terça-feira, 7 de setembro de 2010

A saia almarrotada - Mia Couto



Olá leitores. Depois de um tempo entre encontros e desencontros escrevo uma nova matéria sobre Arte elaborada por falantes de Língua Portuguesa. Hoje, quero apresentar a vocês um autor, mais especificamente um conto deste escritor de Literatura Africana de Língua Portuguesa: Mia Couto.

Imagino que muitos de vocês já tenham, em algum momento, ouvido falar sobre a literatura de Mia Couto. Outros que ainda não o conhecem devem ficar de sobreaviso que após entrarem em contato com a escrita coutiana se depararão com um novo mundo, uma nova ideologia, uma brilhante e instigante maneira de se fazer literatura.

António Emílio Leite Couto (Mia Couto) é um escritor moçambicano, filho de imigrantes portugueses que se mudaram para as terras africanas em meados do século XX – época em que Moçambique ainda era uma colônia portuguesa. Este importante autor iniciou os estudos em medicina, mas, abandonou o curso e trabalhou como jornalista durante algum tempo. Ele somente abandonou seu emprego de jornalista para continuar seus estudos universitários em Biologia.

Mia Couto é reconhecido como um dos mais importantes autores moçambicanos. Além disso, é o escritor de Moçambique mais traduzido (ele também foi agaloado com vários importantes prêmios de literatura). A obra deste autor é influenciada e muito pela obra do brasileiro João Guimarães Rosa, de maneira que a escrita coutiana é marcada pela tentativa de recriar a lí ngua portuguesa com influência moçambicana, utilizando um léxico de variadas partes do país, produzindo uma narrativa africana.


Após apresentaçõe s, devo dizer a vocês o porquê de eu ter resolvido escrever sobre Mia Couto. Há algum tempo iniciei a leitura de um livro de contos coutianos intitulado O fio das missangas, me encantei com contos tão profundos, que nos levam a refletir sobre o ser humano, a realidade cruel em que muitos vivem. Mais especificamente, como postula o próprio autor, a grande parte dos contos que comp õem este livro se debruça sobre o universo feminino, dando voz àquelas a quem a vida obrigou a silenciarem-se, retirando-lhes do vil esquecimento.
Um desses contos que muito me tocou na sua fina sensibilidade e na ampla gama de significações implícitas é “A saia almarrotada”, no qual uma voz feminina narra a sua vida, com especial atenção para uma saia que ganhou de presente de seu tio. Entremeados à narração surgem apontamentos e constatações da dura realidade na qual a personagem vive. Ela, em uma revelação um tanto quanto chocante, nos diz “Nasci para a cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha” (COUTO, 2009, p. 29).

Após esta revelação já tomaremos conhecimento do mundo triste, cheio de exploração, de renúncia e maus tratos no qual a personagem vive. Ela que não fora acostumada a receber elogios, a se arrumar, “perante a oferta do vestido [oferta feita pelo tio], fiquei dentro do meu ninho ensombrado. Estava tão habituada a não ter motivo, que me enrolei no velho sofá. Olhei a janela e esperei que, como uma doença, a noite passasse” (COUTO, 2009, p. 29).


Depois disso, a feminina voz nos conta um pouco de sua vida, diz-nos que era a única menina entre muitos filhos, foi criada por seu pai e tio como uma escrava, para deles tratar. Desde a infância, ela tivera consciência de que o amor lhe seria impossível, juntamente com a vaidade. Na hora da comida, ela diz-nos que não se falava em comer e sim, sentar. Neste momento, “Os braços se atropelavam, disputando as magras migalhas” (COUTO, 2009, p. 30) e para ela só tinham sobras, após gritarem “Um pouco para a miúda: assim, sem necessidade de nome” (COUTO, 2009, p. 31).

A vida desta mulher é-nos apresentada como marcada pelo mais extremo sofrimento, de maneira que ela nos diz que “Na minha vila, as mulheres cantavam. Eu pranteava. Só a lágrima me desnudava, só ela me enfeitava.” e “Eu envelhecendo, a ruga em briga com a gordura” (COUTO, 2009, p. 31). Os fatos narrados se dão após a morte do pai, “Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele estivesse vivo. (...) Que me ordenava que ficasse feia, desviçosa a vida inteira. (...) Sempre ceguei em obediência, enxotando as tentações que pirilampeavam a minha meninice” (COUTO, 2009, p. 31 - 32).
A ordenação paterna mais marcante diz respeito à personagem colocar fogo no vestido, ela diz que em uma cova enterrou o vestido e colocou fogo em si, “Lancei, sim, fogo em mim mesma.Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim” (COUTO, 2009, p. 32). Esta mulher, ao fim da narrativa nos lança uma metáfora, que nos parece parte importante de sua vida, ela diz:

“Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida” (COUTO, 2009, p. 32).


Esta metáfora nos remete à perda da infância, da juventude, de ilusões. À mulher do conto não foi permitido sonhar, não foi permitido amar, não foi permitido comer. Sua vida se reduziu a sofrimento, a se calar perante as ordens do pai que lhe criara como uma verdadeira escrava. Escravidão física e psicológica. Na verdade, uma ampla subversão de elementos necessários ao crescer, a se desenvolver e a pensar. A saia não passa de um sonho que após tantos anos adormecido se amarrotou ou “almarrotou”.

A alma da personagem é como a saia, amarrotada, machucada, derrotada, esquecida e condenada a uma existência mais próxima de uma não-existência, uma vez que ela não viverá por si só e sempre terá atrás de seus passos sombras que lhe impedem de viver.

A repressão domina toda a narrativa, fazendo um retrato da vida de uma mulher africana, que pode ser estendido a muitas outras na África e no mundo. Os sonhos desta personagem não podem ser realizados, ela vive em meio a uma intensa repressão, em uma posição altamente marginalizada e discriminada. Ela viveu em uma intensa clausura que a obrigou a se excluir da sociedade e da vida, não podendo ser ativa nem em relação a si mesma enquanto sujeito, o seu próprio nome é apagado de uma História da qual ela não participou.

Os leitores que se interessaram por esta história devem adquirir O fio das Missangas e deixarem serem levados e encantados pelos 29 contos que lhe compõem.












Rodrigo C. M. Machado é Graduando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa e, neste momento, pesquisa a representação dos corpos na poesia de António Botto.

1 comentários:

Unknown disse...

Amei a sua reflexão sobre esse belíssimo texto. Parabéns!!!!
Claudia Mirandola - Professora Coordenadora do Núcleo Pedagógico da Diretoria de Ensino de Suzano - São Paulo e Professor do curso de Pedagogia da Universidade Brasil. Mais uma vez... Parabéns!!!!

31 de julho de 2018 às 10:22

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