domingo, 31 de outubro de 2010

To(c)que


por Diego Pereira Rezende.

As minúcias cotidianas tinham ao afeto de Cecília um estorvo incorrigível. Durante certa madrugada, ela despertou com o barulho estridente do miar raivoso de um felino de cores pálidas sobre o muro próximo à janela, não se abalou ao primeiro momento e se virou na cama, procurando uma posição confortadora aos ruídos. Tal procura percorreu os vinte próximos minutos, em vão. Absorvera os estalidos cânticos em seu pesar.

Nudez Azul
(Pablo Picasso)
Havia de ser feito algo, no entanto, Cecília sabia que se levantar seria um caminho de mão única, sem nuances e voltas. O relógio ao lado da cama marcava quatro horas e cinco em vermelho sangue. Levantou-se.

Acendeu e apagou a luz nove vezes, com o cuidado pormenor para não se perder na conta e na força. Ergueu lentamente o corpo com a mão esquerda, tirou o pé direito sob o lençol, em seguida o esquerdo. Que peso extremo tinha os seus pés, pois eram sempre o ponto de partida de um dia novo, pés tão miúdos aqueles, de dedos magros, veias atônitas e esmaltes corroídos. Abrir a janela significaria uma fragmentação espúria da rotina que lhe prezava tanto. Orquestrados pelo pé direito, seus passos partiram do quarto, deixando para trás a janela e a cortina intactas, evitou-se até encará-las.

Mulher em frente ao espelho
(Pablo Picasso)
As portas eram obstáculos nítidos, encostar significaria sangrar como se em arame farpado fosse. Os passos eram ritmados, como uma dança metódica, como um baile de primavera. Não. Seriam, quem sabe, se não tocasse ao fundo uma valsa latina tão triste, tão triste. Eram passos contados até o banheiro, o passo último, sempre, era o esquerdo. Nesse momento, havia uma pausa, um silêncio, um gole seco, quase um passageiro e intermitente alívio.

Havia uma lástima insuportável em qualquer quebra do corriqueiro, por isso, Cecília sempre se via tão intolerante passando manteiga no pão caseiro preparado pelo pai ou ao colocar grãos contados aos olhos no café amargo, forte, quente, indispensavelmente essencial para a inspiração de se tomar a refeição da manhã, simbolismo máximo do nascer de um dia outro como os outros.

The Broken Column
(Frida Kahlo)
Era necessária uma acuidade ímpar aos contatos, às proximidades, aos toques imprevistos. Um destes já era o bastante para uma tragédia, para o recomeço de um interminável ritual invisível.

Percorrer à deriva paisagens urbanas era de uma inquietude incompreensível aos olhares comuns. Pulava losangos, escolhia cores, pedras, desenhos, Cecília tinha que improvisar e, concomitantemente, convencer a si mesma a providência de se fazer sentido no que se fazia. Um toque estranho ao corpo lhe despiria a alma, atribularia a lucidez, emergiria o suicídio.

The Key (Jackson Pollock)
Cecília está diante do cenário, laranja e azul, que sua madrasta construíra no banheiro. Ao passar pela porta com o pé direito já se podia enxergar o encontrar dos olhos, reais e ilusórios, no espelho manchado de tempo. Destampou o sanitário com a mão direita, calmamente. Despiu-se. Sentou-se. Recortou nove partes da folha dupla do papel higiênico. Usou. Descartou. Tampou. Apertou. Levantou-se. Vestiu-se.

Abriu a torneira com a mão direita, enxaguou-se levemente, a mão direita por cima e a esquerda por baixo, em formato de concha. Havia de se repetir nove vezes o enxágue. Nove vezes. Balançou as mãos em ritmos pares e as passou na toalha que, por qualquer despeito de um frívolo toque, explodiria.


Contribuição do leitor Diego Pereira Rezende, originário de Viçosa. Atualmente, embriaga-se de cinema, literatura e pesquisas acadêmicas na área de “Educomunicação e Construção Identitária” (BIC) no curso de Comunicação Social na UFJF.

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