sábado, 11 de dezembro de 2010

A metáfora do retrato: um ensaio da decomposição


por Lucas Piter Alves Costa


A proposta de Euclides em Os Sertões é abrangente demais para apenas uma obra. Os muitos pensamentos científicos que àquela se vinculam tocam várias áreas, como a biologia, a antropologia, a sociologia, e, talvez, outras. De modo que seria difícil, mesmo para a Ciência, inter-relacionar tais áreas sem que com isso não caia em contradição, devido os seus diferentes métodos de análise. Somente a Literatura teria permissão para trafegar nesses terrenos, nessas correntes do pensamento filosófico e científico, e unificá-las em um discurso vastamente simbólico e polifônico. Não pretendo aqui desmerecer Os Sertões ao afirmar que Euclides não atingiu sua proposta. Pelo contrário, é através da sua linguagem encenada – no melhor sentido barthesiano – que o autor edifica resultados que outrora um tratado científico não alcançaria. É por demais pretensão querer compor um retrato dos sertões – sendo Canudos o seu âmago – sem ao menos ter estado cara a cara com a tensão que lá se via. Pode um escritor ser fiel à sua proposta de escrever uma verdade impessoal partindo de uma ótica marginal, coletada a posteriori de restos factuais? Obviamente que não. Somente a Literatura pode se permitir imaginar, e preencher as lacunas dos fatos, apoiada no conceito de verossimilhança – conceito distante em essência da objetividade em que se apóia a Ciência.

O retrato que Euclides compõe é o da decomposição, e para ilustrar isso, a fotografia da personagem Luísa, no filme Guerra de Canudos, do diretor Sérgio Rezende, é muito válida.

Fotografia de Luísa e sua irmã


Neste sentido, pode-se dizer que, em sua maior parte, a obra Os Sertões é muito imagética, pessoal, em oposição à descritividade universal do cientificismo. A obra não se apóia na descrição em seu sentido empírico, mas sim na mimesis. Pode-se dizer que Euclides “partia habitualmente dos fatos, mas não permanecia preso a eles, deformava-os, modificava-os, pela lente de sua imaginação.” (COUTINHO, 1995, p.65). Essa capacidade de expandir os fatos através da linguagem é ficcionalidade pura. A metáfora do retrato em Os Sertões tem fundamento se compararmos três elementos que se correlacionam, formando a cadeia de decomposição:

homem ↔ Canudos ↔ fotografia ↔ homem

Assinale que a população de Canudos já estava fadada à destruição desde o seu surgimento. “O povo novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho.” (CUNHA, 1995, p.227). No sofrimento é que se funda essa gente. Isso porque o homem dos sertões está em função da terra, diz o próprio Euclides (CUNHA, 1995, p.198). Da mesma terra árida que o abate e que o forma. No que diz à sua formação, a população de Canudos está para a terra assim como Canudos (já em estado de Sociedade) está para a situação do país. O republicanismo é a terra árida de Canudos. Mas a relação que aqui nos interessa é a de decomposição mesmo em estado de surgimento, num aspecto mais determinista. “A destruição da sub-raça sertaneja era inevitável” (LIMA, 1997, p.172). A inferioridade do homem sertanejo está presente a priori no conceito de raça/meio que Euclides põe em sua obra. Conceito que, aliás, não fica bem delineado, galgando a contradição. Em sua abordagem etnocêntrica – carregada de preconceitos –, Euclides chega a afirmar que a “mistura de raças mui diversas é [...] prejudicial.” (CUNHA, 1995, p.176), colocando em posição de inferioridade o mestiço. As contradições se aplicam quando, inserindo o homem em seu meio formador, ressalta suas qualidades, “sua áspera noção de honra, a sua bravura, a sua inteireza, a sua resistência, porque transmite o que viu” (SODRÉ, apud COUTINHO, 2005, p.40).

O fotógrafo, antes da guerra
A fotografia mostrada no filme está simultaneamente relacionada ao homem e a Canudos, ilustrando a decomposição presente na obra de Euclides. A metáfora do retrato reside nessa relação. O objetivo de uma fotografia deveria ser registrar algo tal qual ele era, bem como o objetivo de Euclides em Os Sertões. Contudo, os dois feitos estão estigmatizados pela imaginação. Nota-se o caráter idílico da foto, com um fundo artificial e totalmente oposto à realidade sertaneja. Desse modo, a fotografia perde seu caráter de objetividade e passa a encampar o terreno do fictício. É através dessa ficção que a fotografia irá representar a decomposição presente em Os Sertões, falhando em seu objetivo primordial como o fez a proposta de Euclides.

A imagem da personagem Luísa vai se apagando, do mesmo modo que sua personalidade inicial se apaga dando lugar a Luísa prostituta. É o homem d'Os Sertões que, condenado à civilização, ou progride, ou desaparece (CUNHA, 1995, p.149). O mesmo pode ser visto na fotografia em relação à civilização de Canudos. Consumida pela terra árida republicana, a cidade de Canudos se vê destinada a desaparecer, e não progredir, assim como a fotografia, que é estática, só se apaga. Quando Luísa, prostituta, se aproxima do fotógrafo e lhe pede para consertar a fotografia, ele, já transfigurado em jornalista, responde que não tem jeito, que não tem conserto, só fazendo outra.

Luísa “decomposta” em prostituta


Olhando por esta metáfora, criamos uma unidade de sentido para Os Sertões, e, partindo de conceitos deterministas, entendemos a mudança dos personagens centrais e o papel do meio (a terra ou a República) para o homem e Canudos. A fotografia também estava fadada a desaparecer. É através desse olhar literário que os absurdos da obra tomam corpo e sentido, e o exercício literário toma nova forma, renova-se, atualiza-se.

Referências Bibliográficas:
COUTINHO, Afrânio. Os Sertões, obra de ficção. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Vol. 2, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
CUNHA, Euclides da. Obra completa. Vol. 2, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
LIMA, Luiz Costa. Terra ignota: a construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
SODRÉ, Nelson Werneck. Revisão de Euclides da Cunha. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Vol. 2, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
GUERRA de Canudos. Distribuição Columbia Tristar. Direção de Sérgio Rezende. São Paulo: Morena Filmes, 1997. 1 DVD, 169 min. Cores.




Contribuição do leitor Lucas Piter Alves Costa, estudante de Letras na Universidade Federal de Viçosa. Foi membro do Centro Acadêmico de Letras Ipsis Litteris e da Comissão Organizadora do XII EMEL. Foi representante discente da Coordenação do Curso de Letras da UFV (2009). Áreas de interesse: Literaturas de Língua Portuguesa; Literatura Comparada; Cinema; HQs; Artes Plásticas, Estudos de Tradução Intersemiótica, Narratologia, AD Semiolinguística. Tem experiência como professor de desenho artístico. Atualmente desenvolve a pesquisa "Encontro de Gerações: O Tempo Narrativo n'O Alienista", sob o viés da Análise do Discurso Semiolinguística.

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