Aqui o Leitor também tem seu Espaço
Devido à enorme quantidade de materiais de boa qualidade que nos tem sido enviadas, nós da ContempoARTES decidimos criar uma nova coluna: o Espaço do Leitor. Onde publicaremos as contribuições enviadas pelos nossos leitores mais criativos. Esse espaço se dará quinzenalmente aos domingos, alternando com a coluna Drops Cultural. Se você ficou interessado em enviar o seu texto, saiba como fazê-lo lendo nossas normas de publicação.
Para inaugurar esta coluna, apresentamos a contribuição do leitor Waldyr Imbroisi Rocha:
Engano
Tudo é estranho. As cores que nublam os olhos e cantam nas ruas nos galhos nos fios de todos os postes me envolvem e piam e piam sem parar. Do outro lado da calçada um menino apanha porque não tem moedas pra pagar a multa pelo peido que soltou em via pública – estamos terminantemente proibidos de emitir CO2 na atmosfera. Em casa a mulher grávida há três ou quatro ou mais anos não pariu, gestando a esperança em gravidez de risco que pode matar a mãe quando ela nascer. Pouco se sabe, hoje, se o ser humano aguenta a esperança como ela era em primitivo aspecto. Pesquisas indicam que a falta de contato com esse sentimento pode causar efeitos colaterais dolorosos e pungentes e às vezes manchas na pele e dores no corpo. Um remédio pra dengue cuja propaganda vejo na televisão dá conta desses sintomas. Há remédios pra tudo que pouco ou nada importa hoje em dia e eu tenho a impressão que eu pouco ou nada importo pelas doenças loucas que tenho. Mazelas torpezas estranhas patologias que manisfesto em condições normais de temperatura e pressão e fora das condições também já que há muito que não há condições. Quaisquer. Dentro de casa não acordo repentinamente transfigurado em barata ou em percevejo ou besouro caranguejo pernilongo, mas acordo igual todo dia sem mudança no corpo ou na mente hebetada que quer mas não quer ser outra e no fim não sabe direito o que quer. Se quer.
Ainda nas ruas o som de gente amiga me chama, convida-me à conversa, à compra de produtos que serão úteis à minha vida repleta de utilidades inúteis e de inutilidades palpáveis ao passo que mendigos estendem braços inutéis pedindo inúteis moedas a inúteis passantes. No meu bolso, agora, quatro paçocas personificam a maior utilidade que encontrei. À força sou homem que vive e ganha o sustento o pão pra comer a água pra beber e nada mais, e porque mais? se podemos viver pra ter o que precisamos não justifica ter mais, ter o que desejamos porque os desejos não refletem o que precisamos mas o que queremos – e isso é perigoso. Pensar demais abala o que está construído e dá trabalho, dá muito trabalho e por vezes prefiro não fazer. Pra quando é o neném da moça grávida???? Não sei, não sei, protela o pai despreparado para ser pai, tão despreparado quanto qualquer despreparo seco e sujo e único. A esperança na barriga. Em casa a sobra do almoço dá um belo mexido temperado com um daqueles temperos que se compra em tabletes e eu não consigo colocar na comida se eu não esmiuçar primeiro na frigideira onde tudo vai e se mistura em uma coisa só. Minha janta panteísta coroada por um ovo frito se apronta. É já tarde. Não durmo porque não quero dormir e na rua – ainda na rua – o silêncio e a ausência de gente que amedronta me dá prazer em caminhar sozinho debaixo do céu sabe-se lá se com ou sem estrelas porque as nuvens escondem tudo pra si e eu me vou sem rumo e sem medo de um assalto que me leve o dinheiro que não tenho ou de um assassino que me leve. Ando sozinho e canto canções estúpidas de amor e alegria de ódio e desgraça de revolução e de luta armada e canto querendo tomar o poder que so se toma cantando cada vez mais alto e canto pra chamar a bendita da esperança e mandar esse bicho desgraçado nascer, diabos, que sua mão não aguenta mais te carregar e morreria pra você ver o mundo.
Tive vontade de dormir e me estendi num parque qualquer em qualquer banco sentindo frio como qualquer pessoa sentiria ali. Me encolho em mim pra buscar no próprio corpo o calor que não tenho e que preciso e sinto a carne saltar e a perna tremer pela falta de algo que me aquecesse e sinto a cabeça tremer por saber que minha casa me esperava com um maldito edredon verdinho comprado com carinho e desvelo e que tinha um desenho bonito que não me lembro qual era no meio e o meu edredon era suficiente só para mim e eventualmente para uma ou outra companhia que eu demandasse à minha cama e não podia cobrir a mim e aos outros que estavam dormindo no mesmo parque em outros bancos, sem cores, sem jardins. Aperto o botão da minha cabeça que me impele a ignorar todo o resto e ir até o fim mesmo quando o fim é profundamente estúpido e ainda que eu perceba a estupidez do fim que me espera durmo ou tento dormir até o dia seguinte tremendo e segurando firme a boca pra não gemer e deflagrar quanto o calor me falta. Acordo ou quase e levanto e revejo as ruas voltando a ficar cheias de uma gente que acorda cedo aparentemente sem motivo porque não sabe o motivo por que acorda e que caminha a passos largos para o ponto de ônibus e para o serviço a pé e para onde quer que deus a leve e carregue de um lado a outro tão manisfesto títere boneco de pano com voz cansada e doce. E eu quero saber, droga, onde está o diabo da grávida, onde ela está que não parou num hospital público ainda e reservou um leito pra dar á luz a filha que tanto espera pra sair? E onde diabos está o hospital público que vai ter vagas assim tão rápido e fácil e acessível pra mãe que em verdade nem sabe se vai parir? E vou me manifestar e gritar e dizer nas ruas que a situação dos hospitais é um absurdo e exigir os meus direitos como cidadão e vou fazer papel de imbecil sozinho gritando no meio do nada pela consciência popular que inexiste e pela comoção do poder que existe ainda menos, e não tem lugar pra bicha nascer, senão nos fundos da casa. Que contratem uma parteira então – parto de risco, cuidado. A fome da manhã me impele a devorar as quatro humildes paçocas que guardei e que viraram farelo e sujaram o meu bolso vazio o suficiente para não poder mais comprar quatro paçocas do menino que passa e não me ajuda a reivindicar um quarto para a mãe da esperança porque se interessa mais em vender seu produto. Menino! digo eu, aprende a gritar e pedir e dizer que merece porque a filha que vem é a esperança, e ele me olha como se eu fosse o doido varrido e perturbado que na realidade sou, maluco de convidar gente normal pra idiotia da esperança. Pois que estou desistindo também.
No ar, o cheiro do gás carbonico dos carros que não ganham multa nenhuma. Quase vejo homens montando cavalos virando a esquina e deixando pra trás o barulho dos cascos batendo no asfalto duro e negro e quente que se esqueceu que a estação mudou. A multidão mais uma vez me devora e ouço na cabeça os convites malditos para abrir uma conta fazer um curso prostituir-me comprar bombons ou canetas com calendários e dicionários e calculadoras embutidos e nos fios dos postes as mesmas cores loucas a piar. Deixa a infeliz da Esperança gestar mais porque não é tempo de nascer e se nascer vira menor abandonada como tantos que há. Volto pra casa pra terminar de dormir o cansaço da caminhada da noite que me deu frio e fome e vontade do novo que ainda não existe e não criei, não sozinho, não sei se porque sou incapaz ou se não insisti o bastante.
Waldyr Imbroisi Rocha, graduando do curso de Letras (UFJF). Realiza pesquisas nas áreas de Educação Bilíngue (BIC - UFJF) e Literatura Infantil - Estudos culturais. Atua como professor de inglês para crianças e de português/literatura a nível de ensino fundamental e médio.
Para inaugurar esta coluna, apresentamos a contribuição do leitor Waldyr Imbroisi Rocha:
Engano
Tudo é estranho. As cores que nublam os olhos e cantam nas ruas nos galhos nos fios de todos os postes me envolvem e piam e piam sem parar. Do outro lado da calçada um menino apanha porque não tem moedas pra pagar a multa pelo peido que soltou em via pública – estamos terminantemente proibidos de emitir CO2 na atmosfera. Em casa a mulher grávida há três ou quatro ou mais anos não pariu, gestando a esperança em gravidez de risco que pode matar a mãe quando ela nascer. Pouco se sabe, hoje, se o ser humano aguenta a esperança como ela era em primitivo aspecto. Pesquisas indicam que a falta de contato com esse sentimento pode causar efeitos colaterais dolorosos e pungentes e às vezes manchas na pele e dores no corpo. Um remédio pra dengue cuja propaganda vejo na televisão dá conta desses sintomas. Há remédios pra tudo que pouco ou nada importa hoje em dia e eu tenho a impressão que eu pouco ou nada importo pelas doenças loucas que tenho. Mazelas torpezas estranhas patologias que manisfesto em condições normais de temperatura e pressão e fora das condições também já que há muito que não há condições. Quaisquer. Dentro de casa não acordo repentinamente transfigurado em barata ou em percevejo ou besouro caranguejo pernilongo, mas acordo igual todo dia sem mudança no corpo ou na mente hebetada que quer mas não quer ser outra e no fim não sabe direito o que quer. Se quer.
Ainda nas ruas o som de gente amiga me chama, convida-me à conversa, à compra de produtos que serão úteis à minha vida repleta de utilidades inúteis e de inutilidades palpáveis ao passo que mendigos estendem braços inutéis pedindo inúteis moedas a inúteis passantes. No meu bolso, agora, quatro paçocas personificam a maior utilidade que encontrei. À força sou homem que vive e ganha o sustento o pão pra comer a água pra beber e nada mais, e porque mais? se podemos viver pra ter o que precisamos não justifica ter mais, ter o que desejamos porque os desejos não refletem o que precisamos mas o que queremos – e isso é perigoso. Pensar demais abala o que está construído e dá trabalho, dá muito trabalho e por vezes prefiro não fazer. Pra quando é o neném da moça grávida???? Não sei, não sei, protela o pai despreparado para ser pai, tão despreparado quanto qualquer despreparo seco e sujo e único. A esperança na barriga. Em casa a sobra do almoço dá um belo mexido temperado com um daqueles temperos que se compra em tabletes e eu não consigo colocar na comida se eu não esmiuçar primeiro na frigideira onde tudo vai e se mistura em uma coisa só. Minha janta panteísta coroada por um ovo frito se apronta. É já tarde. Não durmo porque não quero dormir e na rua – ainda na rua – o silêncio e a ausência de gente que amedronta me dá prazer em caminhar sozinho debaixo do céu sabe-se lá se com ou sem estrelas porque as nuvens escondem tudo pra si e eu me vou sem rumo e sem medo de um assalto que me leve o dinheiro que não tenho ou de um assassino que me leve. Ando sozinho e canto canções estúpidas de amor e alegria de ódio e desgraça de revolução e de luta armada e canto querendo tomar o poder que so se toma cantando cada vez mais alto e canto pra chamar a bendita da esperança e mandar esse bicho desgraçado nascer, diabos, que sua mão não aguenta mais te carregar e morreria pra você ver o mundo.
Tive vontade de dormir e me estendi num parque qualquer em qualquer banco sentindo frio como qualquer pessoa sentiria ali. Me encolho em mim pra buscar no próprio corpo o calor que não tenho e que preciso e sinto a carne saltar e a perna tremer pela falta de algo que me aquecesse e sinto a cabeça tremer por saber que minha casa me esperava com um maldito edredon verdinho comprado com carinho e desvelo e que tinha um desenho bonito que não me lembro qual era no meio e o meu edredon era suficiente só para mim e eventualmente para uma ou outra companhia que eu demandasse à minha cama e não podia cobrir a mim e aos outros que estavam dormindo no mesmo parque em outros bancos, sem cores, sem jardins. Aperto o botão da minha cabeça que me impele a ignorar todo o resto e ir até o fim mesmo quando o fim é profundamente estúpido e ainda que eu perceba a estupidez do fim que me espera durmo ou tento dormir até o dia seguinte tremendo e segurando firme a boca pra não gemer e deflagrar quanto o calor me falta. Acordo ou quase e levanto e revejo as ruas voltando a ficar cheias de uma gente que acorda cedo aparentemente sem motivo porque não sabe o motivo por que acorda e que caminha a passos largos para o ponto de ônibus e para o serviço a pé e para onde quer que deus a leve e carregue de um lado a outro tão manisfesto títere boneco de pano com voz cansada e doce. E eu quero saber, droga, onde está o diabo da grávida, onde ela está que não parou num hospital público ainda e reservou um leito pra dar á luz a filha que tanto espera pra sair? E onde diabos está o hospital público que vai ter vagas assim tão rápido e fácil e acessível pra mãe que em verdade nem sabe se vai parir? E vou me manifestar e gritar e dizer nas ruas que a situação dos hospitais é um absurdo e exigir os meus direitos como cidadão e vou fazer papel de imbecil sozinho gritando no meio do nada pela consciência popular que inexiste e pela comoção do poder que existe ainda menos, e não tem lugar pra bicha nascer, senão nos fundos da casa. Que contratem uma parteira então – parto de risco, cuidado. A fome da manhã me impele a devorar as quatro humildes paçocas que guardei e que viraram farelo e sujaram o meu bolso vazio o suficiente para não poder mais comprar quatro paçocas do menino que passa e não me ajuda a reivindicar um quarto para a mãe da esperança porque se interessa mais em vender seu produto. Menino! digo eu, aprende a gritar e pedir e dizer que merece porque a filha que vem é a esperança, e ele me olha como se eu fosse o doido varrido e perturbado que na realidade sou, maluco de convidar gente normal pra idiotia da esperança. Pois que estou desistindo também.
No ar, o cheiro do gás carbonico dos carros que não ganham multa nenhuma. Quase vejo homens montando cavalos virando a esquina e deixando pra trás o barulho dos cascos batendo no asfalto duro e negro e quente que se esqueceu que a estação mudou. A multidão mais uma vez me devora e ouço na cabeça os convites malditos para abrir uma conta fazer um curso prostituir-me comprar bombons ou canetas com calendários e dicionários e calculadoras embutidos e nos fios dos postes as mesmas cores loucas a piar. Deixa a infeliz da Esperança gestar mais porque não é tempo de nascer e se nascer vira menor abandonada como tantos que há. Volto pra casa pra terminar de dormir o cansaço da caminhada da noite que me deu frio e fome e vontade do novo que ainda não existe e não criei, não sozinho, não sei se porque sou incapaz ou se não insisti o bastante.
Waldyr Imbroisi Rocha, graduando do curso de Letras (UFJF). Realiza pesquisas nas áreas de Educação Bilíngue (BIC - UFJF) e Literatura Infantil - Estudos culturais. Atua como professor de inglês para crianças e de português/literatura a nível de ensino fundamental e médio.
2 comentários:
A inauguração da coluna, nota dez pela escolha deste texto, bem contemporâneo.
3 de setembro de 2010 às 12:44Parabéns à revista, Waldyr e demais colaboradores que virão.
texto assaz interessante, filosoficamente provocativo
6 de setembro de 2010 às 12:22esperamos mais textos bons como este
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