segunda-feira, 30 de maio de 2011

Poesia na Música de Celso Adolfo







POESIA DE LETRA - I : CELSO ADOLFO
por Altair de Oliveira


Nesta semana a coluna “Poesia Comovida” tece comentários sobre 2 letras de música do compositor mineiro Celso Adolfo que, como alguns outros músicos da MPB da atualidade, podem muito bem serem considerados poetas. No entanto, alertamos que não seguimos aqui nenhum manual literário ou musical que defina quando e como uma letra de música deve ser considerada poesia ou não e nem seguimos a nenhuma máxima de nenhum “autoridade” das artes envolvidas. Utilizamos nesta escolha apenas um certo faro, afinado ao longo dos anos pelo prazer da leitura de poemas, que nos permite sentir como são os poemas que nos comovem.
A primeira vez que ouvi falar em Celso Adolfo foi com a música “Azedo e Mascavo”, que participava da seletiva do festival dos festivais em 1985. A música tinha um ritmo forte e surpreendia pela poesia. Além disso, ela era muito bem apadrinhada por Milton Nascimento, que acreditava na época que ela iria para a final. Não deu certo: “Azedo e Mascavo” não passou na eliminatória para as 12 finalíssimas e o festival terminou vencido pela diva “Tetê Espíndola”, com a música “Escrito nas Estrelas”.
Mas eu guardei o nome do cantor e fiquei com a música na cabeça e, a partir daí, passei a procurar discos dele sempre que surgia uma oportunidade. Foi com grande alegria que, anos mais tarde, eu pude adquirir 2 discos dele em Belo Horizonte (Coração Brasileiro – 1983 e Anjo Torto – 1990) , tornando-me então um fã seu e passando a procurar os outros discos. Ouvir Celso Adolfo é um hábito gostoso e saudável que, ainda hoje, eu faço questão de manter.









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Discografia de Celso Adolfo:




1983 – CORAÇÃO BRASILEIRO - Produzido por Milton Nascimento [BH-RJ].
1988 – FELIZ - Produzido por Túlio Mourão [BH].
1990 – ANJO TORTO - Dirigido e arranjado por André Dequech [BH-RJ-NYC].
1995 – BRASIL, NOME DE VEGETAL - Produzido por Mazzola [RJ].
1998 – FESTA DO PADROEIRO - Produzido por Celso Adolfo [BH].
2003 – O TEMPO - Produzido por Celso Adolfo [BH-SP].
2006 – VOZ, VIOLÃO E ALGUMAS DOBRAS - Produzido por Celso Adolfo [BH-SP].
2008 – ESTRADA REAL DE VILLA RICA - Produzido por Celso Adolfo [BH-SP].









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DOIS POEMAS COMENTADOS








O poema “O Tempo” é um ótimo exemplo do poder poético deste compositor que aqui é um mero contemplador inserido numa tarde de um ambiente rural (uma fazenda, um sítio, uma vilazinha do interior?). Inicialmente o observador distraído vai apenas filtrando as belezas passíveis à sensibilidade poética e, à medida que ele que incorpora na paisagem, a gente percebe há um vacilar de palavras que nos permite faz duvidar se são realmente as cores das coisas que vão aos poucos colorindo os olhos do poeta, ou se são seus olhos de pintor que vão dando brilho às coisas da tarde. Instaura se um ambiente de paz que nos permite sugerir uma quase sonolência que bem poderia congelar, como numa foto, eternizando o observador à paisagem. Mas de repente o tempo, que ocultamente espreitava o contemplador, aparece felinamente e o devolve à realidade. Como se a roda da rotina voltasse novamente a girar, o tempo devolve ao contemplador a sua situação humana e moritura. Mas não é sem luta que o poeta se agarra às belezas capturadas naquela tarde e sente no embate o tempo girar impiedosamente o globo para trazer-lhe a noite inadiável. Como um náufrago, que parece nadar desesperadamente na tempestade incontrolável dos dias, o poeta parece lutar para certificar a poesia colhida daquela tarde. Vale muito a pena ouvir e conhecer a versão musicada do poema!







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O TEMPO




Cai mais uma tarde no lugar
janela aberta para bem-te-vis
telhados de rubis e colibris
eu sofro asas derramando o olhar



Os sete anzóis da minha cicatriz
aonde ando ouço lambaris
o galo brinca as cores de manhã
a tarde veste cascas de maçã



Atrás da moita tempo tudo vê
eu temo os seus abraços de punhal
espicho o dia de ele me perder
eu guardo o meu sossego no embornal




O tempo está na ponta do punhal
engulo seco, fico branco assim
eu pulo e salto, o medo ri de mim
o medo veste o seu capuz de sal



O tempo trinca a pia batismal
e trinca a madrepérola missal
só vem rasteiro, anda sempre assim
o tempo é lodo, é parede abissal



O boi balança o dia devagar
o dia cai e quebra a telha do curral
do rio vem o rio desigual
o tempo soma sombra e temporal



A pedra espanta os anjos do vitral
céu arrebenta a bolha do luar
a tarde cai, ouro cai do altar
o tempo é noite e dia sem parar



A noite é estrela de uma luz escura
o olhar segura a escuridão no ar
a noite busca a noite na fundura
o tempo cai da altura, vem buscar



E tudo quanto existe vai girar
e todo céu o seu e o meu lugar
e tudo dobra e tudo vai curvar
o tempo é “multitudinoso mar”.




Celso Adolfo, do CD: “O Tempo” – 2003.





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NÓS DOIS





Nesta música “Nós Dois”, talvez a canção mais conhecida de Celso Adolfo, o poeta se encontra no olho do furacão da paixão e aí ele sofre sentindo recair sobre si todas angústias e ansiedades de podem advir desta condição de luminosa excitação e de instabilidade. O amor é um território instável, por mais que alguns obstinadamente neguem, porque instável é a vida e transitórios neste mundo somos cada um de nós. Além disso, há a dúvida, porque o amor se instala sobre nós prometendo substitui a profunda solidão que nos acompanha desde o nosso aparecimento e promete nos seguir até nosso último momento. E há ainda a dúvida porque o amor depende de duas vontades que precisam estar em sintonia todo o tempo para que esta chama não se apague e o “nós dois” torne-se uno, como secretamente deseja todo ser amante.
Cantar as dificuldades de um amor talvez seja o tema preferido pela maioria dos músicos da música popular ou sertaneja brasileira, mas cantá-lo com a poesia que a grandiosidade do tema requer é quase um milagre, e Celso Adolfo conseguiu isto em “Nós Dois”. Uma deliciosa semana para todos vocês!




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NÓS DOIS



E nós que nem sabemos quanto nos queremos
Que nem sabemos tudo que queremos
Como é difícil o desejo de amar


Você que nunca soube quanto eu quis
Que não me coube, não me viu raiz
Nascendo, crescendo nos terrenos seus

Eu na janela, olhando a lua
Perguntando à lua: onde você foi amar?

E nós que nem soubemos nos querer de vez
Estamos sós, laçados em dois nós
Um que é meu beijo e outro é o lábio seu


Não sei sair cantando sem contar você
Que eu sei cantar mas conto com você
Que eu vou seguir mas vou seguir você

Queria que assim sabendo se a gente se quer
Queria me rimar no seu colo mulher
Vencer a vida de onde ela vier

Ganhar seu chegar no chegar meu
Dar de mim o homem que é seu.



Celso Adolfo, do disco: "Feliz" - 1988.





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Ilustrações: 1- foto do compositor Celso Adolfo; 2- foto da capa do disco "Anjo Torto"; 3- Trabalho do pintor cearence Aldemir Martins; 4- Trabalho dp pintor Aldemir Martins.




Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve quinzenalmente às segundas-feiras no ContemporARTES a coluna "Poesia Comovida" e conta com participação eventual de colaboradores especiais.

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