sábado, 22 de agosto de 2009

De Corpo e Alma

Coluna de Aline Vilaça
Semana passada contei um pouco de quem acredito ser. Diante de tanta presunção, bom, presunção é meio pesado, diante de tantas hipóteses a cerca de mim. Faltou contar que se caso eu tiver o direito de me considerar artista, meu maior desejo e temor neste tão privilegiado e escravocrata posto está na premissa de acreditar com todo meu coração que é necessário fazer arte com Corpo e Alma.
Portanto, cumprindo a promessa de falar um pouco de artistas de verdade, começarei com uma cantora singular que este ano lembraremos com pesar dos 40 anos de seu falecimento. Falarei não só de uma cantora deslumbrante, mas uma imensa inspiração. Não só pelo fato de apresentar uma voz peculiar e que rasga o âmago, mas por ser mulher, por ser negra, por fazer arte com devoção, por cantar por necessidade, entrega, interpretação, mas principalmente por fazê-lo de Corpo e Alma.
Trata-se de Eleonora Fagan Goughem, a maravilhosa conhecida Billie Holiday. Que colocou nas ondas de seu timbre todo o sofrimento, toda a melancolia, toda a angustia, de forma sincera, carregada da verdade de quem já sofreu demasiadamente as agruras, as etapas, as lições ou a cruz de sua vida.
Na lágrima, alojada em seu olhar e no movimentar de seus lábios carnudos de interpretação articulada das letras, brilhava de forma a sorrir e perfurar sem dó, a ignorância do racismo que dilacera, exclui, e massacra a autoestima. Racismo que faz o belo acreditar em quem o ignora, faz do diferente se sentir ruim, e muitas vezes como no Brasil, faz da maioria pó.
Billie também trazia em seu rosto, em sua lágrima a infeliz infância que desestruturou o que deveria ser a época de consolidação do que proporcionaria maturidade psicológica. De maneira explícita, carregada de forma inerente a seu corpo, Holiday trazia a mutilação de quem é forçada a dar de si para alimentar seu físico, que teve o prazer roubado. Trazia a amarga vivência da provável sensação suja da culpa de prostituir-se e teve o sonho de descobrir um dos maiores prazeres da carne, do espírito, e coração levados pela violência permitida em troca de sobrevivência.
Mas, não foi violentada apenas pela sociedade racista e pelos homens de pouca esperança, mas se autoflagelou, ou puniu, morrendo aos poucos, manipulada, explorada pelo vício em substâncias que cumumente nos dias de hoje reduzem os homens a bicho.
E, por fim, representava a melancolia, a entrega, a verdade de quem é provado. De quem viveu intensamente e possui a fragilidade guerreira de quem fora sensível demais para conviver em um mundo tão injusto e contraditoriamente belo.
Mas, antes que vocês se entreguem as lágrimas, gostaria de comentar algumas músicas marcantes. Por exemplo, o clássico “Strange Fruit” que de maneira dolorosa denuncia todo o sangue negro derramado. Gostaria que vocês também ouvissem “You´ve Changed”, “Lover man”, “Don´t Explain” entre outras que falam do amor, do sofrimento amoroso, da profundidade intensa, gloriosa e torturante de quem com propriedade amou e permitiu-se mergulhar no sofrimento amoroso com ou sem medo de não mais emergir.
E finalizo, deixando aqui minha sincera paixão pela música “Body and Soul” porque Billie Holiday conseguiu devotar, entregar e dizer em palavras, voz e lágrimas nos olhos o que é o risco de propor estar para alguém, por Inteiro de Corpo e Alma.
Sendo assim, queridos, também estou “...all for you Body and Soul”!!!
Fonte:
Jornal Estado de São Paulo
19 de Julho de 2009;

BERENDT, Joachim e. O JAZZ
do rag ao rock. Editora Perspectiva




Aline Serzedello Vilaça escreve quinzenalmente aos sábados no ContemporARTES.
alyneserze@gmail.com


2 comentários:

Marcelo Augusto disse...

Impressionantemente essa semana alguém me falou sobre Billie Holiday e eu fiquei de ouvir, acabei me esquecendo e agora tenho a oportunidade de saber um pouco mais.
Pauto que ela realmente tinha uma voz incrível, com uma sonoridade que sublima tudo que há de dramático ou ruim em sua história.

Maravilhoso Aline.


Marcelo Augusto

22 de agosto de 2009 às 15:12
Unknown disse...

Cara, o jazz é demais!
É uma das maiores expressoes da música de todos os tempos. Uma verdadeira ruptura com selo de autenticidade

22 de agosto de 2009 às 16:28

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