quinta-feira, 25 de março de 2010

ZEN E A ARTE DA FOTOGRAFIA


Paulo Leminski (1944-1989), poeta curitibano conhecido no Brasil inteiro, fez certa vez essa reflexão relacionando o hai-kai e a fotografia, de que escolho alguns trechos:


O fotógrafo Jack Pires e o poeta Paulo Leminski, autores de “Quarenta clics em Curitiba” de 1976. Foto de Jack Pires e Paulo Leminski



“Como pode haver tanta afinidade entre uma velha forma da poesia japonesa e a mais jovem das artes? Os parentescos íntimos entre o ‘hai-kai’ e a fotografia me intrigam, desde que comecei a me interessar por essa estrutura poética mínima que os japoneses praticam há mais de quatrocentos anos.

O hai-kai é a mais breve forma de poesia possível. Formalmente é constituído por 21 sílabas, divididas em três linhas, uma de cinco, outra de sete, mais uma de cinco. Essa forma fixa, hoje muito praticada no Ocidente e no Brasil, no Japão é parte de um conjunto plástico maior: vem com o integrante de um desenho, que mantém com o texto relações gráficas muito íntimas, ambos desenho e texto, traçados a pincel num mesmo momento da composição.

Como tudo no Japão, sua prática está profundamente influenciada pela filosofia Zen, essa quase-não-religião, que valoriza o cotidiano e a instantaneidade, a materialidade e a imediatidade da experiência, contra a pobreza do pensamento conceitual e a tirania do mundo das palavras.

O hai-kai valoriza o fragmentário e o insignificante, o aparentemente banal e o casual, sempre tentando extrair o máximo de significado do mínimo de material, em ultra-segundos de hiperinformação.

De imediato podemos ver em tudo isso os paralelos profundos com a estética fotográfica. Esses traços característicos do hai-kai podem ser transpostos sem nenhuma dificuldade para a fotografia.

O verdadeiro hai-kai é aquele que desponta de súbito, inteiro, íntegro, sólido objeto do mundo, num momento decisivo que não depende da vontade, do arbítrio do poeta. Como o ato de bater uma foto.

Fotos e hai-kais são ícones: ícones são coisas, coisas não têm tradução. Um iconesó pode ser adequadamente comentado por um outro ícone: é o que faz a história da arte, o jogo vital das influencias, citações, cópias, paródias, pastiches.

O ícone é o signo produtor de significados. Ele é ativo, radioativo, sujeito, não objeto. Por isso podemos levar mil horas falando sobre uma foto sem esgotar suas possibilidades de significar que, afinal, dependem também, e sobretudo, da consciência que lê ou vê.

O livro de cabeceira de Cartier-Bresson era o “Zen e a Arte dos Arqueiros Japoneses” de Eugen Herrigel, que era um professor alemão de filosofia e que foi lecionar no Japão onde se interessou pelo Zen. Quis fazer um curso sobre a doutrina, só para ficar sabendo que o Zen só é acessível através de práticas, de artes (ikebana, judô, arco-e-flecha, kendô).

O Zen não é transmissível através de palavras ou cadeias de raciocínios. Herrigel escolheu o “kyu-do” a arte do arco-e-flecha. Ficou anos nessa prática. Seu livro extraordinário é o relato claro e emocionado de sua experiência.

Nesse quadro de parentescos, alguém poderia objetar: mas há uma diferença, uma foto é feita com uma máquina, um hai-kai, não.

Ledo engano. O hai-kai também é feito através de uma máquina, sua estrutura formal. O que é um esquema formal senão uma máquina mental?”

Paulo Leminski e o fotógrafo Jack Pires realizaram em 1976 o álbum “Quarenta clics em Curitiba”, numa caixa com pranchas soltas contendo fotos e hai-kais, que foi reeditado recentemente em exposição comemorativa aos vinte anos de morte do poeta.


Izabel Liviski, Mestre em Sociologia na linha de Imagem e Conhecimento pela UFPR e consultora da Contemporâneos, escreve quinzenalmente às 5ªs. no ContemporARTES.

2 comentários:

Unknown disse...

Olá!
Faço doutorado na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, RJ e certa vez escrevi um artigo sobre Paulo Leminski intitulado "Entre o verbal e o visual:o haikai e a fotografia na poética de Paulo Leminski". Está publicado na Revista "A cor das letras" da Universidade Estadual de Feira de Santana, BA. Para acessá-lo, é só clicar www.uefs.br/dlet/publicacoes.htm A revista é a número 8 de 2007.
Abraços
Ana Maria Abrahão abrahao-ana@ig.com.br

28 de março de 2010 às 20:16
Unknown disse...

Muito legal. como diria o Bashô...
古池や
蛙飛びこむ
水の音

8 de abril de 2010 às 18:53

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