domingo, 28 de novembro de 2010

Cícero Dias: um artista de alma infantil


Por Raquel Czarneski Borges.

“Cícero Dias nasceu no bar do Palace Hotel, na terça-feira de carnaval...” [1]

“Na zona da mata, o canavial novo
É um descanso verde que faz bem;
é uma suavidade poisar a vista na manteiga e no pêlo dos ratos.
No mais matinal perfume francês.
A gente domina uma dedicação apertando os dedos no barro mole. Ele escorre e foge.
E o corpo estremece que é um prazer.” [2]

Esta primeira frase, de Murilo Mendes, sintetiza bem o que parece ser a origem de Cícero Dias e sua pintura: uma grande festa. Suas formas, cores e traços são alegorias do Carnaval que se dava em sua alma, em seu coração. Cícero Dias dedicou sua vida inteira para a pintura. Brincou com as cores e formas. Dedicou sua vida inteira para expressar seus sonhos. Foi considerado louco, esquizofrênico, de “psiquê infantil”. Pois bem, pergunto-me hoje, que mal há nisso? Que mal há em acreditar nos sonhos e fazer de tudo para mantê-los vivos e torná-los realidade? Seus traços mudaram muito ao longo do tempo, assim como mudou sua vida. No início eram aquarelas, livres, soltas, de um menino que nasceu e cresceu em engenho. Depois, as Belas Artes, o ensino tradicional e sempre a tentativa da ousadia, da marca pessoal, das cores ou dos desenhos simples (ou complexos, tudo depende do observador). Também a arte figurativa. Foi chamado de “Chagall dos Trópicos”, celebrado pelos modernistas. Muda-se para Paris e vem a arte abstrata (seria um traidor da “pernambucanidade”?). Como achar agora neste Cícero cosmopolita, aquele Cícero que pintava canaviais e mulatas? Buscando sua inspiração no centro dos sonhos...

Eu vi o mundo, ele começava no Recife (fragmento).
Reprodução de http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=3254
&bd=1&pg=1&lg=
Cícero Dias pintava de acordo com sua inspiração “infantil”. Seus críticos, para exaltá-lo ou para denegri-lo, designavam-no incompreensível, sonhador, ousado...um herege. Para os modernistas, vindos do impacto da semana de 22, a exposição do painel de Cícero “Eu vi o mundo, ele começava no Recife” representava transgressão demais. O painel gigante, de 15 metros, mostrava o que Cícero via em seu mundo de sonhos, qual a cidade do Recife que existia na sua memória e nos seus delírios de poeta das cores. O painel foi um escândalo para a época, mostrando um Recife quente, envolto em uma luz amarelada dos nordeste, com sua figuras dançantes, carros-de-boi, engenhos, casas-grandes e senzalas, prédios, plantas , bichos e gente, todos ordenados no espaço de forma a parecer que a tela era um grande tabuleiro, uma brincadeira, um sonho infantil. Se Recife possuía esse caráter lúdico e mágico para Cícero Dias, seria por que era daqui que todas as coisas do mundo se originavam?


A temática do sonho e do lúdico não aparecem, no entanto, apenas no famoso painel. Ela esta presente em quase todas as obras do pintor. Mesmo em sua fase abstrata, podemos perceber que ele brinca com as formas e cores. Sua arte transmite alegria de viver. O mundo é uma grande festa sonhada por Cícero. Em seu quadro “Bagunça”, de 1928, vemos novamente este pintor de alma alegre e desinibida. Figuras coloridas povoam a tela, brincam, se divertem em seus jogos, desfrutam o prazer do tempo, da liberdade. Para além de uma cidade, pequenina e esmagada no canto da tela, abre-se um universo de jogos e “trelas” próprio de pequenas comunidades, onde todos partilham os espaços públicos,onde os habitantes se conhecem. Meninos jogando bola, tocando música, mães passeando com suas filhas...é este o outro mundo que se descortina longe da cidade grande, talvez em algum bairro, na zona rural...em Pernambuco, no Rio de Janeiro. Este mundo representado por Cícero Dias nos parece um mundo aconchegante e íntimo, onde as atividades cotidianas desenvolvem-se voltadas para o prazer. A mulher nua que desce uma escada no canto esquerdo da tela nos confirma esta vocação para o deleite que a cena pintada dos demonstra. Além do colorido, a movimentação das figuras nos passa o ar de leveza de um grande divertimento, de uma bagunça de criança mesmo.

Bagunça, 1928.
Reprodução de http://vejabrasil.abril.com.br/galeria/rio-de-janeiro/
caminhos-arte-franca-brasil/index.php#img/CicDias.jpg

Segundo Gilberto Freyre, essa leveza das obras de Cícero Dias se dava justamente por suas origens, sua infância de menino de engenho. Segundo ele, “O menino de engenho era decerto criatura menos sacrificada à gravidade de trajo e vida que o nascido nas cidades”, nas suas trelas de menino, “(...) montava a cavalo, saía pelo mato com o moleque a pegar curiós (...). No tempo de cana madura chupava com delícia os roletes que lhe torneavam a faca os negros do engenho” . Nessa sua liberdade, Cícero, como menino de engenho que era, conhece o mundo, saboreia-o. Quando cresce, permanece com o gosto da cana nos lábios.

Cícero Dias gostava de se referir a um lugar no centro do ser, que conservava uma pré-história da arte...uma matriz criativa acessível a todos, onde estavam guardadas todas as imagens oníricas, todos os delírios humanos. Segundo Philippe Dagen, um “(...) viveiro oculto de mitos, obsessões, fantasmas e visões” . Parece que Cícero tinha trânsito livre neste viveiro dos sonhos e tinha em sua tarefa de pintor, o modo de expressar, de dar vida a todas as figuras que habitavam não só sua imaginação, mas que povoavam e povoam as profundezas das almas de todos os seres humanos que não querem deixar de sonhar.

Cícero Dias no Marco Zero do Recife.
http://veja.abril.com.br/050203/datas.html
Cícero Dias morreu pintando...e sonhando. Menino de engenho nascido em Escada, Pernambuco, morre aos 95 anos em Paris. Seu corpo está enterrado lá, no famoso cemitério de Montparnasse. Mas seus delírios de poeta e pintor continuam a existir no canto infantil de nossas almas. Seus sonhos permanecem vivos e o Marco Zero do Recife continua lhe prestando homenagens a cada amanhecer.









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Notas:
1 - MENDES, Murilo. Nascimento de Cícero Dias. In: FILHO, Waldir Simões de Assis. Cícero Dias, oito décadas de pintura. Simões de Assis Galeria de Arte: Curitiba, 2006.p. 68
2 - ANDRADE, Mário de. Poemas da Negra – a Cícero Dias. In: FILHO, Waldir Simões de Assis. Cícero Dias, oito décadas de pintura. Simões de Assis Galeria de Arte: Curitiba, 2006. P. 76


Contribuição da leitora Raquel Czarneski Borges, graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG - RS. Enveredou-se pela graduação a estudar Arte, História e hibridismo cultural. Hoje é uma gaúcha vivendo o mundo lindo de Olinda e Recife, a alegria e as incongruências de uma tal de “pernambucanidade”. É mestranda em História na UFPE na linha de Cultura e Memória do Norte e Nordeste do Brasil. Uma “desmemoriada” das coisas do Norte, mas que carrega em si muitos afetos do Sul. Pesquisa um artista chamado Cícero Dias, e suas representações da cidade do Recife nas décadas de 20 e 30. Atua também no grupo P.I.A. (Pesquisas e Interações Artísticas), atualmente em parceria com o MAMAM (Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães) pesquisando a obra do artista recifense Daniel Santiago.

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