quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

DUAS FOTOGRAFIAS e UMA PEQUENA REFLEXÃO SOBRE O BEIJO


     Na edição de hoje, escolhi duas fotos históricas para serem analisadas. O objetivo é traçar um paralelo entre ambas, jogando com elementos de oposição e similitudes, que por força da magia que envolve o ato fotográfico coloca as oposições não em campos excludentes, mas complementares. As duas imagens, têm em comum o tema da paixão, expressada pelo beijo em público. A primeira é uma das mais famosas do século XX, feita em Nova York e a outra, também muito conhecida, realizada na França, é considerada uma das mais vendidas no mundo. Trata-se do Beijo da Times Square e do Beijo do Hotel de Ville.

     A primeira foto foi um instantâneo feito por Alfred Eisenstaedt (1898-1995) em 14 de agosto de 1945, no dia da rendição do Japão na segunda guerra mundial, onde um soldado da marinha norte-americana beija apaixonadamente uma enfermeira. O que chama a atenção nesta foto em primeiro lugar é o fato de que – coisa fora do comum para aquela época – os dois personagens não eram namorados ou casados, e sim perfeitos estranhos que haviam acabado de encontrar-se. Esta foto tornou-se um grande ícone, sendo considerada uma analogia da excitação e paixão que significa regressar ao seu país, depois de passar uma longa temporada fora, como também a alegria experimentada pelo término de uma guerra.

     A outra foto foi feita alguns anos depois, em 1950 por Robert Doisneau (1912-1994), Le baiser de L’Hotel de Ville. Ela contém uma intrigante história que é como foi descrita durante muitos anos: o autor encontrava-se sentado em um café e registrou-a distraidamente, enquanto acionava sua câmera entre os passantes acabando por captar essa imagem dos namorados que se beijam enquanto caminham entre a multidão.  

     Esta era a história oficial até o ano de 1992, quando dois impostores se fizeram passar pelo casal protagonista da foto. Doisneau indignado pela falsa declaração, revelaria a versão original desfazendo assim a lenda: na verdade, a fotografia não tinha sido tirada a esmo: o fotógrafo tinha pedido a dois desconhecidos que posassem para ele, enviando em seguida uma cópia da foto como agradecimento. Françoise Bornet, a mulher da foto, reclamou os direitos de imagem cinqüenta e cinco anos depois, e recebeu 200 mil dólares como indenização.

    Estas as historias que envolvem as fotos, vamos agora às análises, lembrando em primeiro lugar que no dizer de Vilém Flusser, a fotografia pela sua natureza de imagem, pertence ao “mundo da magia”, em oposição ao “mundo da consciência histórica”, eminentemente racional, nascido com o advento da escrita linear há mais ou menos quatro mil anos. Mas por se tratar de uma imagem técnica, isto é, imagem analógica produzida por um aparelho que é, por sua vez, resultado da cultura escrita, a fotografia também pertence ao mundo da consciência histórica. Esse paradoxo, característico da fotografia, a coloca como uma espécie de ponte entre dois mundos. Ela pertence ao universo da arte ao mesmo tempo que ao da ciência.

   As duas fotos foram feitas em preto-e-branco o que já as diferencia totalmente do fato de que se feitas em cor, provocariam outras interpretações. Muito se diz de que a fotografia em pb representa a realidade, enquanto que a fotografia em cores pretende imitar essa mesma realidade. Apesar de ser uma afirmação simplista, ela toca no cerne da questão ao aludir aos processos e códigos de linguagem diferentes, tanto nos procedimentos técnicos, quanto na mecânica de leitura e no grau de impacto sobre quem as vê, ainda que guardem semelhanças de origem e natureza. 

    A foto colorida seria assim, aparentemente, mais fácil de fazer pelo fato de que vemos colorido desde que nascemos, e porque mesmo que não saia perfeita em termos de enquadramento e foco, apresenta outras variáveis para que se localize seu significado imediato e isso é o suficiente para o senso comum. Porém, a estética da cor na fotografia é relativamente recente, conseqüência dos avanços tecnológicos e industriais nessa área. As fotos em questão foram feitas em preto e branco o que por si só já representa uma linguagem, já que Cartier-Bresson teria afirmado que a foto em cores é incapaz de reproduzir com fidelidade o real.

    Assim, o processo em preto-e-branco se coloca fundamentalmente como uma representação do essencial, porque ao representar uma cena apenas com tons e linhas ela se define como um código diferenciado da nossa forma natural de ver a realidade, ganhando maior poder de penetração e de interpretação das situações, ela é semelhante sem ser igual, testemunhando e interpretando a partir de sua própria diferença.

    Flusser considera que o universo fotográfico representa o mundo “lá de fora” e reflete a título de uma filosofia da fotografia, de que no mundo de fora, não existem cenas em preto-e-branco. Assim, para ele, o preto e o branco são situações “ideais”, situações-limite porque na teoria da ótica, o conceito de branco representa a presença total de todas as vibrações luminosas e o preto representa a ausência total dos mesmos. Assim, continua ele, não existem cenas ‘reais’ em pb, mas nas fotografias, sim. 

  Essa questão gera um ponto crucial quanto ao problema da crítica da fotografia, porque ao contrário da pintura onde se procura decifrar idéias, o crítico de fotografia deve decifrar, para além das idéias, os conceitos. As fotografias em preto e branco seriam para ele, resultado de um tipo de maniqueísmo munido de aparelho, porque funcionam.

   Elas funcionam, segundo Flusser, porque transcodificam determinadas teorias, em princípio teorias da ótica, em imagem, e ao fazer isto, magicizam tais teorias, transformando seus conceitos em cenas. As fotografias em preto e branco seriam assim, a magia do pensamento teórico, conceitual, e neste ponto é que para o autor, reside o seu fascínio, revelando a beleza do pensamento conceitual abstrato. “Muitos fotógrafos preferem fotografar em preto-e-branco, porque tais fotografias mostram o verdadeiro significado dos símbolos fotográficos: o universo dos conceitos”. 

   Para esse autor, as cores preta e branca, são mais “verdadeiras”, enquanto que as demais cores das fotografias são “mentirosas”, escondendo a complexidade teórica que lhes deu origem, citando como exemplo o “verde kodak contra o verde Fuji”.

   Seguindo essa linha de raciocínio, poderíamos dizer então que a primeira foto, a do beijo em Times Square contém os elementos dessa “pureza conceitual” de que fala Flusser, porque feita em preto-e-branco, contém os dois gêneros masculino e feminino unidos por um beijo, sendo que um dos personagens, o homem, é aquele que faz a guerra, que mata, fere, e que poderia representar tanathos, o principio da morte para os gregos, já a figura feminina, uma enfermeira, é aquela que cuida, trata, recupera os feridos, zela pelo seu bem-estar, poderia representar o elemento Eros, o princípio do amor para os gregos.


Beijo na Times Square (Foto: Alfred Eisenstaedt)

     Assim como existe uma sintaxe na linguagem escrita, pode-se falar em uma sintaxe fotográfica. Para efeito de análise, a imagem pode ser lida e a leitura tem que começar por algum ponto, que é o elemento visual a partir do qual se constrói a fotografia. O ponto principal, aquele de reconhecimento imediato e universal, é o primeiro elemento que chama a atenção em uma fotografia, mas que não deve ser confundido com a idéia de punctum, conceito desenvolvido por Roland Barthes e descrito em sua última obra, A Câmara Clara.

    A propósito do punctum, Guran, esclarece que ele é o ponto que nos toca mais subjetivamente, de acordo com nossas experiências e vivências pessoais. Poderíamos lembrar também do momento decisivo de que fala Cartier Bresson, aquele em que todos os elementos se organizam para dar significado fotográfico a uma determinada situação.

     Flusser em sua Filosofia da Caixa Preta, conjectura as “intenções” existentes por parte do fotógrafo e também do aparelho, a câmera fotográfica. Para ele, existem pontos de convergência e divergência nas intenções de ambos. Quando convergentes, aparelho e fotógrafo colaboram, nos pontos divergentes, se combatem. Assim, toda fotografia é o resultado dessa dialética de colaboração e combate, que em algumas situações se confundem. Para ele, uma determinada fotografia só é decifrada quando se tiver analisado adequadamente o modo pelo qual a colaboração e o combate nela se relacionam.

     Os critérios para julgar uma foto seriam assim, a capacidade de responder a determinadas questões: quando contempla uma foto o crítico deve perguntar até que ponto o fotógrafo conseguiu apropriar-se da intenção do aparelho, submetendo-o à sua vontade e que métodos utilizou, indo da astúcia até a violência. Da mesma forma deve perguntar até que ponto o aparelho conseguiu desviar a intenção do fotógrafo para os propósitos nele programados. Assim, segundo ele, as fotografias “melhores” seriam aquelas em que houve a supremacia da intenção do fotógrafo sobre o aparelho, ou seja, a vitória do homem sobre a máquina.

    Ainda segundo Flusser “fotografias são imagens técnicas que transcodificam conceitos em superfícies”, e decifrar tais fotografias seria descobrir o que os conceitos significam. Portanto, em uma foto sempre se confundem duas intenções codificadoras: a do fotógrafo e a do aparelho. A fotografia seria assim, uma mensagem que articula ambas as intenções codificadoras.

Beijo no Hotel de Ville (Foto: Robert Doisneau)

     Levando-se em consideração todos esses elementos, poderíamos dizer que o beijo em questão, sendo o elemento central em ambas as imagens, é também de certa forma,o punctum, que por sua vez se aproxima do conceito de ponto central de Flusser, que é para onde todos os olhares convergem, o ponto focal, tanto daqueles que olham a foto, como daqueles que nela aparecem como coadjuvantes. Mas o diferencial no beijo nas duas imagens, uma vez conhecidos os contextos em que foram produzidas, é o da ação espontânea no caso da primeira foto, e o da ação produzida para efeito de imagem na segunda. É o do impulso da emoção que foi habilmente registrado por Eisenstaedt, e da frieza planejada de Doisneau para causar impacto visual.

    Na primeira foto (até onde se pode saber), houve o instantâneo, a chamada “candid photography”, a foto espontânea, que é a base do fotojornalismo. Na segunda, uma composição estudada, programada, produzida. Em suma, o beijo “falso” e o beijo “verdadeiro” para sermos categoricamente maniqueístas.



Referências:

Flusser, Vilém- Filosofia da Caixa Preta, Editora Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002

Guran, Milton- Linguagem Fotográfica e Informação- Editora Gama Filho, Rio de Janeiro, 2002.

Barthes, Roland- A Câmara Clara, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

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Izabel Liviski, é professora e fotógrafa, doutora em Sociologia pela UFPR, escreve a Coluna INcontros desde 2009 e é também co-editora da Revista ContemporArtes.

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