A ARTE DE VER
Hoje, pretendo compartilhar com vocês um texto de Rubem Alves, escritor e educador de 76 anos. É um texto que gosto muito e com o qual me identifico inteiramente:
“Ela entrou, deitou-se no divã e disse: Acho que estou ficando louca. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões, é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto.
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver.
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza, só viam o lixo.
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu, virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa: garrafa, prato, facão, era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção.
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas.
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar “olhos vagabundos”.
P.S.: Desde criança eu gostava de observar cogumelos de todo tipo, possivelmente porque a representação desses seres vivos passa necessariamente pelo imaginário de casas de duendes e acontecimentos mágicos. Um dia, já adulta, andando pela Praça Carlos Gomes em Curitiba, numa luminosa manhã de setembro, me deparei com aquele cogumelo enorme em uma das árvores parecendo um pedestal, uma peanha de madeira, termo que é usado para essas peças de decoração. Estava com minha câmera em punho, e fiz fotos de vários ângulos. Fiquei admirando aquilo e mais ainda, admirada de que as pessoas passavam sem nem mesmo notar aquela maravilha. Ao editar minhas fotos, percebi que o contraluz dava um toque especial à minha descoberta, em pleno centro da cidade. E é esta foto que trago hoje para ilustrar a página.
Izabel Liviski, Mestre em Sociologia na linha de Imagem e Conhecimento pela UFPR e consultora da Contemporâneos, escreve quinzenalmente às 5ªs. no ContemporARTES.
3 comentários:
Eu sou admiradora de Rubem Alves. Leio suas crônicas no Correio Popular de Campinas e na revista Mente & Cérebro. Recorto e guardo. Releio. Os textos dele são presentes.Não li um até hoje que não me ensinasse algo!
11 de março de 2010 às 08:47Simone Pedersen
Adorei o texto! Vou utilizar com meus alunos (sou professora de Arte). Além disso a mensagem da Izabel de sua experiência com os "cogumelos" e o resultado visual complementa tudo de maneira especial. Um abraço.
11 de março de 2010 às 15:57Geny Santos Nowisck - UFPR
Bela escolha, Izabel. Os professores devem ter adorado.
12 de março de 2010 às 17:59Bjs
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