argh! Geladinha! Lava a roupa, lava as vasilhas, varre a casa e pega o mamão verde. Acha que tá verdinho, tá bom demais prum refogado. Pega também uma faca, uma bacia de alumínio e vai pra frente da televisão assistir às notícias das últimas enchentes. Nossa, quanta gente morreu, parece que ainda morreram mais de ontem pra hoje, precisava ver logo. Descasca o mamão e tira a semente. Deixa a poupa no sofá enquanto vai lá na cozinha correndo jogar a casca e a semente fora. Volta num galope, parece que acharam mais vítimas soterradas, não pode perder a notícia. Pica o mamão verde em quadradinhos, mas sem olhar pra ele. Mais 23 pessoas foram encontradas mortas vítimas da enchente que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro. Agora já são pelo menos seiscentas pessoas; diz mais ou menos isso o jornalista na televisão. Pena, são nove e meia, precisa fazer o almoço, não poderá terminar de ver o noticiário. Mas é melhor deixar a televisão ligada, aí dá pra dar uma corridinha na sala caso apareça outro corpo soterrado. Vai pra cozinha, torra o arroz, refoga a carne moída, pica o quiabo, coloca água no arroz, bota o angu pra cozinhar, bate o feijão no liquidificador, refoga o mamão, coloca urucum e quiabo na carne moída, põe a última água no arroz, refoga o feijão batido, vira o angu na bacia de plástico que veio com sorvete, ihh!, faltou uma taioba. Corre na vizinha e busca sete folhas, lava e pica a taioba, desliga o arroz, bota mais um pingo de água no mamão, refoga a taioba, desliga a carne, desliga o feijão, desliga a taioba, desliga o mamão.
Tá pronto! Grita. São dez e trinta e cinco. Faz seu prato: 3 conchas de feijão, 5 colheres de servir de arroz, 3 colheres de carne moída com quiabo, 2 colheres de servir de mamão, 1 colher de servir de taioba e outra de angu. Enche sua taça de alumínio de coca-cola. Vai para o seu quarto, liga a televisão e senta-se na cama que fica encostada debaixo da janela. Agora o sol já está mais próximo a ela. Enquanto almoça fica vigiando a rua e as vítimas da enchente. Termina de comer em seis minutos e volta pra repetir. A quantidade é a mesma, com exceção da taioba, que acabou. Volta pra perto da janela. Termina agora em onze minutos, pois se distraiu com uma moça que ela não conhece e que ficou gritando na porta da casa da vizinha da frente do lado direito. Quem será? A moça era bonita, do cabelo vermelho, nunca tinha visto ela antes. Quem será, gente? Vai saber. Volta pra cozinha, toma mais uma taça de coca-cola e vai lavar as vasilhas, limpar o fogão e o chão e colocar o lixo pra fora. Termina às onze e cinquenta e um. Ah! Até que enfim! Deita um pouco na cama pra ver as vítimas da enchente, as fofocas dos famosos, as pegadinhas da tarde, os casos de família, e tudo mais que a televisão lhe oferecer. O sol agora está exatamente em frente a sua janela. Cochila uns trinta minutos. Acorda pingando suor. Volta pra debaixo da janela e fica até às quatro da tarde, hora em que o sol já está mais afastado, mas, como está no horário de verão, ainda está queimando feito brasa. Nada de interessante acontece na rua fora a moça esquisita de hoje cedo. Ô moça mais esquisita, credo! Quem será ela? Liga na padaria e pergunta se tem pão doce novo. Tem. Vai lá buscar. Chega em casa com doze pães doce. Come oito acompanhados de duas taças de coca-cola. Senta debaixo da janela de novo e espera pela novela das seis. Hum! Comeria pelo menos mais dois pães, mas a sobrinha tinha comidos os outros e ela estava com muita preguiça de voltar à padaria. Deixa pra lá. No intervalo da novela das seis com a das sete, toma banho. Assiste à novela das sete. Vai buscar seus dois superlitros de coca-cola. Chega, toma mais uma taça, requenta o que sobrou do almoço. Janta assistindo à última parte do Jornal Nacional e tomando mais uma taça de coca. Termina e volta pra debaixo da janela – à noite sempre tem mais movimento na rua – enquanto aguarda a novela das oito, que começa às nove e quinze, e está pegando fogo. Que calor! Mas já não há nem sinal do sol, a não ser o calor que ele deixou acumulado no quarto e que não foi embora junto com ele. Fim do capítulo da novela das oito; grita sua sobrinha pra saber se ela vai dormir em casa. Coitada!, desde que a mãe desapareceu o pai a deixa largada pra rua afora. Ah se não fosse ela!, desabafa. Deita em sua cama e fica vendo o que tem na televisão até adormecer. Dormirá profundamente até que o sol, seu maior companheiro, a desperte às seis da manhã do dia seguinte. 


Ana Luíza Duarte de B. Drummond nasceu em Ferros, Minas Gerais, Brasil, em 1988. É mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, Licenciada em Língua Portuguesa e Bacharel em Estudos Literários pela Universidade Federal de Ouro Preto. Publicou recentemente o conto “O pio da coã”, na antologia de contos Fantasiando, além de crônicas e artigos na área de Literatura e Educação.

Email: analuizadrummond@yahoo.com.br

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