quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Estréia Coluna Um salto no futuro de hoje

O ContemporARTES estréia hoje a coluna Um salto no futuro de hoje trazendo a contribuição da doutora em História da Arte e consultora da Contemporâneos - revista de Artes e Humanidades, Fernanda Lopes Torres que nos trará mais de perto o universo das Artes Plásticas. Fernanda, seja bem vinda...





Olá leitor do ContemporARTES! Vou ocupar esse espaço com impressões e críticas sobre publicações e/ou mostras de artes visuais lidas/vistas por mim, que penso ser produtivo compartilhar com vocês. Gostaria, porém, de inaugurar essa coluna com breve referência ao trabalho de um artista, trabalho (pelo qual me apaixonei ao longo da realização de minha tese) capaz de demonstrar de modo literal a qualidade “intempestiva” do artista moderno. Eu me refiro a Yves Klein, artista francês que atua no fim dos anos 1950 e início dos 1960 pintando telas monocromáticas de um azul maravilhoso (e também rosa e ouro) e fazendo performances. Se muito eu poderia escrever aqui sobre sua obra, quero, no entanto, destacar nela um aspecto mais amplo, que diz respeito à conduta de todo artista, que experimenta a realidade presente como ninguém até então o fez. Ou seja, o artista não aceita o já está estabelecido na realidade cultural, e traz a ela algo jamais formulado até então. Este o futuro colocado em jogo pelo artista: o alcance ininterrupto de decisões. Ele se vê em permanente confronto com o estabelecido no presente, pois persegue a verdade de suas decisões, sempre visando ao que pode vir a ser - e não o que já é. Esta a inatualidade do homem contemporâneo, sintetizada por Yves Klein em um de seus vários textos como salto no futuro de hoje – expressão que intitula essa coluna, e boa legenda para a fotografia abaixo, originalmente publicada no jornal Domingo, concebido pelo próprio artista, em 1960.







Sim, como vocês podem perceber, é uma fotomontagem. Importa aqui, porém, o ato radical de lançar o próprio corpo ao ar, no “vazio”, conforme lemos nos textos de Klein e na legenda da foto – “O pintor do espaço se lança ao vazio!”.
O “pintor do espaço” alude com irreverência à conquista do espaço sideral pelo homem no fim dos anos 1950. Deve-se ir ao espaço para pintar, escreve Klein, mas sem os “truques” dos mísseis e foguetes onipresentes na mídia e no imaginário das pessoas naqueles tempos da corrida espacial. A reivindicação do artista não significa recusa ingênua do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, mas sim um alerta para um acelerado progresso tecnológico que, confundido com um progresso abrangente, acabou por se sobrepor às reais necessidades da humanidade. Afinal, a tecnologia, que deveria aumentar o bem-estar do homem, tinha levado à sua própria destruição potencial, com a eclosão da Segunda Guerra e a invenção e efetiva explosão da bomba atômica (também aludida por Klein em seus escritos).
O Klein livre no ar pode ser visto como um alerta para o que o homem é capaz de fazer com seu próprio corpo - com todo seu potencial e também com sua susceptibilidade, seus limites, sua duração enfim, como confirma a própria a “existência” de 24h da foto no jornal. A foto nos lembra desse [nosso] corpo que, afinal, inseparável da mente, pode conquistar o espaço, ou seja, ganhar o mundo com o pensamento/imaginação. É o que, aliás, toda arte nos mostra. Ao se deixar retratar em pleno ar numa tranqüila ruazinha de Paris, Klein chama a atenção para uma realidade ordinária que pode ser a nossa. Depois de ver seu gesto absurdo naquele lugar tão comum, passamos a olhar nossa própria vida, aqui e agora, de outro modo; pensamos algo que não havíamos pensado antes, e assim nos transformamos. Saltamos para o mundo, diria Klein, que nos mostra como devemos nos lançar para o novo, o inesperado, a cada momento de nossas vidas. Afinal, é justamente desses momentos que nossa vida é feita; ao longo deles a vida adquire sua duração - e passa.
Aquele que salta no futuro de hoje se apossa do momento. Na linguagem de Klein, o momento significa “sensibilidade que nos pertence”, com a qual conquistamos a vida “que não nos pertence”. Assim sua aventura monocromo reitera a conduta por excelência do artista, que, ao experimentar a realidade presente como ninguém o faz, traz a ela o que pode vir a ser - eis a espécie de futuro colocada em jogo pelo “homem de ação”, conforme expressão de Nietzsche em “II Consideração Intempestiva: sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida”. Para falar com o filósofo, “discípulo de épocas mais antigas” que se reconhece na condição de “filho do presente”, somente assim ele pode fazer descobertas intempestivas, “quer dizer, agir contra esta época, por conseguinte, sobre esta época e, esperamos nós, em benefício de uma época vindoura.”[1]
Assim Nietzsche situa “sua pretensão de ‘atualidade’, sua ‘contemporaneidade’ com relação ao presente, em uma desconexão e em uma defasagem”, afirma o filósofo italiano Giorgio Agamben. “Pertence realmente ao seu tempo”, prossegue Agamben, “é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com aquele, nem se adequa a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual. Mas, justamente por isso, a partir desse afastamento e desse anacronismo, é mais capaz do que os outros de perceber e de apreender o seu tempo”.
Nietzsche escreve quando a ciência histórica se firma como campo de conhecimento, impondo-se de tal forma que o século XIX ficou conhecido como o “século da História”. Ele ataca o historicismo em voga na Europa, principalmente na Alemanha, em meados do século XIX, a partir do fatal afastamento do sujeito humano de seu contato com sua historicidade. Pautada numa concepção temporal abstrata, a ciência histórica supõe o sentido da existência humana progressivamente revelado no curso de um “movimento silencioso e freqüentemente imperceptível, mas poderoso e irresistível, que é a marcha das coisas”[2]. Aquela história desconsidera assim nossa condição antropológica, qual seja, a de vivenciar plenamente o mundo que, a cada instante está realizado e alcançou seu fim[3].
Enquanto os “espíritos históricos” se resignam ao motor da História, aqueles “supra-históricos”, reconciliados com sua historicidade, movem-se instalados no limiar do instante. Eles podem esquecer o passado, e agir. Pois toda ação exige esquecimento. Esquecer o passado significa considerá-lo ativamente, a partir do que é mais poderoso no instante presente. Somente então abre-se a possibilidade da vida efetiva – vivida para frente Afinal, se, ao contrário do animal, estamos sim condenados a lembrar, estaremos sentenciados a não viver se não pudermos esquecer. Nesse sentido, uma cultura histórica seria portadora de futuro somente se capaz de renovar-se ininterruptamente. Em um salto no futuro de hoje.
Indico a leitura do texto de Giorgio Agamben de onde retirei o trecho citado –mote de nossos saltos aqui nesse blog.
O que é ser contemporâneo? A visão de Giorgio Agamben
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=22829



NOTAS
[1] NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre a História. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora PUC-Rio/Edições Loyola, 2005, p. 69/70.
[2] RANKE, Leopold von. Apud NIETZSCHE, Friedrich. “II Consideração Intempestiva: sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida”. Op. cit., p. 123.
[3] Idem, p. 79.




Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.


fernandalopestorres@uol.com.br

1 comentários:

Ana Dietrich disse...

fe, q vc. nos conduza nesses saltos no universo das artes......bjs, querida, obrigada pela "companheiragem"

18 de setembro de 2009 às 08:41

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