quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Comprar! Comprar!

Coluna Stage Dive
O consumismo desenfreado é um dos inimigos do punk, do hardcore e outros estilos. Foi assim desde o começo do movimento iniciado por jovens oriundos da classe operária sem esperanças em relação ao futuro de suas vidas e do mundo, sentimento ligado aos conflitos da Guerra Fria que pairavam no ar na década de 80 e à economia desestabilizada de alguns países. A música punk sempre declarou guerra ao capitalismo e ao consumismo ligado ao status, que por sua vez, teve sempre uma ligação com valores culturais de uma época. Na década de 80 no Brasil o movimento punk engatinhava devido às dificuldades dos punks de montarem suas bandas, organizarem suas gigs e lançarem seus álbuns. Apesar de todas as dificuldades, eles conseguiam êxito nos seus objetivos, e produziram diversos álbuns com a qualidade que poderiam obter.

Diversas bandas lançaram coletâneas, splits ou álbuns full-length (o “biscoitão” - como muitos chamam o vinil). Grito Suburbano, lançado em 82, trazia as bandas Cólera, Inocentes e Olho Seco. O Ratos de Porão, Cólera, Psykóze e Fogo Cruzado dividiram as faixas da coletânea SUB. Quem produziu esses álbuns foram o Fabio Sampaio (ex-vocal do Olho Seco) e o Rédson (vocal e guitarra do Cólera). Ou seja, um movimento totalmente DIY, eles levavam o lema "faça você mesmo" ao extremo. Dessa forma o punk e o hardcore que surgiu depois, principalmente com as bandas Minor Threat e Black Flag dos EUA teve início aqui no Brasil por volta de 87 com o próprio Ratos de Porão, que mudou o som pro crossover, além do Ação Direta, Grinders e Lobotomia (considerado pelos thrashers como os "pais do crossover brasileiro").

Até aí tudo ia bem, porém, no início dos anos 90, depois que o grunge alterou os padrões da contracultura e da música independente underground devido ao sucesso que fez com Nirvana, Pearl Jam e Alice in Chains e a massificação do punk feita pela TV, principalmente pela MTV, o negócio que era feito com garra, amor e sangue nos olhos deu lugar à comercialização. O punk e o hardcore foram vítimas deles mesmos. Como diz a letra de "Geração Domesticada" do Porcos Cegos: "Rebeldia se tornou uma fatia de mercado". Se por um lado o hardcore melódico do Bad Religion, NOFX, Pennywise solidificou a música hardcore, por outro lado abriu espaço para bandas como Blink-182, Sun 41 e todas essas bandas que tem número no nome.

A coisa desandou feio. Nos anos 90 existiam bandas que, apesar de uma popularidade, de encher estádios e tocarem nas rádios FM como Green Day, Rancid, Offspring; que sempre serão respeitadas, o ruim foi aturar essas bandas denominadas pop-punk. Nessa década vimos o emo invadir rádios, espaços de shows, programas de TV (e para desgosto de muitos, até a Galeria do Rock ficou cheia deles). Dessa vez, são os From Uk, também conhecidos como moderninhos (não me perguntem de onde surgiram). Tais bandas se intitulam hardcore cheias de pose e vazias de idéias politizadas, sem a chamada essência do verdadeiro punk e hardcore.

As letras dessas bandas tratam apenas de coisas sentimentais de uma forma fútil, assim como o emo, e existe uma comercialização estratégica nesse sentido, talvez por serem denominados "a tribo da moda, do momento". A música e a ideologia do punk e do hardcore ficam manchadas por isso, por existirem novos estilos que de forma direta e indireta, pregam valores totalmente contrários aos valores do punk e do hardcore.

Vou postar hoje uma letra do Dead Fish, banda do Espírito Santo com 18 anos de estrada e 6 álbuns de estúdio. Uma letra presente no primeiro e excelente álbum da banda Sirva-se de 1997 que fala sobre consumismo na nossa sociedade. Analisando a letra é possível fazer uma comparação do quanto somos ligados ao consumismo, ao status. E mais uma letra super curta do Discarga, uma das minhas bandas favoritas.

Dead Fish - Compra!

Hoje acordei com uma vontade de comprar
pois ontem na TV vi pessoas a pedir
porque eu não sei de nada
mas na verdade finjo nem saber
pois quando estou angustiado eu sei o que vou fazer
Comprar! comprar
Meus filhos não vão perceber
propaganda e marqueting vão ser
sua escolha não vai ensinar nada não
Nada não!
Não adiantaria pedir, nem apelar por distribuição aqui
Essas pessoas me olham e no fundo
querem ser iguais a mim
Pra que ficar com pena se tenho tudo
que eles querem ter
No fundo sei que estou errado
mas continuo propagando o poder de ostentar
Será que você sabe quanto custa
Sua ânsia de comprar?
Tão infeliz será com tudo que dinheiro
pode demarcar
Seita consumista cega sem saber
Será que “bens” materiais irão te completar
Não vou distribuir não quero saber
Distribuição? Não!
Distribuição? Não, não, não!


Discarga – Jogo da Vida

Nascer, crescer e morrer
Este é o jogo da vida
Só que ele não é tão simples assim
Antes disso eu quero um
carro, um monte de contas pra pagar
Porque só consumindo com um cartão de crédito é que eu vou conseguir me realizar




Entendendo a cena:

full-length: Álbum completo de uma banda.
split: Álbum de 2 bandas.
grunge: Movimento musical iniciado no final de 1988 em Seattle, capital de Washington, EUA. Foi um movimento underground de negação ao consumismo, aos valores sócio-culturais dos EUA e a proposta de uma vida simples, sem se prender aos bens materiais. Liderado pelo Nirvana, teve milhões de fãs, jovens no mundo todo. Com o suicídio de Kurt Cobain, líder do Nirvana em 1994, o movimento perdeu força e desapareceu. Em seguida surgiram o pop-punk com bandas de adolescentes e com um som voltado aos jovens de classe média com grande apelo comercial. Mais tarde surgiu o new-metal, um som mais pesado, porém com o mesmo apelo comercial.




Dennys Felipe Nascimento de Oliveira escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.

dennys_bangerkill@hotmail.com

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