A metáfora do retrato: um ensaio da decomposição
por Lucas Piter Alves Costa
A proposta de Euclides em Os Sertões é abrangente demais para apenas uma obra. Os muitos pensamentos científicos que àquela se vinculam tocam várias áreas, como a biologia, a antropologia, a sociologia, e, talvez, outras. De modo que seria difícil, mesmo para a Ciência, inter-relacionar tais áreas sem que com isso não caia em contradição, devido os seus diferentes métodos de análise. Somente a Literatura teria permissão para trafegar nesses terrenos, nessas correntes do pensamento filosófico e científico, e unificá-las em um discurso vastamente simbólico e polifônico. Não pretendo aqui desmerecer Os Sertões ao afirmar que Euclides não atingiu sua proposta. Pelo contrário, é através da sua linguagem encenada – no melhor sentido barthesiano – que o autor edifica resultados que outrora um tratado científico não alcançaria. É por demais pretensão querer compor um retrato dos sertões – sendo Canudos o seu âmago – sem ao menos ter estado cara a cara com a tensão que lá se via. Pode um escritor ser fiel à sua proposta de escrever uma verdade impessoal partindo de uma ótica marginal, coletada a posteriori de restos factuais? Obviamente que não. Somente a Literatura pode se permitir imaginar, e preencher as lacunas dos fatos, apoiada no conceito de verossimilhança – conceito distante em essência da objetividade em que se apóia a Ciência.
O retrato que Euclides compõe é o da decomposição, e para ilustrar isso, a fotografia da personagem Luísa, no filme Guerra de Canudos, do diretor Sérgio Rezende, é muito válida.
Fotografia de Luísa e sua irmã |
Neste sentido, pode-se dizer que, em sua maior parte, a obra Os Sertões é muito imagética, pessoal, em oposição à descritividade universal do cientificismo. A obra não se apóia na descrição em seu sentido empírico, mas sim na mimesis. Pode-se dizer que Euclides “partia habitualmente dos fatos, mas não permanecia preso a eles, deformava-os, modificava-os, pela lente de sua imaginação.” (COUTINHO, 1995, p.65). Essa capacidade de expandir os fatos através da linguagem é ficcionalidade pura. A metáfora do retrato em Os Sertões tem fundamento se compararmos três elementos que se correlacionam, formando a cadeia de decomposição:
homem ↔ Canudos ↔ fotografia ↔ homem
Assinale que a população de Canudos já estava fadada à destruição desde o seu surgimento. “O povo novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho.” (CUNHA, 1995, p.227). No sofrimento é que se funda essa gente. Isso porque o homem dos sertões está em função da terra, diz o próprio Euclides (CUNHA, 1995, p.198). Da mesma terra árida que o abate e que o forma. No que diz à sua formação, a população de Canudos está para a terra assim como Canudos (já em estado de Sociedade) está para a situação do país. O republicanismo é a terra árida de Canudos. Mas a relação que aqui nos interessa é a de decomposição mesmo em estado de surgimento, num aspecto mais determinista. “A destruição da sub-raça sertaneja era inevitável” (LIMA, 1997, p.172). A inferioridade do homem sertanejo está presente a priori no conceito de raça/meio que Euclides põe em sua obra. Conceito que, aliás, não fica bem delineado, galgando a contradição. Em sua abordagem etnocêntrica – carregada de preconceitos –, Euclides chega a afirmar que a “mistura de raças mui diversas é [...] prejudicial.” (CUNHA, 1995, p.176), colocando em posição de inferioridade o mestiço. As contradições se aplicam quando, inserindo o homem em seu meio formador, ressalta suas qualidades, “sua áspera noção de honra, a sua bravura, a sua inteireza, a sua resistência, porque transmite o que viu” (SODRÉ, apud COUTINHO, 2005, p.40).
O fotógrafo, antes da guerra |
A imagem da personagem Luísa vai se apagando, do mesmo modo que sua personalidade inicial se apaga dando lugar a Luísa prostituta. É o homem d'Os Sertões que, condenado à civilização, ou progride, ou desaparece (CUNHA, 1995, p.149). O mesmo pode ser visto na fotografia em relação à civilização de Canudos. Consumida pela terra árida republicana, a cidade de Canudos se vê destinada a desaparecer, e não progredir, assim como a fotografia, que é estática, só se apaga. Quando Luísa, prostituta, se aproxima do fotógrafo e lhe pede para consertar a fotografia, ele, já transfigurado em jornalista, responde que não tem jeito, que não tem conserto, só fazendo outra.
Luísa “decomposta” em prostituta |
Olhando por esta metáfora, criamos uma unidade de sentido para Os Sertões, e, partindo de conceitos deterministas, entendemos a mudança dos personagens centrais e o papel do meio (a terra ou a República) para o homem e Canudos. A fotografia também estava fadada a desaparecer. É através desse olhar literário que os absurdos da obra tomam corpo e sentido, e o exercício literário toma nova forma, renova-se, atualiza-se.
Referências Bibliográficas:
COUTINHO, Afrânio. Os Sertões, obra de ficção. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Vol. 2, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
CUNHA, Euclides da. Obra completa. Vol. 2, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
LIMA, Luiz Costa. Terra ignota: a construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
SODRÉ, Nelson Werneck. Revisão de Euclides da Cunha. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Vol. 2, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
GUERRA de Canudos. Distribuição Columbia Tristar. Direção de Sérgio Rezende. São Paulo: Morena Filmes, 1997. 1 DVD, 169 min. Cores.
Contribuição do leitor Lucas Piter Alves Costa, estudante de Letras na Universidade Federal de Viçosa. Foi membro do Centro Acadêmico de Letras Ipsis Litteris e da Comissão Organizadora do XII EMEL. Foi representante discente da Coordenação do Curso de Letras da UFV (2009). Áreas de interesse: Literaturas de Língua Portuguesa; Literatura Comparada; Cinema; HQs; Artes Plásticas, Estudos de Tradução Intersemiótica, Narratologia, AD Semiolinguística. Tem experiência como professor de desenho artístico. Atualmente desenvolve a pesquisa "Encontro de Gerações: O Tempo Narrativo n'O Alienista", sob o viés da Análise do Discurso Semiolinguística.
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