sexta-feira, 19 de março de 2010

Faz bem assitir Eduardo Coutinho


Em seu primeiro longa, Cabra Marcado para Morrer (1964-1984), Eduardo Coutinho tece uma intrigante relação entre memória, tempo e lugar. Um filme sobre as Ligas Camponesas, que tem o falecido João Pedro como personagem central. Em 1964 começam as filmagens com locações "verdadeiras" e os próprios camponeses como atores. Mas, com o golpe militar, a produção se inviabiliza, havendo apreensão do material e a prisão dos camponeses atores, restando-lhe apenas parte do material que estava sendo revelado no Rio de Janeiro. Coutinho vê-se obrigado a parar o filme. Dezesseis anos depois ele retoma o cenário, não para filmar a história de João Pedro, mas para filmar a história da história do filme e de cada um de seus personagens. Cabra Marcado tornou-se um clássico do cinema nacional. Mais recentemente Coutinho iniciou uma fase muito produtiva, com a realização seguida de seis filmes em oito anos: Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002), Peões (2004), O Fim e o Princípio (2005), e seu último filme, Jogo de Cena (2007).

A fronteira entre documentário e ficção sempre foi tema de várias discussões entre teóricos, espectadores, produtores e cineastas. Coutinho cria, com grande maestria, nessa tênue fronteira. Em seus mais de 40 anos de cinema, sua paixão foi sempre de contar histórias de pessoas; na verdade são elas mesmas que contam suas próprias histórias. Coutinho dá voz às personagens, como num discurso socrático e, com grande sutileza, expõe os acontecimentos, os sentimentos e emoções de pessoas comuns, que passam desapercebidas no nosso cotidiano. As personagens são levadas a narrar sobre aquilo que à primeira vista lhes pareciam oculto e banal, mas que adquire fôlego novo na interação com o diretor. Ele sempre acreditou no cinema que conta histórias, com envolvimento e propriedade. Não fala sobre sociedades primitivas, pois não entende nada dessas pessoas; prefere que seus filmes estejam na proximidade de pessoas e questões sociais e culturais que, de certa forma, o intriga e o cerca. Busca no indivíduo o ser social.

Tenta e acerta quando coloca suas personagens reais ou ficticías em confronto com suas lembranças. Utiliza um método de filmar que privilegia o local - cenário - onde as experiências ocorreram, estabelecendo um elo entre lugar e lembrança. Por esse motivo é que procura ir ao encontro de suas personagens em sua intimidade, como o faz em Edifício Master, no qual ele e sua produção se hospedaram por um mês em um dos apartamentos do Edifício. Realizou sua proposta de entrar no universo físico das pesonagens e utilizá-lo para ativar o discurso dos entrevistados. Os objetos são incorporados e desencadeadores da memória. O objeto se torna biográfico, portanto preenchido de significados e sentimentos. O apartamento do entrevistado traz informaçoes daquilo que a personagem viveu, a história do físico, do visceral. Faz um paralelo interessante entre o público e o privado, com cenas dos corredores e saguão em contrapartida com cenas do interior dos apartamentos.



Em Peões, Coutinho utiliza imagens gravadas em vídeo (arquivo), que retratam o movimento sindical dos fins dos anos de 1980. Busca na memória dos ex-operários do ABC as lembranças de uma época marcada por lutas, demissões e conquistas. Em seu último filme, Jogo de Cena, a fronteira entre ficção e realidade é ainda mais borrada. Atendendo a um anúncio de jornal, oitenta e três mulheres contaram suas histórias de vida, das quais foram selecionadas vinte e três para serem filmadas. O lugar escolhido: Teatro Glauce Rocha no Rio de Janeiro.

Não foi à toa a escolha de um teatro para a realização das filmagens, pois é lá onde a realidade e a representação dialogam. Atrizes como Marília Pera, Andréa Beltrão e Fernanda Torres foram chamadas para interpretarem as histórias dessas mulheres. A mistura entre personagem e ator chega ao ponto de Coutinho se transformar também em ator e cúmplice das histórias. O filme mescla cenas das atrizes e das mulheres escolhidas contando as mesmas histórias, com emoção e propriedade. De costas para a platéia vazia elas vão aos poucos tecendo suas histórias que falam de questões sociais, de dramas pessoais e de acontecimentos íntimos. As atrizes famosas são intercaladas a outras não tão famosas, deixando o espectador em dúvida sobre a real identidade das personagens.

Esse jogo entre realidade e encenação dá brilho próprio a seus filmes. Eles nos fazem rir, chorar e desvela o surpreendente das personagens e de nós mesmos, valorizando o efêmero e a história. Que bom que o Coutinho existe e é brasileiro. Salve Coutinho!

Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e escreve quinzenalmente às sextas-feiras no ContemporARTES.

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