sexta-feira, 27 de maio de 2011

AINDA SOBRE CHICO



A última peça escrita por Chico Buarque foi a Ópera do Malandro (1978). Essa comédia musical inspirou-se na Ópera dos Três Vinténs de Bertold Brecht e Kurt Weill (1928), que por sua vez baseou-se na Ópera do Mendigo de John Gay (1728). Essas obras, que Chico usa como fonte para sua criação teatral, são obras críticas.


Brecht desenvolveu uma teoria teatral, formulada por ele durante mais de trinta anos, o teatro épico. Ele, realizando uma analogia entre o palco e a vida social, concebeu um teatro que revelava suas próprias estruturas, já que o palco dramático, em voga no período, podia ser visto como um reflexo da própria sociedade que o engendrava. A negação e a desconstrução do teatro ilusionista estaria, portanto, em consonância com a revelação dos mecanismos constituintes da sociedade burguesa.

Tal dramaturgo contrapunha-se ao ilusionismo do teatro e defendia uma cena que se assumisse enquanto arte, deixando a mostra suas causas e efeitos. Um teatro “desmontado”, que revelasse os mecanismos utilizados - refletores de luz, estrutura cenográfica etc -, retirando as tapadeiras, rotundas a tudo o que pudesse esconder a construção e o funcionamento dos objetos que compõem a cena, contrariando a vontade de espectador de que estaria diante da própria vida, assumindo, pois, a teatralidade da encenação. O palco rasga as cortinas porque quer revelar e questionar a si mesmo quer pensar a sua própria função, efetuando também a quebra da quarta parede.

O encenador épico, ao questionar o palco, fazendo com que os espectadores tomem consciência do seu funcionamento, quer, também, denunciar os mecanismos que estruturam a sociedade, pois o teatro ilusionista mantém os espectadores alienados de sua capacidade crítica e revolucionária. Ele deve, portanto, expor, através da demonstração dos mecanismos do teatro, a realidade social, criticando o capitalismo, porque este sistema, tal como o teatro ilusionista, aliena os indivíduos, afastando-os de si mesmos.

Brecht entendia, que, ao invés de incitar o envolvimento emocional do espectador, a arte teatral deveria despertar a sua atividade, proporcionando-lhe conhecimentos advindos da reflexão sobre aquilo que esta sendo apresentado em cena. O espectador estaria sendo contraposto à ação e não transportado para dentro dela.

É sob tal perspectiva que Chico desenvolve sua Ópera do Malandro. Ele concebe uma peça em que o teatro reflete o próprio teatro, numa criação que poderíamos chamar de metadramaturgia. O texto da peça inicia-se com uma introdução, na qual, a personagem Produtor dirige “algumas palavrinhas” ao público, com o intuito de despertá-lo para a sua realidade, assim expondo: “(...) Acredito que é tempo de abrirmos os olhos para a realidade que nos cerca, que nos toca tão de perto e que às vezes relutamos em reconhecer.”

Está formado o jogo teatral proposto por Brecht e utilizado, muito propriamente, por Chico Buarque. Nele, dá-se a perceber ao público que o que será encenado nada mais é do que realmente uma peça teatral, rompendo com a ilusão do teatro “mimético”, que se quer cópia da realidade.


O ambiente em que se passa a ação é a Lapa dos anos 40, bairro boêmio do Rio de Janeiro, local da “nata da malandragem”, onde conviviam prostitutas e marginais com intelectuais e artistas. O momento histórico de representação é o da ditadura do governo Getúlio Vargas, clima muito parecido com o vivido em 1978, durante a ditadura militar (contexto de produção da peça). Em 40, há “a modernização autoritária” e em 78 a abertura do mercado nacional aos americanos, novos “senhores da globalização”. Mais uma vez, à semelhança de Calabar, Chico usa a história do país para refletir o que está ocorrendo no presente, além de, alegoricamente, numa atitude crítica e preocupada, refletir problemas atuais (1978), tentando despertar a consciência brasileira.

E como figura central do texto de Chico temos o malandro, ou melhor, a malandragem. Ele se utiliza de um elemento representativo da identidade nacional, para criticar o capitalismo, a invasão e a valorização do elemento estrangeiro, principalmente americano, presente em nossa sociedade, em detrimento da cultura nacional, sob a prerrogativa da modernidade.

Chico Buarque foi buscar na Lapa o malandro que não existe mais, apropriando-se dele para dar uma nova feição a malandragem. Há, na peça, uma relativização da figura do malandro, aquele malandro, “indivíduo esperto, vivo, astuto, que não trabalha e abusa da confiança dos outros”, a “nata da malandragem” já não se mostra mais como antes. Esse malandro que conhecemos, ironicamente, é um trabalhador oprimido e explorado pelo sistema (“Mora lá longe e chacoalha / Num trem da Central”), no qual domina uma outra malandragem. O malandro “original” sumiu da cena urbana e se pulverizou na vida social.

A malandragem, no sentido do banditismo, da corrupção, da marginalidade está disseminada por toda a sociedade: está nos donos do capital, nas colunas sociais, na política. No entanto, esses “malandros nunca se dão mal”, não vão presos ou não tem pendengas com polícia, já que sua “malandragem” não é ilegal, muito menos explícita. Roberto da Matta enfatiza a figura do Malandro, dizendo que; “o malandro não cabe nem dentro da ordem nem fora dela: vive nos seus interstícios entre a ordem e a desordem, utilizando ambos e nutrindo-se tanto dos que estão de fora quanto dos que estão de dentro do mundo quadrado da estrutura”.

Max, o contrabandista, e Duran, o cafetão, em seus negócios escusos, são os malandros da peça. Apesar de malandro, Duran não se identifica com esse tipo, ele se vê como um homem de “negócios”, dono de uma empresa; negócio legalizado, não apenas um bordel. Max e Duran, os malandros, possuem escritórios e funcionários. A relação que vemos entre Max e seus “empregados”, contrabandistas, o de mais intimidade, Max valoriza seus “funcionários”, reflete a falta que eles fariam tanto para seus negócios quanto para toda a sociedade.


Já Duran, mantém uma relação, com seus funcionários, bem marcada pela questão empregador / empregado. Ele oprime o empregado, transformando-o num simples número, e, com isso, qualquer relação que se dá entre eles é impessoal, Isto é, qualquer relação humana desaparece.

No entanto, Teresinha, filha de Duran e esposa de Max, aparece como a mulher moderna, funcionando como agente de transformação. Ela percebe a mudança dos tempos e traz para os escusos “negócios” de Max o progresso; não há mais lugar para a malandragem tradicional, o pequeno banditismo. Agora, o banditismo é oficializado, legalizado pelo empresário que “rouba” e explora os empregados visando cada vez mais lucros, acabando assim com a relação pessoal, instaurando a impessoalidade da Empresa.

Sobre o fim da malandragem tradicional e o começo da malandragem “em escala industrial”, institucionalizada, nos fala Fernando Barros e Silva: “Esse malandro por assim dizer ‘artesanal’ irá sucumbir sufocado pela institucionalização da malandragem, pelo aparecimento de suas formas modernas e anônimas multiplicadas em escala industrial pelas elites.”

Como já sabemos, o mundo da desordem está representado por Max e Duran, e o mundo da ordem por Chaves. O mundo da desordem é o submundo, a prostituição, o contrabando, no qual os seres estão à margem da sociedade. Já o outro está, na peça, demonstrado pela polícia, que deveria combater o mundo da desordem.

No entanto, o que vemos é uma relação, na qual o autor destrincha a engrenagem do sistema social, de intimidade e cumplicidade entre o mundo da ordem e o da desordem. Ambos vivem numa relação que poderíamos chamar de “política de favores. O favor é a base da sociedade entre Chaves e Duran e Chaves e Max. Quando Duran percebe que Teresinha irá se casar com um malandro, pede ao policial que acione a “operação detergente”, que “elimina a gordura”, em troca do perdão das dívidas que este tem com ele. Chaves então passa por um dilema, pois é amigo de Max, mesmo assim, ele prende o contrabandista. No entanto, o mundo da ordem não é restabelecido, porque Chaves está apenas cumprindo ordens do outro lado do mundo da desordem.


Chico traz á tona as mazelas da nossa sociedade, criticando sua estrutura e o sistema capitalista, partindo do submundo, daqueles seres que “disputam trocados”. Critica o capitalismo voraz, que corrompe um país subdesenvolvido. Essa crítica está presente em toda a peça, bem como a relacionada à política de favores e à corrupção.

O que são os contrabandos de Max, em relação às multinacionais e suas sonegações de impostos? E o crime de Chaves comparado a política de influências pessoais em nosso país? Como se dão esses altos crimes de corrupção? A temática da peça de Chico é bem atual e nos faz refletir realmente sobre a nossa sociedade.

É importante ainda ressaltar, em termos das temáticas secundárias, o amor, que vêm a tona no triângulo amoroso Max - Teresinha - Lúcia, além da prostituição, da homossexualidade etc, que não iremos abordar neste escrito. Há ainda, o que fica claro em todo o texto, a questão do americanismo e da desvalorização do nacional: os nomes dos contrabandistas que são relacionados aos objetos importados que eles “comercializam”, como Phillip Morris, General Eletric, Johnny Walker etc; os objetos como náilon, prataria de Portugal, cristais da Boêmia, cerâmica inglesa etc. E pertinente também uma análise mais detalhada dessa invasão estrangeira como uma das temáticas da peça.




Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

1 comentários:

Sônia Barros disse...

Excelente análise! Parabéns pela divulgação no seu blog.
Ópera do malandro foi a última peça de que participei quando fazia teatro. Tive a sorte de "ser" a Terezinha, esposa do malandro. Inesquecível!
Um grande abraço.

28 de maio de 2011 às 09:55

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