sexta-feira, 14 de maio de 2010

Santiago, o mordomo de João Moreira Salles e Santiago, 2006, o filme.


 







André, um antigo colega de faculdade, disse-me certa vez que ao visitar o programa Bambalalão da TV Cultura sentiu uma mistura de fascínio e tristeza. Fascínio pois pode conhecer ao vivo os personagens que desde pequeno vira pela TV; tristeza por ver que por detrás de todo aquele mundo fantástico existia trabalho duro com pessoas de verdade e que quase nada daquilo visto no mundo mágico seria possível no mundo real. Talvez essa tenha sido a sensação que tive ao assistir Santiago, 2006, de João Salles.

Conheci João Salles em 1999, no cinema da ECA, quando comentava a respeito do filme Notícias de uma Guerra Particular. Com uma voz calma e tranqüila conversava com os alunos a respeito do filme, das situações vividas por ele em decorrência do envolvimento com Marcinho VP e duvidava do poder da arte em modificar o cotidiano das pessoas, das situações e conseqüentemente do mundo. Desci antes de acabar o debate pois tinha pressa para chegar ao trabalho. Pude ver que havia um carro importado com um chofer dentro, bem em frente à ECA, e pensei: esse rapaz dentro do carro está esperando o João. De qualquer forma não podia ter certeza de que aquele carro era de fato de João, mas certamente o era.  Fui embora pensando no filme, em João e em tudo que ele havia dito e questionado a respeito do filme e da vida.

O que mais me impressionou foi a figura de João Salles, ele, acostumado a viver em um mundo glamoroso, estava ali apresentando seu filme sobre o morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, falando sobre policiais e traficantes com vigor, propriedade e energia. Fiquei extasiada com o que vi. Um filme sobre uma realidade nua e crua que possuía uma incrível beleza oriunda da poética das que imagens e dos textos. O filme foi tecendo a vida daquelas pessoas, traficantes e policiais que, apesar de viverem experiências diferentes, povoavam o mesmo território.









Pouco tempo depois João Salles começa a rodar seu novo filme, Nelson Freire, lançado em 2003. Nesse filme João desvenda a intimidade desse grande pianista brasileiro que, com seu talento, corre o mundo. O filme sobre Nelson Freire possuía a mesma sensação de propriedade vivenciada em Notícias de uma guerra particular. Foi maravilhoso viver a trajetória de Nelson Freire pelas lentes de João. Os momentos de angústia que o pianista sentia antes de entrar em cena, sua timidez, discrição e sua maravilhosa interpretação, ganharam força e magnitude pelas lentes do diretor.






O filme Entreatos, 2004 foi realizado por João Salles com o propósito de acompanhar, no período de 25 de setembro a 17 de outubro de 2003, o então candidato a presidência da República Luis Inácio Lula da Silva, filmando juntamente com Walter Carvalho os bastidores da campanha para o segundo turno. Com imagens exclusivas de conversas privadas e de reuniões estratégicas, João invade o território de Lula mostrando cenas de dentro do pequeno avião onde o candidato combinava e resolvia assuntos políticos, intercaladas a cenas com familiares em lugares casuais. Podemos ver José Dirceu, Aloísio Mercadante, Marco Aurélio Cunha, Luís Gushiken, Marta Suplicy ou Antônio Palocci como personagens desse cenário político marcadamente tenso. Ao que parece Lula se destaca de seu opositor pela sua  disposição, calma, segurança com que tratava de questões familiares ou políticas. Aliado a isso estava o seu senso de humor, que deixa transparecer seu amor pelo futebol e a imensa vontade de tornar-se o presidente da República.

O filme consegue arrancar momentos mágicos e sublimes dessa importante transição na política brasileira, na qual pela primeira vez o povo elegeu um presidente como Lula, oriundo da classe trabalhadora.  Nas  imagens finais do filme, quando Lula recebe a notícia de que ganhou as eleições, ele se emociona ao ver uma reportagem sobre sua vida sofrida no interior de Pernambuco. As últimas tomadas do filme foram feitas por Mariana, filha de Mercadante. Não conheço nenhum filme sobre um político que o retratou com tanta intimidade e em momentos tão decisivos como em  Entreatos.





Mas o filme de João que me impressionou profundamente foi sem dúvida Santiago. No primeiro parágrafo escrevi sobre o meu colega André e a sensação dos bastidores do programa Bambalão, uma mistura de fascínio e encanto com tristeza e desolação. Esses sentimentos aparentemente opostos estão presentes em Santiago.

Na narração de Fernando Moreira Salles vemos a casa da Gávea onde João morou por vinte anos. Ela aparece no ano 1992 já sem móveis, sem pessoas,  apenas ocupada de lembranças. João filmou o tempo.  Quando ele voltou a ver as imagens de seu mordomo e de sua casa, 13 anos depois, ficou intrigado por que razão não conseguiu montá-las. Com ajuda de Eduardo Escorel e Lívia Serpa o filme Santiago pode enfim ser montado. A exemplo de Coutinho em Cabra Marcado para morrer, João voltou à aqueles rolos antigos de filme e, revendo-os, pode entender que o tempo é o senhor das transformações e que a vida talvez não faça mesmo sentido.

Santiago, um mordomo argentino de uma cultura idiossincrática, escrevera durante anos sobre várias dinastias e reinados, tocava Beethoven de fraque e com seu espanhol já misturado ao português fazia  sua dança das mãos e, com elas, talvez pudera agarrar-se a vida e a suas memórias. 

Mãos expressivas que dançam uma canção sublime que é a própria existência de Santiago e sua forma de reverenciar o mundo. Vivera para a família Salles e deixara transparecer o amor por João. A cozinha do pequeno apartamento de Santiago é o cenário do filme. Entre portas abertas é possível ver a grandeza desse homem de 80 anos.

O fascínio que senti logo no início do filme vem da sensibilidade com que ele foi conduzido, poético, sincero e corajoso. Uma espécie de angústia tomou conta de mim, uma tristeza profunda ao ver João tratar Santiago durante as filmagens como seu fiel empregado e Santiago, ainda como um servo de João, o obedece com benevolência. 






Gostei muito da coragem de João ao desvelar esse seu jeito de dirigir Santiago. Me emocionei profundamente ao ver como o tempo pode determinar instancias escondidas dentro do ser. Santiago, as pausas, a alegria com que contava as histórias, o seu jeito de dizer que não foi feliz mais bem “contento”, em seu espanhol articulando com o português. João desnuda o seu passado e elege Santiago para o fazer.

A admiração por esse mordomo que o ensinou a equilibrar bandejas e ouvir Beethoven tinha um tempo para maturar. Não preparado, João necessitou de 13 anos para se voltar para Santiago e o admirar sem vergonha, sem medo de amar o mordomo que foi também sua referência de amor e companhia.

Câmeras paradas, preto e branco, O barbeiro de Sevilha, a ópera Orfeu e Eurídice, e para entender melhor esse puro êxtase que senti é necessário assistir o filme.
Bom filme.

Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembes de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação.

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.