sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O QUE ALCANÇA A VISTA DO POETA


O QUE ALCANÇA A VISTA DO POETA ENTRE A CIDADE E OS EDIFÍCIOS SUSPENSOS NA FLORESTA

Falar sobre a cidade, as áreas urbanas em via de metamorfose, é tarefa bastante instigante. Em seu livro A condição urbana – a cidade na era da globalização, Olivier Mongin diz que “o urbano contínuo e generalizado é sustentado por uma ‘estética do desaparecimento’. Nesse caso, isso não é a falta de desenvolvimento, a miséria, o abandono que destrói a cidade. Os espaços urbanos, quaisquer que sejam, estão condenados a se tornar informes, disformes, monstruosos (...)”. Mongin chama a atenção para o fato de a cidade, (pós-moderna?) ser sempre um organismo em mutação, pois, a cada instante, há algo mais que a vista não alcança, mais que o ouvido possa perceber, uma composição nova em um cenário que espera para ser analisado.

A cidade pode ser percebida por fragmentos de imagens refletidas, de palavras cravadas na folha em branco, afinal para Bakhtin (1992, p.95) “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de sentido ideológico ou vivencial”. Por isso toda e qualquer palavra só pode ser lida, ouvida, compreendida a partir de um contexto histórico preciso. É esse contexto particular que determina e que orienta toda a nossa compreensão.

Assim entre as narrativas que atualizam as identidades produzindo transformações nos sujeitos e sendo transformadas por eles, está O poço de Guerá Fernandes. Sua leitura é reconhecer a escrita como operadora de uma memória social do contemporâneo,das diásporas desse homo urbem reatualizado, ritualizado, exorcizado na medida em que a inquietação identitária que emerge de seus versos sugere um percurso de reconhecimento da condição humana, amarga, dolorosa, abjeta, niilista. Se como nos diz Bonnici, a diáspora significa, em seu sentido mais doloroso, “dispersão”, “desenraizamento”, é da diáspora contemporânea que fala Guerá.

Não fala apenas não, também performatiza. A materialidade de sua escrita estrutura-se sobre pilares performáticos que transcendem os domínios do estritamente literário para adentrar-se em um campo onde é possível, como meio de dar forma e representar essa realidade, a identificação de um processo de espetacularização da escrita que se vale de uma maneira simbólico-crítica de ler e interpretar o urbano contemporâneo. Uma representação literária compreendida como um ato propício para a articulação de identidades minoritárias, dissidentes e subalternas, afinal, “[nesta] cidade todos viviam do lixo. O trabalho acabou depois da guerra. Havia os soldados e as prostitutas que se acertavam de acordos e concessões. No mais eram todos catadores. Gente no lixo. Do lixo sobrevivendo até o momento de irem para a fila do corredor da morte”.

É assim, com suas frases curtas e melodia árida, presenças marcantes da força lírica que Guerá já demonstrara em Mares de ilhas e cores se chove (2008) e Infinito berrante (2009), que o autor não vacila e cria uma cidade onde não se voa longe, uma cidade das pedras onde a única certeza é a dúvida: a metamorfose das personagens, sujeitos de direitos, em indivíduos em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o crescente ambiente de incertezas; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o fim da perspectiva do planejamento em longo prazo.

Guerá Fernandes, em O poço, aponta para nossa desmemória , porque não é apenas um exercício, um mero trabalho de resgate ou projeção, mas de re-significação, de performatização, que visa a uma crítica aguda do futuro no presente, com vistas a uma projeção no re-futuro, nos mostrando o quão significativo pode e deve ser o papel da literatura.






Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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