sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

MAIS PÓLVORA QUE POESIA



MAIS PÓLVORA QUE POESIA


Parte da história turbulenta do amor entre os poetas franceses A. Rimbaud e P. Verlaine foi registrada no livro Arthur Rimbaud: Correspondência, que serviu para o roteiro do filme Total eclipse (1995), com David Thewlis e Leonardo Dicaprio e para a peça Pólvora e poesia, de Alcides Nogueira (2001), que vemos agora em cartaz em Salvador (BA), sob a direção de Fernando Guerreiro.

Os títulos – do filme e da peça – aproximam metáforas quando sugerem o encontro de dois pólos: o sol e a lua, a poesia e a pólvora, a tradição parnasiano-simbolista e a vanguarda moderno-libertadora. Um e outro representados pelos poetas Verlaine e Rimbaud, respectivamente.

O segundo, com o espírito rebelde reivindica para si o direito “d’exécrer les ancêtres” recusando a “intelligence borgnesse” dos literatos passadistas, que inclui o primeiro. Rimbaud representaria a vontade de se criar outro mundo, em que o sujeito, em um movimento de fuga e ascensão, pudesse se descobrir de forma integral, absoluta, como instrumento para uma conquista da liberdade, de ruptura com os condicionamentos sociais organizados pela sociedade burguesa. Rimbaud vive aquilo que acredita ser a vocação do poeta, afinal:


Le Poète se fait voyant par un long, immense et raisonné dérèglement de tous les sens. Toutes les formes d’amour, de souffrance, de folie ; il cherche lui-même, il épuise en lui tous lês poisons, pour n’en garder que les quintessences. Ineffable torture où il a besoin de toute la foi, de toute la force surhumaine, où il devient entre tous le grand malade, le grand criminel, le grand maudit, — et le suprême Savant — Car il arrive à l’inconnu ! Puisqu’il a cultivé son âme, déjà riche, plus qu’aucun ! Il arrive à l’inconnu, et quand, affolé, il finirait par perdre l’intelligence de ses visions, il les a vues ! Qu’il crève dans son bondissement par les choses inouïes et innombrables : viendront d’autres horribles travailleurs; ils commenceront par les horizons où l’autre s’est affaissé ! (RIMBAUD, 341.)

Rimbaud escreve sua obra em cinco anos de uma adolescência intensa, tão imatura quanto madura, tão enevoada quanto lúcida. O fragmento acima aponta alguns elementos caros ao poeta, o que torna sua interpretação um dos grandes desafios da encenação de Guerreiro. Talis Castro traz algo de muito acertado na concepção do seu Rimbaud quando recria a inadaptabilidade do poeta e a revolta; o desejo de evasão pela insatisfação com o mundo real e a procura de uma experiência extraordinária; a descoberta de novas vivências e a ampliação/multiplicação dos sentidos; a tensão entre uma força que impulsiona o movimento de ascensão e outra a exercer pressão em sentido contrário.

Acontece que “os espíritos livres, que são os atormentados”, como Rimbaud, são controversos, ambíguos e imprevisíveis e, Talis Castro, parece não acreditar ou desconhecer essa dimensão ao optar por uma construção linear, over, sempre em decibéis acima da média. Seu Rimbaud ignora a direção da queda, que seria um dos movimentos fundamentais, na poesia-trajetória do enfant terrible.


Caio Rodrigo se apropria com menos autoridade de Verlaine e tem maiores dificuldades em transformar as palavras que soam muito literárias e ritmadas, ou como diria Valère Novarina, “a fala não é um comentário, uma sombra do real, a moedagem do mundo em palavras, mas algo vindo ao mundo como que para nos arrancar dele”, embora consiga entender melhor o processo de transformação do poeta, o seu gráfico dramático. É acertada, por exemplo, a opção pelo signo da troca de roupas, quando este coloca a calça de Rimbaud, numa clara alusão ao quanto o contato com o jovem poeta já alterava seu estado inicial, vigiado, conservador, dócil.

Aliás, o texto de Alcides Nogueira é um belo exemplo para discutir os binômios entre essência/naturalidade e cultura/assimilação. Não somos aqueles que queremos ser, mas aqueles que a sociedade desejou e se esmerou para que fôssemos. Verlaine é títere da sociedade burguesa, foi um resultado feliz da sociedade francesa dos anos 70 do século XIX: omisso, cabisbaixo, frágil, covarde. O contato com Rimbaud-pólvora muda decisivamente os rumos da sua vida e, por conseguinte, de toda a poesia francesa.


Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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