terça-feira, 15 de setembro de 2009

Bar ContemporARTES















...palavras on the rocks, bacos e apolos, poetas e prosadores, anjos e demônios fazem encontros marcados para essa conversa de bar virtual. Sempre às 3a. feiras no ContemporARTES









AutoSabotagem - Segunda tese de bar e história contada por nós mesmos


Por Mônica Rodrigues


Num lugar mui próximo, familiar, conhecido, aí pô, pertinho de você, se passa a historieta que eu vou contar.

Passei anos nesta curta, porém, assumida vida-lascada de artista, primeiro vendo e reconhecendo esta história, depois traçando paralelos que não paravam nunca e cada vez mais me dando conta do quanto ela é comum, e por isso mesmo, tratada como “natural” e até óbvia. O ser humano é um bicho esquisito e engraçado, ele acha que só porque algo se passa diante de seus olhos muitas vezes e da mesma forma, ele conclui que é “assim que deve ser mesmo”.

Como participante de grupos de pesquisas diversas, como atriz, mais tarde como diretora e finalmente como arte-educadora, vi repetir o quadro que meus olhos na época, não conseguiam nomear, e que hoje chamo de AUTOSABOTAGEM.

O nome já diz muito. Os mais sagazes já sabem. Logicamente, a A.S. pode acontecer em compromissos banais ou de importância menor, como festas, entrega de relatórios, consultas ao dentista, provas, etc. Mas já aviso que não vou aqui discutir as ramificações do problema. Quem decide o quanto algo é importante ou banal é você. É principalmente com relação a ações que envolvem um grande dispêndio de energia, tempo e esforço, que a A.S. costuma aparecer. Ou seja, onde temperamos com muito gosto o nosso si, é que a coisa azeda.

Hoje, eu prefiro me ater a uma descrição da A.S. mais comum, a do tipo “genial”, e no lugar onde ela também é mais freqüente: no saudável e pacífico mundo da “arte”. Então se você não for aspirante da área, um artista trabalhando ou desempregado, não se chateie. Dê-me o crédito do seu tempo livre, e continue a leitura. Este texto foi escrito especialmente para eles, mas talvez seja motivo de reflexão ou piada por quem não é do ramo. Agora, se você for artista, ou alguém que cria, mas não consegue se nomear assim por vergonha ou indiferença por si próprio, está tudo certo. Só vou precisar de um favor da sua imaginação: que você se considere no tipo AUTOSABOTAGEM DO TIPO GENIAL. Vai durar só alguns minutos, não vai doer nada, e não custa nem uma cerveja.

Também não vou considerar os casos onde a A.S. apenas aconteceu ocasionalmente, uma vez na vida e nenhuma no pós-morte. Se tem uma coisa enfia goela abaixo.

O quê eu quero: pretendo com isto fomentar algumas conversas de bar, iniciar alguns debates com os mais próximos sobre o tema, e principalmente “avisar” alguns amigos de que estou sabendo o que está acontecendo. Se não conseguir poupar nem eles nem a mim da terapia, tudo bem – mesmo assim acho que vou pro caixão mais leve. Então, chega de moleza. Lá vai:

Fulano de tal é uma figura exemplar. Genioso, instigante, tem vapor pra arte. Não raro, é realmente uma pessoa excepcional, com qualidades diferenciadas, tanto no nível pessoal quanto artístico. Esta figura quer “encher-se”, como diz Nietzsche - “quer ficar bem carregada de valores caros”, e procura no seu afã, dar conta desta tarefa com avidez. Devora a vida, a bebida, os encontros, os exercícios, a aula, quer-quer-quer.

Na sua ânsia, às vezes olha atravessado para os outros companheiros de processo: considera alguns definitivamente atrasados, julga-os preguiçosos ou incultos, e em outros onde se percebe a vontade viva e pulsante - deseja no íntimo ultrapassá-los.

Nessa altura do campeonato, ainda com a imagem de Nietzsche, esta “videira carregada” revira os olhos inflados em busca do Vindimador - o grande reparador que com sua “tesoura de diamantes”, vem a tempo fazer a sua poda, e colher todos esses frutos saborosos preparados com tanto brilho e inteligência.

Mais ou menos por aí, é véspera de alguma coisa importante. Realmente importante para o genial. Lançamento de uma obra coletiva, uma estréia teatral, a inscrição ou entrevista para um processo fenomenal, o encontro de um grande poeta, um evento mágico, um instante formador de consciência, um dia ritual, enfim - uma ação singular assa no forno.

A pergunta é - e teu ser mais secreto já sabe a resposta, O QUE É QUE ACONTECE COM AQUELA FIGURA EXCEPCIONAL, O TAL DO FULANO QUE CITAMOS?

Na lata: ele a-do-e-ce. Literalmente adoece. Ele fica sem voz. Ele dormiu até tarde. Ele não conseguiu sair da balada mais cedo. Ele anotou o endereço errado. Ele foi obrigado a fazer compras com a mãe e a tia. Ele perdeu as chaves de casa. Ele ficou de porre, mas num porre maior que o normal, que o impediu de atravessar a rua. Enfim,(não importa o motivo) ele não foi.

O quê é isso? Uma cilada do maldoso destino? Um fato corriqueiro, sua louca, as pessoas adoecem e pronto. Não! É um ato falho psicanalítico-científico-apostólico-romano-comprovado, que merece anos e anos acorrentado num consultório para ser cuidadosamente mastigado, vomitado, digerido, e engolido de novo. Não também, “são coisas da vida, minha filha”.

É difícil falar dessas coisas sem cair nas rotulações já conhecidas. Talvez eu aqui esteja fazendo só mais uma. O nervo ciático da coisa é que, como disse, vi isso acontecer repetidas vezes, (só em 2008 foi um show) e sempre com “motivos diferentes”, mas todos eles - olha que engraçado - contam a MESMA história de um corpo.


Eu continuo achando que isso acontece mais com quem é excepcional do que com quem não o é. Uma vez eu disse que o aluno genial tem muito mais chance de se tornar um imbecil do que o aluno mediano ou o medíocre. Explico: o genial “se enche” mais rapidamente, tanto no nível do conteúdo quanto no da paciência. Em geral, ele suporta menos a gestação de processos e a construção de um coletivo. Resultado: ele aborta em si aquilo pelo qual não consegue mais suportar esperar.

É a figura genial que vemos depois numa praça, enchendo a cabeça de abobrinhas, fora do espaço criativo. É ele quem tem mais propensão a ser um viciado. Ou que vai abandonar de vez emprego, família, namoros. Não que isso seja garantia de alguma coisa. Mas ele arranca suas raízes todas, e balança seu tronco pensante. Acha que assim está se diferenciando. Está - concordo. Mas não cria mais para além de si. Gasta seu afã em ficar carregado com coisas mórbidas e sem nexo, que lhe tiram a saúde, o impulso vital,

e a vontade de gritar.

Sinto também que muitos são mordidos pela “síndrome da descontinuidade”, outra forma de A.S.: não conseguem encerrar ou concluir nada, (atenção não falo de diplomas, pelo amor de Deus!) e pulam de um mistério a outro, sem se absorver, encantar ou espantar com nada, repetindo sua iniciação ad infinitum.

Uma amiga ficava sem voz, totalmente, antes das estréias. Uma aluna ficava na véspera com todas as ites: gastrites/tendinites/sinusites/etc. Um amigo/aluno não conseguia dizer “até aqui e tchau” na balada, e se perdia na noite. No dia seguinte, não era mais o genial ansioso por se descarregar, era o imbecil sem folhas, sem corpo, sem roteiro de todos os tempos, que todos nós já fomos um dia. Mas... de novo? Essa fase não era pra ter ficado lá trás? (O pior de tudo é que estas pesso as não são nem um terçço do contingente).

A ressaca moral sempre dói mais que a física. Ou melhor, a ressaca moral é sempre física. No fatídico dia seginte, ele é obrigado a encarar aqueles que julgava medianos ou medíocres, contando,o sucesso e percalços de seus voos. Aquele que ensaiava há muito sua vontade palpitante, conta que alcançou o que nunca conseguiu imaginar. E ganhou maturidade. O que não movia um dedo por, ou ainda a pessoa tímida ou apegada ao superficial, encontra sua própria profundidade, e sorri um sorriso mais autêntico.

Todos eles tem o que contar. O genial – bem, ficou de fora, saiu da partida antes do apito, abandonou seu próprio jogo. Ele fica amargo consigo mesmo, às vezes se autocritica ao extremo e resmunga sua rabugice em voz alta ou baixa. Outros, nem sequer tem a chance de ter a percepção do fato, digo deste soco dado na própria cara – e se refugiam no cinismo ou na indiferença. São os primeiros a se justificar com frases como “isso sempre acontece comigo” ou “eu já sabia que isso ía acontecer”, como se falar essas coisas apagasse o borrão feito por ele em seu próprio processo. Aliás, não crêem em borrão algum, são excepcionais demais para acreditar ou aceitar que isso exista. Reparem bem: aquela figura armada até os dentes de raios flamejantes, temperados com muita individualidade, prega agora para si outras filosofias bem menos atraentes: “haverá outra oportunidade”, “não adianta ter pressa”, “pra quê correr agora?”, ou “o melhor agora é relaxar e curtir um repouso”. Eu pergunto: que historinha é essa agora? Na preparação do dia ritual tudo era importante, agora tudo fica relativo só porque ele não viu a banda passar?

Eu, como atriz, diretora, arte-educadora, e principalmente como pessoa falha, digo que NÃO. Um sonoro não. Não é hora de repousar, anjo caído, não é hora de lamber a ferida e se autoapiedar, não é hora de correr para distrações, aliás não é hora de correr absolutamente, recorrendo a Fernando Pessoa, em seu Poema em linha reta, “eu que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco”, é simplesmente hora de ficar e receber a pancada no maxilar, caro.

Desestruturar-se. Questionar no mínimo. Desorganizar-SE. Ou a gente prefere continuar culpando o ônibus, a mãe, a sinusite, a falta de grana, as companhias, o álcool, a VIDA?

AutoSabotagem. Dê o nome que queira dar, invente pra si sua análise, seu acertar de contas, e se for possível, não limpe o sangue que começar a escorrer, sinta completamente tua dor. Se era algo realmente importante, vislumbre sem orgulho teu ato criminoso, de sabotador de si mesmo.

Falo do que vi, e do que também correu na minha veia. Tive de engolir a ferrugem das minhas sabotagens. Percebi algumas mentiras cheias de culpa, ou o teatro do corpo - somatizações muito criativas. Mas sem querer me gabar, acho que tenho mais demônio (no sentido antigo de daimon) no meu corpo, do que de Cristo e autoflagelação. Minhas A.S. foram muitíssimo raras. Eu ainda prefiro o único flagelo, o inferno do público, do contato e da fricção, da maldita e sagrada exposição, do que um retiro pouco espiritual infestado de lamúria.

Como nos botamos ou nos embotamos no funcionamento da Engrenagem??

Desta forma, minha segunda tese de bar chega ao fim. Sei que não é o ideal, mas tenho a consciência de que varri para longe de mim ter que escutar a ladainha das desculpas inventivas mais uma vez. Basta para 2009? Deve bastar.

Assim, quem sabe? - no próximo instante formador, nesta aurora aguardada, neste momento de riquezas e trovões partilhados, a nossa figura pessoal e artística possa exercer sua genialidade primeira, e ficar atrás da sabotagem, onde agachar não seja preciso mais.



Monica Rodrigues é atriz premiada no Mapa Cultural de São Paulo, diretora de teatro, arte-educadora e, recentemente, estreiou como mãe. Seus textos, quase confessionais produzem reflexões ao leitor, sem ser chato e sem ser agressivo, simplesmente são.

1 comentários:

Anônimo disse...

Escreves um pequeno conto de vida-sua-intima com a sede feminina de alimentar e ser alimentada.

Vamos vê-la na peça no serraria.

bjos e força.

Z Carlos

21 de outubro de 2009 às 11:00

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