sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Sinédoque Nova Iorque, a vida recriada num exercício metalinguístico





 



Caden Cotard limpando a casa, tarefa importante para se sentir necessário.  

Nesses dias frios ficar em casa é um programa bem atraente. Que tal, debaixo dos cobertores e edredons aquecer também a mente? É só assistir um filme surpreendente, longo e um tanto complexo: Sinédoque, Nova Iorque, 2008 (Synecdoche, New York). Mais uma inesquecível história envolvente e criativa de Charlie Kaufman, roteirista de Quero Ser John Malkovich 1999, Adaptação (2002) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004). 
Charlie Kaufman
Philip Seymour Hoffman
Aqui, em Sinédoque, Kaufman além de exercer a função de roteirista, se aventura na de diretor, algo peculiar e até mesmo intrigante pois consegue arrancar dos atores um jeito profundo de atuar, semelhante as encenações teatrais, densas e viscerais. Sem o diretor Spike Jonze para controlá-lo, Kaufman vai em busca do drama psicológico sem piedade do espectador num movimento autista que se volta completamente para os demônios internos das personagens e talvez, dele próprio, indo fundo até onde deseja e acredita que deva ir.  Algumas vezes, a esticada história com definições sobre a vida e a morte pode se tornar um tanto exaustiva. Mas, o lado positivo é que esse exercício de interiorização, realizada pelo diretor via suas personagens, pode ser acompanhado pelo espectador, se assim desejar, e com isso poderá viver momentos intrigantes de questionamento sobre o tempo, o espaço, às realizações da vida e a preparação para a morte. É por esse viés e também pela atuação de Philip Seymour Hoffman, que nesse filme não decepciona, e continua sendo, ao meu ver, um dos grandes atores da atualidade, que vale muito a pena ver Sinédoque.
As personagens do filme e as personagens do teatro (dupla encenação) 
Em algumas cenas, como na que observamos acima, as personagens do filme encontram-se com as personagens do teatro e em roteiros intermináveis tentam encenar uns aos outros sem, com o tempo, ficar bem claro quem imita quem. Grande sacada de Kaufman demostrada na desenvoltura com que lida com essa maravilhosa dualidade e contra-senso do mundo dos espetáculos: A vida imita a arte ou a arte imita a vida?
Então, se pensarmos no roteiro, na direção e na atuação do protagonista, vocês  já teriam motivos suficientes para  assistirem o filme. A história, bem contada, gira em torno da  personagem Caden Cotard ( Hoffman ), diretor de teatro que após receber um grande prêmio em dinheiro de uma fundação, resolve montar uma peça que seria como um testemunho de sua própria vida. Ele tem a idéia de criar uma Nova Iorque, simulando o tamanho natural, dentro de um imenso galpão. Nesse galpão, ele reproduz o espaço físico de sua vida e, nesse espaço,  a mania de perfeição de Caden se torna muito evidente. É alucinante ver como a personagem cria e recria situações corriqueiras incessantemente dentro de sua sinédoque ( figura de linguagem que representa a parte pelo todo ).  Mas, ao assistir o filme, que em alguns momentos parece se arrastar ( por favor, não desista nesses momentos ), percebemos como ele vai, pacientemente, tecendo uma rede de significados metalingüísticos da própria vida, se desdobrando num movimento que migra em direção ao centro de questões complexas, encenadas ou vivenciadas na realidade fílmica. Um paralelo interessante entre a vida que acontece no cotidiano e a representação dela na ficção.
A família de Caden ( um mundo à beira do Caos )


A neurose de Caden também é de sua esposa, que com suas minúsculas esculturas, minimamente se adapta ao mundo. Como numa seqüência, influenciada por fatores genéticos e ambientais, a filha deles carrega e repete a dor que vivenciou com seus pais, só que de forma mais  contundente. Sua dor é a flor da pele...

Caden e o ator que interpreta ele (quem é o real?)

É possível também se surpreender com a capacidade da personagem Caden Cotard  em representar com autenticidade suas neuroses, TOCs, medos inconscientes, mesclado-os a uma hipocondria latente que insiste em acompanhá-lo. É como se ele representasse a dor que a humanidade sente ao tentar conciliar seus desejos e vontades às suas frustrações e decepções.
Como uma voz do inconsciente, que orienta a personagem por uma narração off, suas ações podem ser  antecipadas,  como acontece com os apresentadores de tv que ficam com o famoso "ponto" no ouvido. Essa voz dita o que ele deve fazer, atormentado sua mente, uma atitude esquizofrênica que nos faz  lembrar os múltiplos seres que habitam nossa mente,  essa mistura de nós mesmos ( ou pelo menos aquilo que achamos que somos nós), com outros impulsos e pensamentos que  surgem de lugares que não conhecemos.
Viajem ao fundo das dúvidas e certezas, assistam Sinédoque Nova Iorque..... enquanto o tempo passa, a vida acontece....

Bom filme!




Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.


3 comentários:

Tatiane Vegas disse...

Bom Dia Kátia! Fui sua aluna na UNIP, e encontrei seu blog através do Twitter, estou acompanhando pois achei suas matérias bem interessantes.

Uma ótima dica para esse fim de semana hein?! Parece ser um bom filme!


Bjoss e Bom final de semana.

6 de agosto de 2010 às 10:45
Gota disse...

A vida não permite ensaio - só existe uma.
Não se pode controlar o que acontece nos arredores, muitas vezes nem dentro dela.
A vida nunca está pronta o suficiente a ponto de ser apresentada aos outros.
O tempo passa, as idéias, casos, casas, relacionamentos... Sempre buscando um sentido, uma razão maior, alguma história que se possa contar.
No fim está tudo tão incompleto, sem razão, sem situação, no fim tudo simplesmente só, acaba.

12 de agosto de 2010 às 17:39
Fanzineviagens disse...

Gege que legal o que escreveu, essa é uma das grandes sacadas de Kaufman

13 de agosto de 2010 às 15:45

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