quinta-feira, 18 de março de 2010

Viagem através do espaço do passado num museu vivo




Também merece nota outro filme que revi durante pesquisa na Multirio: Arca Russa, de Aleksandr Sokúrov. Todo passado no Museu L’Hermitage, museu que contém uma das maiores coleções de pintura do mundo e os tesouros do Império Romanov, o filme proporciona sensação de uma ininterrupta viagem ao longo de 300 anos da história russa - intervalo temporal correspondente à circulação espacial por 33 salas do Hermitage pela câmera do diretor de fotografia Tilman Buettner (o mesmo de Corra, Lola, Corra), num impressionante plano-sequência, único, de 97 minutos, animando, num mesmo plano, a tela diante nós, personagens de tempos distintos que interagem em fluxo contínuo. A sensação é a de flutuar pela história.
Surgem na tela cenas da vida dos czares russos em ordem cronológica: Pedro, o Grande; Catarina, a Grande assistindo a um ensaio no teatro; Nicolas I numa cerimônia formal em que recebe as desculpas do embaixador da Pérsia pelo assassinato de diplomatas russos; Nicolas II toma café da manhã com sua mulher Alexandra e seus filhos, inclusive Anastasia e o hemofílico Aléxis; por fim o último baile do Palácio de Inverno (agora o prédio principal do Museu Hermitage) em 1913. Ao mesmo tempo, surgem personagens de diferentes épocas, rompendo a cronologia da dinastia Romanov: diretores antigos e atuais do museu discutem problemas de conservação, e sintomaticamente se preocupam com a incompreensão das autoridades acerca daquela herança cultural; visitantes contemporâneos colocam-se perto de personagens históricos. E o tempo pode passar num átimo: se durante o ensaio do Teatro Hermitage a imperatriz Catarina é uma jovem, poucas salas mais tarde ela já é uma mulher idosa. O clímax do filme é um baile majestoso, com centenas de convidados trajando belíssimas roupas de época, e uma orquestra completa, seguida por um longo final, com uma multidão descendo a Grande Escadaria do palácio.

O singular plano-sequência pelo qual o filme é conhecido segue desenvolto o propósito do diretor, que, “curioso para saber como seria habitar uma obra de arte, um monumento arquitetônico”, vê “o tempo em sua totalidade, um presente contínuo”. Afinal, “é preciso estar dentro dele, sentir-me integral como o espaço artístico, esta arquitetura indivisível”, afirma Sokúrov, que através dos olhos do narrador, vaga pelos corredores do Museu Hermitage, em São Petersburgo e interage com um elenco de centenas de atores e os quadros ali expostos, como se fossem seres vivos (e não são?, questiona Cleber Eduardo em crítica na revista digital Contracampo).

O narrador é o diretor, que não é visto por nós, correspondendo sim a nosso ponto de vista. Segundo Sokúrov, optar pela ausência de cortes/edição significa recusar a manipulação do espectador, tal como ocorre nos filmes com montagem. Mais do que isso, ressalto, o fluxo contínuo permite a interação entre tempos distintos. Assim, como um cicerone, ele nos conduz pelos eventos/salas da arte/história russa – tal qual o historiador Jacob Burckhardt que, no século XIX, nos guia pelas obras de arte em Florença, na medida em que considera a arte como fundamental para o entendimento histórico, pois, é nela que se pode captar o que há de constante em uma dada cultura. (Em tempo: Sokúrov é historiador).

Sokúrov exibe então, cinematograficamente, sua noção historiográfica, a de uma história não-linear. Através de ininterrupto movimento de câmera ele percorre suavemente o espaço, os personagens, como se a acariciá-os, proporcionando praticamente uma experiência fenomenológica - acompanhamos o filme com todo nosso corpo...

Ele é acompanhado pelo personagem do “europeu”, visível para a platéia, baseado no Marquês de Custine, que visitou a Russia em 1839, tendo escrito um livro, muito lido, sobre essa visita. Guia do narrador/nosso guia pelas salas do museu, o europeu zomba da civilização russa como um fino verniz da Europa sobre uma alma asiática – assim como o faz Custine ao longo de seu livro. O europeu encarna o conflito de identidade russa, dividida entre a tradição eslava e a vontade de ser européia, e vivenciada pela relação dos nossos dois narradores: o russo, invisível, e o europeu, visível, como que perdidos pelos quadros, sem direção futura definida (como nós, espectadores a flutuar pelas imagens, inebriados... ) .

“Parecemos flutuar”, confirma o narrador/diretor na seqüência final do filme que representa o último baile imperial em 1913, “parece um sonho”, ele afirma a sugerir o caráter de construção da história – proporcional ao do cinema, afinal, que aqui, no baile do ocaso do czarismo, é dado por uma abertura de tirar o fôlego, quando a câmera adentra o grande hall com centenas de dançarinos maravilhosamente vestidos, a bailar ao som de uma orquestra sinfônica. Após seqüência de manobras de câmera sutilmente vertiginosas, o baile termina, e a multidão de convidados desce a grande escadaria do palácio e se começam a se encaminhar para a porta – como um ponto de fuga.

A essa altura o europeu aceita a Rússia como uma nação européia, e decide ficar por lá, enquanto o narrador sai do edifício através da saída lateral. A câmera se desloca para a esquerda, do ponto de fuga da portado edifício para o horizonte sugerido pelo mar lá fora. E numa seqüência digitalmente aumentada, o Hermitage é apresentado como uma arca a preservar a cultura russa, flutuando no mar. "Estamos condenados a navegar sempre", conclui o narrador ao final. Navegar sem uma bússola, pois o passado, sugere o diretor, não é necessariamente indício para o futuro.

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